‘Extermínio de opositores foi essencial para instalar modelo neoliberal em ditadura chilena’, diz jornalista

O escritor e jornalista Javier Rebolledo fala sobre a colaboração de duas das famílias mais ricas do Chile, os Matte e os Kast, com a ditadura militar no país

Os livros que abordam a história da ditadura de Augusto Pinochet no Chile (1973-1990) costumam se dividir em dois universos diferentes: os que investigam e recriam o ocorrido nos porões dos serviços secretos, onde os opositores ao regime eram torturados e assassinados, e os que retratam a forma como os economistas da Universidade de Chicago instalaram o modelo econômico neoliberal no país, com o apoio do ditador, passando por cima do projeto socialista de Salvador Allende (1970-1973).

O jornalista e escritor chileno Javier Rebolledo, especialista em reportagens sobre casos de violações aos direitos humanos, aproximou esses dois universos em seu livro A la Sombra de Los Cuervos – Los Cómplices Civiles de la Dictadura [“Por Trás da Sombra dos Corvos – Os Cúmplices Civis da Ditadura”, em tradução livre] (editora Ceibo). A obra é a terceira e última parte da chamada Trilogia dos Corvos realizada pelo autor e fala sobre a participação que tiveram os apoiadores civis da ditadura chilena a partir da história de duas das mais ricas famílias do país e suas relações tanto com o Palácio de La Moneda quanto com o aparato repressivo.

O livro foi lançado no Chile em agosto e já teve boa repercussão no meio político – o autor foi convidado a apresentá-lo na Comissão de Direitos Humanos do Congresso Nacional, em Valparaíso, nesta quinta-feira (10/09).

Comunicaciones Villa Grimaldi

O jornalista e escritor Javier Rebolledo, autor da Trilogia dos Corvos, sobre a ditadura chilena

Rebolledo falou com Opera Mundi durante um dos intervalos de sua participação na comissão, entre fotos e livros autografados aos parlamentares. Leia os principais trechos da conversa a seguir.

Opera Mundi: Seu livro é sobre os civis que estiveram envolvidos com a ditadura, mas não todos os civis.
Javier Rebolledo:
Claro. Até porque foram muitos, e porque ainda existem muitas sombras sobre esse tema. Os civis foram mais inteligentes que os militares, e não é tão fácil encontrar provas sobre o envolvimento desses muitos. No meu trabalho, eu me concentrei na participação de duas famílias bastante representativas: os Matte, uma das famílias mais poderosas do Chile, dona da Companhia de Manufatura de Papéis e muitos outros negócios [os Matte possuem o segundo maior patrimônio do Chile e uma das três fortunas chilenas que aparecem entre os mil primeiros do ranking da revista Forbes]. Nos primeiros dias da ditadura, quando foi preciso afogar diversos focos de resistência civil ao golpe [as chamadas Caravanas da Morte], a família Matte colaborou com esses atos, especialmente em zonas rurais próximas às suas propriedades, onde dezenas de trabalhadores foram assassinados. A investigação judicial de alguns crimes ocorridos na região de Laja [no sul do Chile], que eu pude acompanhar para escrever o livro, conseguiu comprovar o uso de veículos da empresa, a elaboração de listas com nomes de trabalhadores, o oferecimento de material diverso, desde cordas, combustível e outros produtos utilizados nos crimes, além do próprio edifício da empresa, utilizado durante a operação. E não somente isso; também participaram do ocultamento desses crimes, o que envolve pelo menos um alto executivo da empresa, que sabia dos crimes e organizou dentro da empresa os trabalhos para apagar as pistas.

OM: A outra seria a família Kast.
JR: Sim. O caso da família Kast é mais profundo, porque começa com o caso de Michael Kast, o patriarca da família, que foi citado por testemunhas da morte e do desaparecimento de trabalhadores na cidade de Paine [região central do Chile], também em 1973. Testemunhas asseguram ter visto membros da família Kast, liderados por Michael, levando seus veículos para a delegacia, para que fossem usados nos operativos de sequestro de trabalhadores e posterior desaparecimento dessas pessoas, não se sabe se vivas ou mortas. Nessa mesma delegacia, eles participaram de um churrasco com os mesmos policiais que usaram os veículos da família Kast e que hoje respondem a processo pelo desaparecimento dos trabalhadores. Neste caso, podemos apontar uma responsabilidade direta e explícita dos Kast. Depois tem a relação deles com toda a estrutura de poder e com a refundação do país no que diz respeito ao seu modelo político e econômico.

Capa da edição chilena do livro "A la sombra de los cuervos"

Capa da edição chilena do livro “A la sombra de los cuervos”

OM: E como foi essa relação?
JR: A participação dos Kast na ditadura é mais conhecida através de sua colaboração direta com o governo, e isso tem a ver com Miguel Kast, filho de Michael, que foi ministro do Pinochet. Ele foi um dos chamados Chicago Boys [economistas chilenos formados pela Universidade de Chicago, que implantaram o neoliberalismo no país durante a ditadura, sob supervisão direta de Milton Friedman, considerado um dos pais da doutrina neoliberal], trabalhou como ministro do Planejamento e depois foi presidente do Banco Central, entre outros cargos.

OM: Como você descreve Miguel Kast no livro?
JR: Ele acreditava no neoliberalismo, era uma convicção muito forte. Ele achava que o projeto socialista de Allende precisava ser eliminado desde a raiz e havia muitos como ele na equipe econômica, que viam na ditadura uma forma de implantar o modelo à força, com uma estrutura repressiva capaz de enfrentar qualquer tipo de descontentamento social caso os efeitos desse modelo não agradassem a todos os setores. Eles eram conscientes disso.

OM: Através da história de Kast, o livro consegue fazer unir essas duas faces da ditadura, a do extermínio de opositores com a da imposição do modelo neoliberal.
JR: Sim, mas porque efetivamente foi assim. A perseguição e desaparição de todas as forças de esquerda, lideranças sindicais, movimentos sociais, foi essencial para que se pudesse implantar o modelo neoliberal. Se não fosse assim, se fosse num governo democrático, se isso tivesse que passar pelo crivo da democracia ou se as pessoas pudessem protestar contra os efeitos disso, não teria dado certo, a reforma não teria terminado. Para que pudesse ser implantado, houve os custos que tiveram que pagar, com sangue, com as vidas daqueles que resistiram.

OM: Qual foi exatamente o papel desempenhado por Kast durante a implementação do modelo?
JR: Kast foi um dos responsáveis, junto com José Piñera [outro Chicago Boy, que também foi ministro de Pinochet e é irmão do ex-presidente Sebastián Piñera], pela criação de todos os pilares do modelo neoliberal chileno, que depois serviu de exemplo para modelos semelhantes em outros lugares do mundo. A reforma educacional da ditadura passou por ele, assim como areforma das leis do trabalho, a reforma previdenciária, que acabou com a seguridade social estatal e criou a previdência privada obrigatória, e a reforma da saúde, que também acabou com a gratuidade da saúde pública. Ele foi um dos nomes civis mais importantes da ditadura, sem nenhuma dúvida.

OM: Durante sua participação na Comissão de Direitos Humanos, o deputado e ex-líder estudantil Gabriel Boric disse, em alusão às reformas propostas por Bachelet atualmente, que o desafio do Chile é provar que é possível reformar o país democraticamente. O que você acha dessa afirmação?
JR: Concordo plenamente. Temos que ter muito cuidado, para não justificar tergiversações com isso, mas a história recente deste país conta que quando se tentou fazer reformas pela via democrática, não foi possível, e se instalou a violência, e através da violência foi possível instaurar a ferro e fogo todas as reformas que quiseram. Agora, os mesmos nomes estão por trás da resistência [às reformas de Bachelet], como os deputados José Antonio Kast e Felipe Kast – irmão e filho de Miguel Kast, respectivamente.

OM: O Chile condenou muitos militares por violações aos direitos humanos, mas nenhum civil foi sequer processado – nem mesmo as famílias Matte e Kast, apesar das evidências conhecidas pela Justiça e mostradas em seu livro. Por que essa impunidade?
JR: Muito simples: porque são as famílias mais ricas do país. Existe um erro muito grande que todos nós cometemos, quando supomos que todos os civis estão subordinados ao poder político. Quando vemos os casos de corrupção no Chile atualmente, vemos que o poder político é que está subordinado ao poder econômico, e isso é assim desde a ditadura, e cada vez mais. Mesmo em casos de violações aos direitos humanos. Por exemplo, os crimes cometidos no Sul, em favor da família Matte. O coronel que dirigia o regimento do exército, que foi responsável por digitar o expediente com o qual se encobriu todos os crimes contra os trabalhadores da região, terminou sendo intendente da província de Los Ángeles [sul do Chile], e depois da ditadura foi contratado como alto executivo das empresas da família Matte.

OM: Os militares não ficaram incomodados com o fato de que os civis não responderam a processo, como eles?
JR: Sem dúvida. Essa foi a razão pela qual se produziu um rompimento entre os civis e os militares. Mas também é bom lembrar que nem todos os militares foram processados e condenados. Pinochet, por exemplo, terminou impune, mas não somente ele. Outros tampouco foram sequer processados, como os civis, outros estão protegidos até hoje pelos pactos de silêncio. Mas efetivamente, os que foram condenados, como Manuel Contreras, reclamam muito da impunidade aos civis, e creio que a única coisa boa para a sociedade nessa impunidade é que essa é a razão pela qual o exército chileno não daria novamente um golpe de Estado.

OM: Há alguns anos, Opera Mundi publicou uma reportagem que contava como empresários brasileiros ajudaram a arrecadar fundos para patrocinar as atividades dos que impulsionaram o golpe de Estado no Chile, em 1973. Há algo no seu livro a respeito desse fato?
JR: Não. Se tivesse lido a reportagem, talvez buscasse algo a respeito (risos). Mas também porque minha investigação ficou concentrada nos casos dessas duas famílias, os Matte e os Kast. Eu sei que um empresário, chamado Ricardo Claro – antigo dono do canal de televisão Megavisión e outras empresas de comunicação – mantinha relações com grupos econômicos de outros países da região durante os anos da Operação Condor, mas isso não está no livro, justamente porque carece de informação sobre se essas relações tinham algo de ilícito ou não. O que eu publico em outros livros meus, como El Despertar de los Cuervos [“O Despertar dos Corvos”, sobre os centros de tortura que já operavam no Chile antes mesmo do golpe de 1973], é que houve uma clara colaboração no âmbito da repressão, e muitos militares brasileiros vieram ao Chile para realizar torturas e para ensinar os chilenos a torturar. Neste livro, há relatos de testemunhas dizendo que foram torturadas por agentes que falavam português e alguns que puderam ver agentes chilenos usando camisetas com alusão ao Brasil.

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