Entre amor livre e fome, a vida na colônia Cecília, uma malsucedida experiência anarquista do Brasil
Há 130 anos, um grupo de imigrantes italianos chegou ao Brasil e fundou uma colônia agrícola no Paraná. Como todos os imigrantes, traziam sonhos e muita esperança na bagagem. Entretanto, estes também vinham movidos por uma ideologia: liderados por Giovanni Rossi (1856-1943), escritor, engenheiro agrônomo e médico veterinário de Pisa, na Toscana, queriam implementar no Brasil uma comunidade anarco-socialista, batizada de colônia Cecília.
“A colônia Cecília, experiência que buscou pôr em prática os princípios anarquistas e que nasceu em 1890 no Estado do Paraná, é o aspecto mais conhecido do anarquismo italiano no Brasil e sua primeira manifestação. Todavia, existem muitas impressões falsas sobre essa experiência, uma vez que a imagem da Cecília, que transparece nas obras sobre o anarquismo e nas obras de ficção que lhe foram consagradas, deve-se mais à lenda do que à realidade”, pontua a pesquisadora Isabelle Felici, professora de estudos italianos da Universidade de Montpellier, em artigo acadêmico sobre a empreitada intitulado A Verdadeira História da Colônia Cecília de Giovanni Rossi.
“É muito provável que, se a lenda não se tivesse apoderado da história da Cecília, transmitindo uma versão desviada da verdade, a experiência comunitária não teria impressionado tanto as imaginações.”
“O século 19 é o século da ciência, em que os pensadores buscavam novas experimentações. Umas destas experimentações foi a Cecília”, contextualiza à BBC News Brasil o escritor e professor universitário Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa e autor do romance Um Amor Anarquista, ambientado na Cecília. “O idealizador [Giovanni Rossi] era um intelectual com formação na área agrícola, que havia escrito um livro sobre uma experiência fictícia do anarquismo. Ele escolheu um grupo de jovens e resolveram testar as ideias na prática social. Não vieram para fazer a revolução.”
“Cecília era uma colônia anarquista socialista — o anarquismo pela destruição do poder central e o socialismo pelo compartilhamento dos recursos obtidos”, acrescenta o escritor. “Seguindo teóricos da época, seriam mais das ciências aplicadas do que da teórica. O intelectual era Giovanni Rossi.”
De acordo com as pesquisas de Felici, o Brasil não foi a primeira escolha do grupo. Em dezembro de 1889, o jornal italiano L’Eco Del Popolo, de Cremona, publica artigo anunciando que Rossi e seus companheiros iriam testar suas ideias, na prática, no Uruguai. “Quanto a Rossi, ele não dá nenhuma explicação sobre essa mudança de destino, e sua partida para o Brasil é muito discreta”, escreve a pesquisadora.
A bordo do navio Città di Roma, Rossi e seus companheiros embarcaram no porto de Gênova em 20 de fevereiro de 1890. Aportaram no Rio de Janeiro em 18 de março. Ali se abrigaram em uma hospedaria de imigrantes.
“Nós pretendemos constituir aqui uma colônia anarquista, que possa dar à propaganda uma demonstração prática de que nossas ideias são justas e realizáveis, e à agitação revolucionária na Europa auxílios financeiros”, escreveu ele, em carta enviada ao jornal anarquista francês La Révolte.
“Já faz alguns anos que nós discutimos na Itália as vantagens e os perigos que uma tal empresa poderia apresentar; e após ter estudado a questão, nós nos decidimos. Nós partimos às oito do dia 20 de fevereiro, e em Gibraltar uma família de camponeses espanhóis se juntou a nós. Nós partiremos amanhã para Porto Alegre para procurar um terreno propício.”
No dia 26 de março, o grupo embarcou novamente no navio Desterro, com destino a Porto Alegre. Mas a viagem foi abortada em escala no porto de Paranaguá, no Paraná, dois dias depois — porque alguns deles não suportaram os enjoos a bordo. “Nós devíamos ir a Porto Alegre, mas o mal de mar fazia sofrer tanto dois dos nossos companheiros, que decidimos poupá-los de outros cinco ou seis dias de navegação e descer aqui, para fundar a nossa colônia social em alguma parte do Paraná, onde sabíamos que encontraríamos um clima ameno e saudável”, escreve Rossi na edição de 1891 de seu livro Un Comune Socialista.
Rumores de ajuda de dom Pedro
Como os anarquistas italianos vieram parar no Brasil? Uma das mais saborosas histórias a esse respeito aponta um suposto apoiador inusitado: o próprio dom Pedro 2º (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil. No livro Anarquistas, Graças a Deus, a escritora e memorialista Zélia Gattai (1916-2008) recorda a imigração de sua família considerando essa ajudinha do monarca.
“Meu avô [Francesco Gattai] tivera a oportunidade de ler um livreto intitulado: ‘I Comune in Riva ai Mare’, escrito por um certo Dr. Giovanni Rossi — que assinava com o pseudônimo de Cardias —, misto de cientista, botânico e músico. No folheto que tanto fascinara meu avô, Cardias idealizava a fundação de uma colônia socialista experimental, num país da América Latina — não especificava qual —, uma sociedade sem leis, sem religião, sem propriedade privada, onde a família fosse constituída de forma mais humana, assegurando às mulheres os mesmos direitos civis e políticos que aos homens”, escreve ela.
Gattai conta que “nas últimas páginas de seu estudo, de seu plano, fazia um apelo às pessoas que estivessem de acordo com suas teorias e quisessem acompanhá-lo a qualquer parte da Terra, por mais distante, desde que pudessem levar à prática todas as experiências e as ideias contidas no livro, para se apresentarem”.
Ela ressalta que o avô havia encontrado “alguém com dinamismo e inteligência, disposto a tornar realidade um sonho seu e de outros camaradas”. E cita que eram discípulos dos ensinamentos dos teóricos anarquistas Mikhail Bakunin (1814-1876) e Piotr Kropotkin (1842-1921) “à procura de um caminho novo para a humanidade faminta, esfarrapada, ensanguentada, talvez esquecida de Deus”.
Assim, o italiano Gattai planejou embarcar. Compartilhou o desejo com a mulher e decidiram integrar a empreitada. Tinham cinco filhos pequenos, a mais nova ainda bebê.
Em seu livro, Gattai define Rossi como um poeta que “herdara da família incontestável vocação musical” e “deixando de lado poesia e música, inquieto, preocupado com os problema sociais, preferiu os estudos práticos, formando-se em agronomia, dedicando-se ao jornalismo e aos problema sociais e filosóficos”.
“Em suas idas a Milão, costumava hospedar-se com um parente, músico, o maestro Rossi, cuja casa era frequentada por músicos de renome, entre eles um certo Carlos Gomes, brasileiro, autor de óperas”, pontua a memorialista. “Encontraram-se os dois, Giovanni Rossi e Carlos Gomes, na ocasião em que o músico brasileiro se entregava com entusiasmo à partitura de mais uma ópera, ‘Lo Schiavo’, que pretendia tocar para o imperador do Brasil, cuja chegada a Milão estava sendo aguardada.”
Ela conta que Carlos Gomes (1836-1896) teria falado maravilhas do Brasil a Rossi. “Cardias o escutou fascinado! Essa era a terra que buscava, ideal para sua experiência”, relata Gattai. “Não havia dúvidas. Pôs de lado imediatamente o projeto, ainda embrionário, de tentar o Uruguai. O Brasil o chamava. Entusiasmou-se ainda mais ao saber da próxima chegada de dom Pedro 2º a Milão.”
“Cheio de esperanças, Cardias resolveu escrever uma carta ao imperador do Brasil”, narra a memorialista. “Na longa carta explicou com detalhes seus planos a dom Pedro 2º, pedindo que lhe permitisse provar a seriedade da experiência e solicitando terras e apoio para a ida dos idealistas para o Brasil.”
Ela conta que a missiva foi entregue por ele mesmo, em mãos, ao médico do imperador. E que, “algum tempo depois, já no Brasil”, o monarca se interessou “pelas ideias e pelo arrojo” de Rossi. E “impressionado”, dom Pedro “não teve dúvidas”, segundo Gattai: “mandou que respondessem à sua carta: felicitava-o por seu trabalho e oferecia-lhe a terra solicitada para a colônia experimental”.
“Estabeleceu-se, então, uma correspondência entre o jovem idealista e o imperador”, salienta a memorialista, dizendo que Pedro 2º deu aos italianos “a posse de 300 alqueires de terras, incultas e desertas, num local entre Palmeira e Santa Bárbara, no Paraná, e, ainda, a promessa de ajuda e apoio para o empreendimento”.
Segundo o relato de Gattai, seu pai dizia que a história era mostra de que eles eram “importantes”, pois para que “estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do maestro Carlos Gomes e de dom Pedro 2º, imperador do Brasil.”
Conforme esclarece à BBC News Brasil o historiador Paulo Rezzutti, autor da biografia D. Pedro II: A História Não Contada, o monarca brasileiro esteva em longa viagem pela Europa em busca de tratamento de saúde, consultando-se com profissionais renomados como Louis Pasteur (1822-1895) e tratando-se com águas termais em spas famosos da época. “Foi uma de suas mais longas viagens. Ao longo de um ano, a partir de julho de 1887, ele esteve em Portugal, França, Alemanha e Itália”, diz Rezzutti.
No início de 1888, ele visitou Florença prestigiando a apresentação pública do quadro “Independência ou Morte”, obra-prima de Pedro Américo (1843-1905), hoje integrante do acervo permanente do Museu Paulista.
Em maio, passou o mês em Milão, onde teve uma execução privada de trecho de “Lo Schiavo”, de Carlos Gomes. “Mas ele estava com a saúde bastante debilitada, ficou a maior parte do tempo acamado. Duvido que tenha recebido alguém para tratar de qualquer outro assunto”, comenta Rezzutti, que assegura não haver nenhum indício de relação entre o imperador e os anarquistas que fundaram Cecília.
Para Sanches Neto, essa história do imperador não passa de boataria. “Bobagem sem pé nem cabeça, nada a ver com dom Pedro”, explica. “Rossi e o grupo de pioneiros iam para o Rio Grande do Sul com um dinheiro coletado na Itália para comprar a terra, mas um dos amigos passou mal, desceram no porto de Paranaguá. No Paraná, descobriram que havia colônias italianas e terras baratas, compradas a prazo. Adquiriram uma fazenda em Palmeira, e se mudaram para lá.”
“De fato, segundo uma versão muito propagada da história da Cecília, a colônia teria sido implantada no Brasil graças à doação das terras situadas no Estado do Paraná, pelo imperador dom Pedro 2º a Giovanni Rossi”, afirma Felici. “Essa versão do nascimento da Cecília comporta numerosas inverossimilhanças, em particular no que se refere às datas.”
Conforme atesta a pesquisadora, a principal incoerência é o fato histórico de que os anarquistas chegaram ao Brasil com a República já proclamada, ou seja, sem que houvesse qualquer possibilidade de serem ajudados pelo imperador, deposto meses antes.
Em terras paranaenses
Desembarcados em Paranaguá, Rossi e seus companheiros pararam por alguns dias no alojamento reservado aos imigrantes. Dali tomaram um trem até Curitiba. Na cidade havia um escritório, chamado de Inspetoria de Terra e Colonização, destinado a organizar as terras desocupadas, os loteamentos vendidos aos imigrantes. No dia 1º de abril, o grupo de Rossi fez o reconhecimento do terreno.
De acordo com Felici, o italiano gostou muito de Palmeira, em cujo município a colônia se assentaria. Rossi “recenseou todas as vantagens que ela apresentava, da igreja à agência de correio e telégrafo, passando pelo clube literário e a sociedade de teatro”. Ele também enalteceu o fato de que a cidade contava com “um grupo de pessoas notáveis”, algumas delas tendo estudado nos Estados Unidos ou na Europa. O imigrante logo ficou amigo de um médico local, Franco Grillo, que acabou auxiliando os primeiros trabalhos.
Não há um consenso sobre quantos foram os fundadores, mas provavelmente não chegavam a uma dezena. Com o passar dos meses, outros italianos se juntaram. “Havia um fluxo desorganizado de gente por causa da propaganda na Itália”, afirma Sanches Neto, aludindo ao fato de que Rossi costumava escrever cartas sobre Cecília, publicadas em jornais italianos. “Havia época em que eram 50 moradores, outras com 250. Isso gerava problemas de manutenção. Foi uma zona do começo ao fim, pois assim que o imigrante percebia que podia comprar terras a prazo, [saía dali e] ia cuidar da própria vida.”
“O melhor experimento que eles fizeram foi o amor livre, o casamento poliândrico”, comenta o escritor. A ideia era que uma mulher tivesse vários homens, “para que os filhos fossem da colônia, e não de um pai”. Havia uma luta contra a ideia de paternidade conhecida. De acordo com Sanches Neto, acreditava-se que “este era o caminho para a vida coletiva: destruir a célula familiar tradicional”. “Rossi dividiu abertamente uma mulher com dois outros homens”, exemplifica.
Essa questão tornava Cecília diferente da iniciativa anterior de Rossi, a associação agrícola cooperativa de Cittadella, implementada por ele anos antes em Cremona, na Itália. Cittadella também era anarquista e socialista — autogestionada, coletivizada e socializada —, contudo ali as relações pessoais eram como em qualquer outra sociedade contemporânea. Em Cecília, Rossi e seus companheiros vivenciaram o amor-livre.
Nos relatos do italiano, os primeiros tempos da colônia são tratados de forma positiva. “Ele se refere com um tom alegre aos problemas administrativos da comunidade nascente; descreve com afeição os animais domésticos que compartilham a vida da colônia e evoca, mas sem se tornar pesado demais, os aspectos negativos da vida na Cecília: essencialmente a pouca variedade da alimentação e o excesso de trabalho”, escreve Felici.
“Ele não se detém sobre o fato de que a vida que ali se leva é muito rude, que as refeições são frugais, os cobertores sempre insuficientes, o trabalho difícil; ele fica feliz de anunciar que a vida comunitária, apesar de alguns ‘incidentes desagradáveis’, das querelas e do ciúme do marido da única mulher do grupo, desenvolve-se de maneira satisfatória, ‘sem regulamentos nem chefes’.”
Entretanto, tudo isso era parte dos esforços de divulgação. “Contumaz missivista, Rossi usava as cartas para se comunicar com amigos e parentes e também para fazer propaganda, um pouco exagerada, dos sucessos da colônia”, contextualiza Sanches Neto.
“Por uma reação natural ao formalismo estéril e funesto do período passado, o grupo quis ser absolutamente inorganizado”, escreveu o italiano, sobre a rotina da colônia. “Nenhum pacto, nem verbal, nem escrito, foi ali estabelecido. Nenhum regulamento, nenhum horário, nenhum cargo social, nenhuma delegação de poder, nenhuma regra fixa de vida ou de trabalho.”
Todo o dinheiro arrecadado pelo grupo ficava em uma lata, ao alcance de quem precisasse. A cozinha era comunitária e todos tinham de se encarregar das tarefas. Boa parte dos integrantes da comunidade não tinha nenhuma experiência prévia com trabalhos agrícolas — a inaptidão aos trabalhos rurais explica parte do insucesso futuro da empreitada. “Instrução, música, teatro, dança, ainda não foram possíveis”, escreve Rossi, em carta da época. “O trabalho produtivo tem nos absorvido inteiramente.”
“A colônia Cecília é considerada a única experiência anarquista da América e a mais conhecida do mundo, uma vez que há registros feitos pela imprensa internacional à época, com base nas informações que o Rossi passava”, comenta à BBC News Brasil o pesquisador e escritor Arnoldo Monteiro Bach, autor do livro Colônia Cecília e fundador de um memorial dedicado ao tema, no município de Palmeira.
Rossi voltou ao seu país natal no fim de 1890 para recrutar mais colonos para sua experiência. Havia um esforço, da parte dele, para pintar uma imagem da comunidade melhor do que a realidade em si.
Não só dele, aliás. No início de 1891, enquanto circulava pelo seu país natal propagandeando o “sucesso” da empreitada, ele recebeu uma carta de um companheiro que estava no Paraná. “Vocês não podem acreditar o quanto é boa a nossa situação, que vai melhorando sempre mais. Além do mais, temos uma água excelente (…). Quanto aos animais selvagens, nós ainda não vimos nenhum, exceto um pequeno macaco que foi morto por um dos nossos companheiros”, escreve ele.
“Por ora, os nossos alimentos são: arroz, feijão, polenta, porco, carne de vaca, salame, café, leite, tudo em grande abundância. O pão é pouco, porque é preciso comprá-lo, mas assim que nós encontrarmos o material e a cal para fazer um forno, então deixaremos de comer polenta e passaremos ao pão.”
O trabalho de divulgação deu certo. Segundo levantamento da pesquisadora Felici, em maio de 1891 a colônia teve a maior população de sua história, com cerca de 250 habitantes.
Fracasso
Mas, ao contrário das expectativas, a superpopulação não resultou em sucesso — na verdade, condenou a experiência ao fracasso. Felici conta que nesse momento “a miséria se instala, as condições de vida são insuportáveis: os colonos se amontoam nas barracas construídas no início de 1891, a alimentação é insuficiente”.
Sanches Neto diz que muitas vezes, “para pagar as contas, os anarquistas passaram a trabalhar para o governo abrindo estradas”. Em outubro de 1892, um dos moradores da colônia escreveu que os alimentos diminuíam a cada dia. “Chegou-se a passar fome, com as angústias associadas à luta pela existência”, registrou ele.
Comerciantes da cidade de Palmeira acabaram sendo fiadores dos colonos, vendendo para eles mantimentos a prazo. Mas todo esse cenário de dificuldades precipitou divergências e desentendimentos. Rossi afirmou que o anarquismo estava “intelectualmente prostituído”, já que havia famílias que jejuavam para que outras comessem.
A colônia Cecília terminou em 1894. Segundo Sanches Neto, “com a desorganização total dos grupos”. “Muitos foram para a cidade, arrumaram emprego como jornalistas ou na rede ferroviária que começava no Paraná. Outros compraram terras. O avô da Zélia Gattai se envolveu em um assalto numa relojoaria em Curitiba e foi para São Paulo”, enumera ele. “Eles se dispersaram pelo Brasil. Este foi o lado bom, pois melhoraram o material crítico do país.”
“O experimento da Colônia Cecília terminou por vários motivos”, afirma texto descritivo do memorial mantido pela prefeitura de Palmeira. “O principal foi a pobreza material, chegando mesmo a condições de miséria. Em segundo lugar, a hostilidade da vizinha comunidade polonesa, fortemente católica. O próprio clero e as autoridades locais promoveram o ostracismo dos anarquistas. Enfim, havia as doenças, ligadas à desnutrição, à falta de condições de saneamento adequadas, além dos problemas internos ligados às dificuldades de adaptação ao estilo de convivência anarquista, particularmente no tocante ao amor livre, que, embora teoricamente fosse aprovado por todos, na prática, despertava temores, especialmente entre as camponesas.”
Cecília se tornou de um só dono. “Uma das famílias pagou as terras e ficou com ela”, diz o escritor.
Desiludido, o idealizador da empreitada decidiu ficar no Brasil. Morou em Taquari, no Rio Grande do Sul, e depois em Rio dos Cedros, Santa Catarina. Voltou para a Itália apenas em 1907.
“Havia, no entanto, um fato imprevisível para a mente cartesiana de Rossi”, escreve Sanches Neto no posfácio da quarta edição de Um Amor Anarquista, a ser publicada em breve. “Ele acabou se apaixonando pela mulher que serviu como experiência amorosa.”
“No final, quando a colônia se desfez, o ex-socialista estabeleceu uma relação burguesa com ela, voltando à Itália, depois de passagens, agora como um conceituado professor de disciplinas agrícolas, por dois Estados vizinhos: Rio Grande do Sul e Santa Catarina”, prossegue Sanches Neto.
“Rossi, o idealista, e a colônia Cecília, um verdadeiro laboratório social, cifravam a inviabilidade de uma sociedade construída ideologicamente, pois haveria sempre forças individuais se impondo, forças que poderiam ser justas (como o amor) ou injustas (como o egoísmo). Rossi sai da experiência desiludido com o socialismo, uma desilusão que se tornou tão frequente ao longo do século 20.”
Ficou a história dessa “experimentação de como o ser humano consegue conviver com as diferenças”, comenta Bach. Para o pesquisador, este é o grande legado deixado pelos anarquistas italianos. “Isso é simplesmente extraordinário e tem despertado o interesse de pesquisadores e historiadores do mundo todo que buscam informações dessa história incrível da humanidade”, afirma ele. “[A experiência] abarca ciências como antropologia, sociologia, filosofia, e pesquisadores se debruçam para compreender as complexas relações humanas.”
Sanches Neto esteve várias vezes no lugar onde funcionou a colônia. “É uma região hoje transformada em propriedade particular, circundada por campos de soja”, explica. Havia ainda um “primeiro cemitério anarquista”, já que “eles não podiam enterrar seus mortos no campo santo por serem ateus”. Segundo o escritor, destas tumbas não há mais nenhum sinal: são somente terras onde é cultivada soja.