Encontro às cegas

Eduardo Bittencourt e Pedro Enrique Monteiro

Eles foram apresentados por uma amiga em agosto do ano passado, no Instituto de Cegos da Bahia (ICB), no Barbalho. Desde o primeiro encontro Evanei Jesus, 29 anos, se interessou por Claudiene Oliveira, 18. Puxou assunto com uma piada sobre ela ser baixinha. A garota sorriu. “Eu gostei, mas não falei nada. Não foi um sim, mas também não foi exatamente um não”, lembra.

Namorados, Claudiene e Evanei se conheceram no Instituto de Cegos (Foto: Robson Mendes)

Os dois estudantes têm baixa visão, deficiência que impede um campo visual superior a 10 graus (como Claudiene) – o normal são 180. Em alguns casos, como o de Evanei, só se percebe a luz.

Isso não os impediu de paquerar, trocar mensagens no Whatsapp e até ir ao cinema. “O namoro dos cegos é absolutamente igual ao namoro de pessoas com visão”, afirma Adriana Machado, terapeuta ocupacional do ICB.

No segundo encontro, Evanei e Claudiene trocaram telefones. Continuaram a sair e em novembro o rapaz a pediu em namoro. Ela quis duas semanas para pensar no assunto, mas aceitou. Disse “sim” e deram o primeiro beijo.

Na Bahia, 510.039 pessoas –  3,6% dos baianos – têm problemas de visão que não são resolvidos por óculos. Na faixa de 15 a 24 anos, como Claudiene, a incidência é de 1,4% da população  – 37.629 pessoas no estado, o que equivale a 8% do total de 460.328 mil jovens na mesma situação no país. Os dados são de 2012, do último censo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Claudiene consegue ver, sem muita definição, imagens grandes de longe. Foi ela que levou Evanei ao cinema pela primeira vez, em fevereiro, para assistir à Bob Esponja – já gostavam do desenho. “Eu consigo ouvir os filmes e ela me explica quando tenho dúvidas”, diz.

Adaptação

Quando tinha 17 anos, Margarete Reis, 25, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) e ficou cega. Depois de um mês internada, começou a frequentar o Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP). Lá, com a ajuda da mãe, reaprendeu a fazer tarefas domésticas, como lavar e passar roupa e arrumar a casa. Ela voltou a  ser vaidosa: descobriu como se maquiar, pentear o cabelo e até se vestir como gosta. “Crio a imagem da roupa na minha cabeça, decido as cores e peço para a vendedora”, descreve.

Margarete passou a decidir pelo tato se acha uma pessoa bonita ou feia. Algumas vezes, as amigas descrevem como é o pretendente. “Isso ajuda bastante porque eu conheci as outras pessoas enxergando, então eu consigo imaginar”. Mas, mesmo com ajuda, ela confia mais em si mesma. Uma vez, ouviu da prima que um cara era “horrível”. Respondeu que “ele podia ser até feio por fora, mas que por dentro era lindo”.

Paquerar e namorar para aqueles que perdem a visão na adolescência costuma ser mais fácil para a mulher. A sexóloga Alcione Bastos, especialista em educação e terapia sexual, diz que “o homem é muito visual e tem necessidade de se sentir bonito para se sentir aceito e desejado, o que dificulta o processo”.

O sexólogo Ricardo Cavalcanti compartilha a opinião. “O homem é visual em sua sexualidade e a mulher é mais tátil e mais auditiva. Palavras carinhosas ditas ao ouvido e o toque certo no momento certo, pela pessoa certa, ofusca qualquer outro sentido”, explica.

Família

Foi com as palavras certas que Fabiano Gomez, 25, conquistou Margarete. Os dois se conheceram há dois anos em um encontro de amigos no restaurante Jangada (Itapuã).

Conversaram, trocaram telefones, mas Fabiano não percebeu que Margarete era cega – ela consegue encarar as pessoas. “Fomos conversando e, uma semana depois, tomei coragem e contei. Ele disse que não se importava, que gostava de mim do jeito que eu sou e que a visão dele ia ser dupla: para mim e para ele”, lembra.

Grávida: cega aos 17, Margarete segura presente da filha (Foto: Marina Silva)

A cantada de Fabiano será atualizada em poucos dias. A visão dele será tripla: para ele, para ela e para a filha. Margarete está grávida de oito meses de Kelly Vitória. “Espero que ela puxe meus cabelos, cacheado, preto, a minha cor. Eu quero que ela seja parecida com a mãe”, conta, ansiosa.

Ela se sente preparada para cuidar da criança: morou dois anos em São Paulo, em 2011, e tomou conta do sobrinho de 2 anos. Kelly já tem o primeiro presente esperando por ela. A boneca que Margarete ganhou da mãe na infância vai atravessar mais uma geração.

Educação sexual

Ítalo de Aragão, 23 anos, estudante de informática, teve a primeira relação sexual aos 13. Com problema de visão desde que nasceu, devido a rubéola que a mãe contraiu durante a gravidez, ficou cego aos 7 anos.

Ele lembra que, apesar da inexperiência, conseguiu usar  camisinha. Já tinha pesquisado sobre o assunto, ouviu palestras no CAP e teve ajuda da garota que estava com ele. “Meus pais me deram muito conselho na época da adolescência. Eles tocavam muito na parte de precaução e davam o aviso de sempre: ‘não traga filho pra minha casa’”, conta.

Ítalo teve a primeira experiência cedo, mas a descoberta do próprio corpo começa pelo toque, tanto para jovens que veem como para os cegos, explica a psicóloga Audrey Micolini, do ICB. Ela já foi procurada por pais que se queixavam de um excesso de masturbação dos filhos. “Isso é comum a todo adolescente. O que os pais têm que fazer é explicar para o cego que há lugar adequado para ele fazer isso, que é uma coisa íntima e faz parte da privacidade”, conta.

Imaginação

No CAP, Ítalo aprendeu em palestras a importância do sexo seguro e os perigos das doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Depois que ficou mais velho, tocou em próteses de seios para conhecer o corpo feminino  e aprendeu a colocar camisinha em um pênis de plástico.

Outra habilidade muito usada por Ítalo é a imaginação.“Durante a relação, tento imaginar o que eu e a pessoa estamos fazendo. Toco ela e transformo isso em imagem na minha cabeça”, conta.

infocegos2corrigidoAcessibilidade: aplicativos são usados para paquera

Regivaldo Neri, 20 anos, tem os aplicativos de paquera Par Perfeito e Papo a Dois. O estudante teve um glaucoma aos 12 e ficou cego. Para usar o smartphone, precisa do Nuance Talks, programa que descreve os ícones e textos na tela e facilita o uso.

Aplicativos e computadores também fazem parte da vida de quem não pode enxergar. Cegos e pessoas de baixa visão utilizam sites de relacionamento e redes sociais para encontrar amigos e, quem sabe, um amor.

Regivaldo já conheceu algumas pessoas através dos aplicativos, mas reclama que boa parte dos usuários faz perguntas voltadas ao sexo. “A maioria dos que eu conheci só procurava por sexo”, desabafa. “E o que conta para mim é a conversa. Qual o interesse dessa pessoa? De que ela fala?”.

Não existem aplicativos populares específicos para quem tem problemas sérios de visão. O WhatsApp se popularizou entre este público porque permite que as mensagens sejam enviadas por áudio, explica a psicóloga do Instituto de Cegos da Bahia (ICB), Audrey Micolini.

Mas também é possível utilizar programas que transformam em som toda a informação textual que aparece no visor do aparelho, como faz Regivaldo. Assim os deficientes visuais podem saber, por exemplo, os dados de um perfil do Facebook.

É só depois de uma boa conversa que Regivaldo decide se vai ou não contar que é cego. E, a partir daí, “depende do bom-senso da pessoa se ela vai querer continuar falando comigo ou não”. Mesmo que os dois resolvam se conhecer, por segurança, o primeiro encontro é sempre marcado em lugares de grande movimento, como shoppings centers.

Escolas estaduais não têm metodologia específica

Segundo o Sistema de Gestão Escolar (SGE), existem mil estudantes cegos ou de baixa visão matriculados na rede estadual de ensino.

Nestas escolas, as questões ligadas à sexualidade são trabalhadas de acordo com a metodologia de cada professor, sem fiscalização ou padrão didático, afirma a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação. A pasta é responsável por providenciar os recursos e garantir o acesso aos conteúdos através do Centro de Educação Especial, em Ondina. Até o fechamento desta reportagem, a Secretaria Municipal de Educação, procurada continuamente pelo CORREIO há uma semana, não respondeu quantos estudantes na mesma situação estão matriculados na rede municipal e se eles têm acesso a palestras ou oficinas sobre sexualidade e prevenção de DSTs.

Apoio

Outras instituições que atendem deficientes visuais têm programas voltados à sexualidade e prevenção de DSTs. No Instituto de Cegos da Bahia (ICB), no Barbalho, grupos de jovens são formados para debater o assunto, sob a orientação de psicólogos e terapeutas.

Durante os encontros, a instituição usa material tátil, como próteses de pênis ou vagina, e maquetes em alto-relevo da parte interna dos genitais. “Uma vez aprendemos a usar preservativos com uma banana”, conta Evanei Jesus, 29 anos, que frequenta a instituição desde a adolescência.

“A gente mostra para eles como usar camisinha e outros métodos contraceptivos. Eles precisam tocar, porque o cego vê com a mão”, explica a terapeuta ocupacional do Instituto, Adriana Machado.

Adriana conta que os pais precisam estar atentos para a necessidade de responder questões comuns da adolescência aos filhos não só com a voz, mas também pelo toque. “Quando a menina está menstruada é necessário que a mãe vá e mostre para a filha como usar o absorvente. É necessário fazer com ela para que ela possa fazer sozinha depois”, exemplifica.

A mesma didática do ICB é adotada pelo Centro de Apoio Pedagógico ao Deficiente Visual (CAP), em Nazaré. Segundo a vice-presidente Nalva Guedes, o centro promove palestras com vários temas e sexualidade é um deles. O estudante Ítalo de Aragão, 23 anos, já participou de algumas aulas informativas. “A palestrante explicava a importância do sexo seguro e os perigos das DSTs. Nós ainda tivemos contato com próteses de peito e pênis”, conta. Tanto o CAP como o ICB estão abertos para a população e não têm número fechado de vagas.

Fonte: Correio

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