Empresas de fachada foram usadas nos leilões da Estreliana, comprova MPT

Da Repórter Brasil, por Alice de Souza e Lúcio Lambranho — Fundada em 1861, a Estreliana já foi considerada uma das maiores usinas de cana-de-açúcar do estado e tem em sua história um dos principais casos de violência no campo já ocorridos em Pernambuco. Em 1963, cinco trabalhadores rurais foram assassinados e outros três ficaram feridos ao cobrar direitos trabalhistas como o recebimento do 13º salário. Desde 1982, ela é propriedade da família Albuquerque Maranhão, uma das mais ricas do estado.

A Estreliana já pagou uma pequena parte das dívidas trabalhistas, mas ainda deve cerca de R$ 51 milhões a seus ex-empregados, além de mais de R$ 360 milhões à União. O patrimônio do grupo, segundo o plano de recuperação judicial, é formado por ao menos 59 casas, dois galpões e seis engenhos – amplas áreas de terra em que no passado a cana era cultivada e processada.

Parte desses locais se transformou em pequenos bairros onde vivem em grande parte ex-trabalhadores da usina, que receberam “de boca” o direito a permanecerem nas propriedades.

Documentos do MPT explicam possível fraude nos leilões de terras da Usina Estreliana

Empresas de fachada

Em 2023, já aconteceram pelo menos três leilões de terras da Estreliana. Em um deles, a propriedade foi arrematada por uma pessoa que o MPT diz ser “laranja” dos donos da usina. Os procuradores apontam evidências de vínculos diretos e indiretos entre pessoas ligadas ao grupo e os compradores de pelo menos três engenhos da empresa localizados em Gameleira. Com 912 hectares, os três engenhos investigados pelo MPT foram colocados em leilão em 2017. Os engenhos São Gregório e Alegre I foram arrematados pela empresa Negócio Imobiliária S/A, atualmente denominada Agropecuária Mata Sul Ltda.

Entre os sócios da Negócio, na época do leilão, figurava uma ex-funcionária da Estreliana, Regina Célia Giovannini Lima Torres. O MPT afirma que ela constituiu três empresas de fachada, entre elas a Negócio Imobiliária S/A, para arrematar imóveis do Grupo Estreliana penhorados na Justiça do Trabalho. O objetivo seria “proteger um crédito milionário, que poderia ser usado para pagar as dívidas, e assim deixar de pagar aos trabalhadores”, segundo inquérito do MPT. Os procuradores têm como base um relatório elaborado pela Assessoria de Pesquisa e Análise Descentralizada do Ministério Público Federal (MPF).

Outros fatos evidenciam a proximidade entre Regina Célia e o grupo. Ela também trabalhou em outras três empresas ligadas à usina e foi sócia de uma quarta organização cujo procurador era Guilherme Cavalcanti de Petribu de Albuquerque Maranhão, um dos donos da Estreliana. Já o outro dono da empresa Negócio Imobiliária, José Syllio Diniz Araújo, aparece na sociedade de outras duas empresas que também tinham Maranhão como procurador.

MPT afirma que uma ex-funcionária da usina constituiu empresas de fachada que arremataram terras da empresa em leilões

“São inúmeras, portanto, as provas que vêm sendo obtidas a partir dos procedimentos investigativos instaurados tanto no âmbito do MPT, quanto no MPF, que demonstram, de forma inequívoca, os vínculos mantidos entre os arrematantes dos imóveis expropriados nos presentes autos e o Grupo Estreliana”, afirma o documento do MPT. Procurados pela reportagem, Regina Célia e Diniz Araújo também não se manifestaram.

Em julho de 2022, o MPT solicitou a inclusão dos compradores dos três engenhos do município de Gameleira e de seus sócios como réus nos processos trabalhistas da Estreliana. O pedido foi indeferido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT-6). Mas, em agosto deste ano, o MPT voltou a solicitar a inclusão. À Repórter Brasil, o órgão disse, em nota, que ainda aguarda a apreciação do pedido e que acompanha o trâmite do processo na Justiça do Trabalho.

Leilões em xeque

Além dos Engenhos São Gregório e Alegre I, Diniz Araújo – o sócio das empresas em que o dono da Estreliana era o procurador – adquiriu diretamente em seu nome pelo menos outros três imóveis ligados à usina. Um deles é o Engenho Taquara, cujo leilão ocorreu em setembro de 2013. Com 203 hectares, ele foi avaliado pela Justiça do Trabalho em cerca de R$ 3 milhões e reavaliado pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco por R$ 1 milhão. No entanto, a propriedade foi arrematada por Diniz Araújo por R$ 250 mil.

De acordo com advogados dos ex-trabalhadores, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e da Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape) ouvidos pela reportagem, a Usina Estreliana não costuma recorrer das avaliações mais baixas feitas pela Justiça. “O imóvel é subavaliado, mas o devedor não luta para o valor subir, não recorre, quando ele seria o maior interessado”, afirma Bruno Ribeiro, advogado da CPT.

Uma análise feita pelo TRT-6 indicou que a diferença de valores pode “comprometer a liquidação dos bens e a obtenção de crédito” necessário para pagar as dívidas com os trabalhadores. O tribunal apontou disparidade nas avaliações dos valores de ao menos três imóveis da Estreliana.

Ruínas do Engenho Liberdade, um dos imóveis de produção de cana-de-açúcar da Usina Estreliana

Em outros leilões ligados ao Grupo Estreliana também se verificaram valores abaixo do preço de mercado e a aquisição feita por laranja. No engenho onde funcionava a Destilaria Liberdade Ltda EPP, a área e o parque industrial foram comprados por Elias Saed Cabus Junior por R$ 2,4 milhões. Contudo, só o parque industrial foi avaliado em R$ 14,7 milhões pela Vara do Trabalho do município de Escada, valor seis vezes superior.

Cabus Junior é mais conhecido como DJ Elias Cabus. Ele iniciou a carreira na música em 2003 e trabalhou 15 anos como produtor de eventos. Em sua página no LinkedIn não há nenhuma referência a trabalhos no setor sucroalcooleiro, assim como em seu perfil oficial no Spotify. Nas investigações do MPT, ele aparece na sociedade de duas empresas vinculadas à família dona do Grupo Estreliana, depois transferidas a José Syllio Diniz Araújo. Procurado pela reportagem, Cabus não retornou.

Recuperação fraudada

Outro órgão público que vê irregularidades nas estratégias da Estreliana é a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. A PGFN considera que a recuperação judicial do grupo é uma fraude, uma vez que até agora a empresa se desfez de quase todos os seus bens (engenhos e parque industrial), mas não pagou os credores, incluindo a União, conforme petição a que a reportagem teve acesso.

A Procuradoria acusa o Grupo Estreliana de esvaziamento patrimonial e de fraudar a lei de recuperação judicial. A PGFN pediu à Justiça a suspensão da recuperação e a decretação da falência das empresas listadas no processo. De acordo com o advogado Pedro Henrique Costa, especializado em recuperações judiciais, por princípio o mecanismo da recuperação amplia as chances de todos os credores receberem, mas na prática isso acaba dependendo da boa-fé da empresa.

“A falência é o pior dos mundos para todo mundo. O juiz vai reunir todos os credores e dar uma ordem de prioridade. E a empresa vai pagando enquanto tiver dinheiro”, diz. Na recuperação judicial, entretanto, não há essa lista, e todos os credores deveriam ter o mesmo direito. Para a PGFN, a Estreliana favoreceu um dos credores, simulando um suposto crédito, prejudicando assim o pagamento dos demais, incluindo trabalhadores e a Fazenda Pública.

Segundo o advogado, a forma de pagamento aos credores não pode fugir ao que está estabelecido no plano de recuperação e acordado por meio da Justiça. Ele entende, porém, que em caso de fraude a falência pode ser a melhor saída. “Nesse caso, o dinheiro todo volta para a massa falida, e os credores trabalhistas estão no topo da lista de prioridade para receber”, afirma.

Além da investigação do MPF e do pedido da PGFN, há também um inquérito na Polícia Federal investigando a suposta fraude apontada pela procuradoria. A Repórter Brasil questionou a PGFN sobre o caso, mas não recebeu retorno até a publicação desta reportagem. A PF também não se pronunciou. Sem receber, a família de Cláudio Nascimento diz que não tem dinheiro para adquirir um novo imóvel. A viúva teme ser expulsa de casa, cedida pela usina quando Cláudio trabalhava por lá.

Desde a morte dele, as condições de vida da família pioraram. “Meu filho tinha 10 anos e dizia que queria morrer. Levei para o médico, que encaminhou a um psiquiatra, mas não fui porque era difícil se locomover sem dinheiro”, conta a dona de casa, desempregada. Eles ainda aguardam o pagamento de cerca de R$ 84 mil pelos anos trabalhados do marido.

 

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