Em 1998, depois de lançar um livro sobre seu pai, a escritora Dirce de Assis Cavalcanti deu de cara com uma frase pichada em sua porta ao chegar em casa: “Filha de assassino”.
Dirce ouviu a frase pela primeira vez quando tinha 11 anos, dita por uma colega no colégio interno, e depois muitas outras vezes ao longo da vida.
“Aquela foi a última vez que recebi essa pecha”, suspira ela aos 87 anos, em conversa com a BBC News Brasil, em seu apartamento no Flamengo, na zona sul do Rio de Janeiro.
A pecha de assassino acompanhou toda a vida de seu pai, Dilermando de Assis – que entrou para a história como o homem que matou o escritor Euclides da Cunha.
O célebre autor de Os Sertões é o homenageado deste ano na 17ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), de 10 a 14 de julho. A justa homenagem a um dos expoentes da literatura brasileira no evento é, para Dirce, motivo de “preocupação, aflição e agonia”.
“Porque sei que vão falar muito no papai, e falar mal, certamente, porque muita gente não conhece a história como foi”, acredita ela. “Toda vez que se toca no Euclides da Cunha, o assassino dele vem à tona.”
Dilermando foi amante de Ana Emília Ribeiro da Cunha, a mulher de Euclides.
O caso começou em 1905, durante uma longa expedição do escritor pela Amazônia, chefiando a comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, na fronteira entre os dois países.
Já mãe de três filhos de Euclides, Ana, de 33 anos, se apaixonou por Dilermando, um jovem cadete de 17 anos. Viveram quatro anos de romance proibido, e tiveram dois filhos fora do casamento.
Em 15 de agosto de 1909, o escritor chegou armado à casa de Dilermando para vingar sua honra. Travou-se um duelo, e Dilermando levou cinco tiros – mas era campeão de tiro, revidou, e matou Euclides da Cunha.
Dilermando foi absolvido por legítima defesa, mas foi condenado pela imprensa da época e pela opinião pública.
O caso se desdobrou em novas tragédias, com as mortes posteriores de Euclides da Cunha Filho e do irmão de Dilermando, Dinorah de Assis.
Desagravo
Nas últimas décadas, Dirce – que é a única filha do segundo casamento do pai – tem lutado para tirar do nome do pai a alcunha de “assassino”.
“O que eu mais quero, todo o meu empenho, é tirar essa palavra de sua biografia, que é tão pesada, tão feia”, diz Dirce.
“Ele não é o assassino. Ele matou por legítima defesa. É só isso que eu gostaria de deixar definido.”
Dirce é escritora, poeta e artista plástica. A sala de seu apartamento é povoada por suas pinturas e esculturas, além de um portarretrato do pai, ainda moço.
“Ele usava barba para parecer mais velho com a Ana, para não haver muita diferença de idade entre eles. Houve um amor muito grande da parte dos dois, para enfrentar inclusive tudo que eles enfrentaram vida afora, que não foi pouca brincadeira.”
Por ocasião da Flip – e das homenagens a Euclides -, seu livro O Pai terá uma nova edição lançada nesta semana (Ateliê Editorial).
“Eu vinha escrevendo esse livro a vida inteira, aos pouquinhos”, afirma. “Eu sempre achei que eu tinha que defender o papai de alguma maneira.”
Na narrativa autobiográfica, Dirce conta a história de Dilermando a partir de seus olhos de filha, desvelando a tragédia assim como ela a foi descobrindo, aos poucos, na infância, em uma casa cercada de segredos.
Na primeira infância, suas lembranças são de um pai extremamente carinhoso, que a ensinou a escrever em seu colo aos 4 anos, e que a levava para passear, para museus.
Aos 11 anos, a frase que ouviu na escola impôs uma ruptura ao universo que conhecia até então – revelando o segredo que seus pais haviam conseguido ocultar:
“Ela não presta. O pai dela matou um homem”, disse sua colega. A frase lhe pareceu tão ousada, tão despropositada, que só podia ser verdade.
‘Acontecimento terrível da vida brasileira’
Euclides da Cunha foi aclamado como escritor após a publicação de Os Sertões, em 1902, sobre a Guerra de Canudos.
Fora enviado como jornalista pelo O Estado de S. Paulo (à época, A província de S. Paulo) para acompanhar o primeiro conflito armado da recém-proclamada República, no arraial liderado pelo beato Antônio Conselheiro, no interior da Bahia. No livro, Euclides narrou o confronto entre os soldados e os sertanejos monarquistas, que acabaram dizimados pelas tropas republicanas.
A obra lhe rendeu a consagração no círculo intelectual brasileiro, ingressando na Academia Brasileira de Letras e no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
No prefácio de O Pai, o crítico literário Antonio Candido descreve a morte do escritor como “um dos acontecimentos mais terríveis da vida brasileira” no século passado.
Sua morte completa 110 anos em agosto e já foi tema de livros, peças, uma ópera – Piedade, composta por João Guilherme Ripper – e da minissérie Desejo, da Rede Globo, que em 1990 estrelou Vera Fischer no papel de Ana, e Guilherme Fontes vivendo o jovem Dilermando.
A tragédia da Piedade
O episódio ficou conhecido como “a tragédia de Piedade”, em referência ao bairro no subúrbio do Rio onde Dilermando vivia com seu irmão, Dinorah de Assis – e onde Euclides apareceu de surpresa em um domingo. Era 15 de agosto de 1909.
Ana não aparecia em casa desde sexta-feira. Euclides sabia do romance, e o casamento já passara por crises ferozes.
Segundo os autos do processo, reunidos no livro Crônica de uma tragédia inesquecível, organizado por Walnice Nogueira Galvão, Dinorah abriu a porta da casa, e Euclides entrou com uma mão no bolso.
Na sala, sacou o revólver que pegara emprestado de um parente, dizendo que precisava matar “um cachorro louco” que rondava sua casa.
Ana se escondera na edícula da casa com seu filho caçula Luiz, o Lulu – o segundo filho que teve com Dilermando, louro como o pai. Euclides se referia à criança como “uma espiga de milho em meio a um cafezal”, no meio da família morena.
Do quarto, segundo relatou nos autos, Ana ouviu Euclides entrar na casa gritando “corja de bandidos” e “vim para matar ou morrer!”. Em seguida, ouviu os tiros.
No livro Matar para não morrer: A morte de Euclides da Cunha e a noite sem fim de Dilermando de Assis (Objetiva, 2009), a historiadora Mary Del Priore resume os eventos que se sucederam:
Euclides foi atrás de Dilermando no quarto, onde havia se fechado para vestir o dólmã militar e receber o escritor composto. Entrou atirando, e atingiu Dilermando na virilha e no peito.
Seu irmão, Dinorah, tentou conter Euclides, mas levou dois tiros do escritor. Quando Dinorah se virou para ir atrás de uma arma, Euclides o atingiu na espinha.
Euclides voltou-se novamente para Dilermando, que nesse meio tempo alcançara sua Smith and Wesson. No duelo que se seguiu, Euclides deu mais três tiros em Dilermando, mas o jovem aspirante revidou com três tiros no escritor: no ombro, no braço e a bala fatal – do lado direito do peito.
“Uma hemorragia no pulmão fez o resto. Euclides caiu na porta da frente, entre as escadas e o modesto jardim”, descreve Del Priore.
Nos autos do processo, Ana relatou “que depois disso ficou tudo em silêncio e Dinorah veio abrir-lhe a porta que foi trancada por fora, dizendo: ‘sinh’Aninha, estamos todos mortos, seu marido morreu, assim como Dilermando e eu também vou morrer.”
Dinorah e Dilermando sobreviveram. Já Euclides teve o corpo velado na Academia Brasileira de Letras.
‘Doloroso drama de sangue’
“Hontem à tarde, na cidade molhada de aguaceiros contínuos estalou como um raio, na redação dos jornaes, uma notícia atrós: Euclydes da Cunha foi assassinado!”, noticiou o jornal Gazeta de Notícias no dia seguinte, conforme a grafia da época. E continuou:
“Era possível prever tudo, menos que Euclydes da Cunha, homem de costumes austeros, de vida regularíssima, sem lutas e sem inimigos, cercado de admiração ao seu formidável saber e ao seu excepcional talento, fosse assim assassinado.”
O tom de choque e perda irreparável reverberou pelos jornais da época, trazendo manchetes como “O assassinato do ilustre escriptor” e “Um doloroso drama de sangue”.
De acordo com a historiadora Mary Del Priore, para além da revolta com a morte de um dos grandes literatos do Brasil naquela época, somou-se o julgamento – e a condenação pública – do polêmico romance extraconjugal, e com 16 anos de diferença de idade, entre Ana e Dilermando.
“Quando a imprensa, que estava se multiplicando e tinha um papel importantíssimo, se abate sobre esse casal, é para arrasar com essa mulher mais velha que se apaixonou por um jovem mais moço, enquanto ele, com sua juventude e ingenuidade, é retratado como um aproveitador”, aponta a historiadora.
“O que a gente vê em cena, e não está dito, é toda essa problemática da honra masculina, que num país machista não atinge só as mulheres, mas atinge os homens também, porque é exigido deles um papel ideal”, diz Del Priore. “Marido corneado imediatamente tem que reagir e tem que matar. Então a gente vê aí encenado já uma primeira tragédia shakespeariana, em que você já tem três vítimas.”
‘Segundo ato’ da tragédia
Depois da morte de Euclides, Ana, viúva, se casou oficialmente com Dilermando, e o casal teve mais cinco filhos.
Sete anos depois, a tragédia da Piedade fez mais uma vítima.
Em 4 de julho de 1916, Euclides da Cunha Filho, conhecido como Quidinho, decidiu vingar o pai. Aos 21 anos, o aspirante da Marinha foi atrás de Dilermando em um cartório, onde o encontrou debruçado sobre um processo.
Atirou em Dilermando pelas costas, dando início “a um emocionante e verdadeiro duelo” ao fim do qual “os dois contendores tombam ensanguentados no chão”, conforme descreveu o jornal “A noite”.
Euclides Filho acertou quatro tiros em Dilermando, que andava armado, conseguiu alcançar sua arma e revidou, matando Euclides Filho – seu enteado, um dos três filhos de Ana com Euclides.
Apesar de gravemente ferido, Dilermando novamente sobreviveu. E novamente foi condenado pela imprensa.
O jornal “O Paiz” noticiou: “Assassino do pai, matou também o filho”, no “2º acto de uma tragédia emocionante”, cometido por ninguém menos que Dilermando – “o nome de criminoso jamais esquecido pelo povo”.
O escrutínio público sobre Ana não foi mais generoso, atribuindo-lhe a pecha de mãe adúltera, mãe culpada, cúmplice do padrasto assassino.
A vítima de quem ‘ninguém lembra’
Irmão mais moço de Dilermando, Dinorah de Assis era aspirante da Marinha e trilhava uma promissora carreira no futebol – ou “foot-ball”, como o esporte recém-importado da Inglaterra era tratado no noticiário.
Mas a bala que ficou cravada na espinha após os tiros de Euclides foram lhe tirando os movimentos pouco a pouco.
No ano seguinte à tragédia da Piedade, ainda conseguiu competir pelo Botafogo, e se tornou campeão carioca – no título de 1910 que deu ao time a alcunha de “glorioso”.
Dinorah acabou ficando paralítico e enfrentou a depressão, o alcoolismo e a mendicância. Após outras tentativas, conseguiu se suicidar em 1921.
“Ele (Euclides) praticamente matou meu tio, que não tinha nada com a história”, diz Dirce. “Ele ficou um trapo humano e se suicidou, se jogou no rio Guaíba e se afogou aos 32 anos. Essa é uma historinha que ninguém conta.”
Segundo casamento
Depois da morte de Quidinho, Ana e Dilermando ainda ficaram juntos cerca de dez anos. Separaram-se quando ela tinha 50 anos, e Dilermando se apaixonou por uma mulher mais jovem, Maria Antonieta de Araújo Jorge, a Marieta.
A união foi rejeitada pela família de Marieta, inicialmente mantida em segredo e cercada de vergonha. “A família toda era muito dura com ela”, conta Dirce. “Ficar com o Dilermando – imagina!” Nos primeiros anos morando juntos, a mãe mal saía de casa, e nunca o fazia acompanhada de Dilermando. Não queriam que soubessem que estavam juntos.
Dirce de Assis Cavalcanti é a filha única desta segunda união. “Eles não queriam ter filhos. A minha mãe não queria. Fez uns sete ou oito abortos. Quando engravidou de novo, o médico não deixou que ela fizesse outro, e eu nasci por isso. Estou aqui por acaso”, diz. A mãe vivia chorando, lembra.
Já menina, ela percebeu que sua casa “não era como a das outras pessoas”. Nunca recebiam visitas. O pai se fechava no escritório para atender a telefonemas. “Sempre havia aquele segredo, aquele mistério, e ninguém me dizia nada.”
Até então, Dirce tinha paixão pelo pai. Quando ele chegava para buscá-la no internato, orgulhava-se por ser mais forte e mais alto que os pais das outras meninas.
Mas tudo mudou depois da frase que ouviu aos 11 anos. “Ela não presta. O pai dela matou um homem”.
Aos 13 anos, quando Dilermando esqueceu a chave de sua escrivaninha em casa, Dirce destrancou o armário e descobriu pilhas de pastas com documentos e recortes. “Os jornais diziam ‘o assassino de fulano de tal’, e a foto do papai”. Só depois foi tempo foi entender quem era o Euclides da Cunha”, conta.
À medida que foi descobrindo o seu segredo, a menina se fechou.
“A vida inteira eu fui saber de uma maneira tremendamente dolorosa”, lembra Dirce.
“Fui ficando muito desligada do meu pai. Não porque ele tivesse feito aquilo, não porque tivesse se defendido, como se defendeu. Mas porque nunca tinha me contado”, afirma. “Hoje sinto muita culpa.”
Marieta e Dilermando só se casaram oficialmente no fim da vida, em 1951, quando ele já parecia à beira da morte. Ana, com quem era casado no papel até então, falecera meses antes.
“Foi o casamento mais triste que eu já vi”, diz Dirce, lembrando que, enquanto a mãe assinou a certidão, o pai, acamado, apenas pôde registrar sua impressão digital no documento.
Dirce conta que Dilermando “foi sendo promovido a duras penas” na carreira militar, “sempre o último de sua turma”. No fim da vida, conseguiu chegar a general.
Em 1951, o ano de sua morte, Dilermando publicou A Tragédia da Piedade – Mentiras e calúnias da ‘Vida dramática de Euclides da Cunha’.
O livro é seu manifesto final de autodefesa, analisando as provas periciais das mortes de Euclides pai e Euclides Filho e trazendo a público a sua versão dos fatos – a começar por seu “erro dos 17 anos”, quando se apaixonou por uma mulher casada.
“A convivência acarretando a intimidade; a falta de experiência ou malícia permitindo a aproximação mais íntima (…); tudo concorreu para o despertar de novos sentimentos”, descreveu Dilermando sobre sua aproximação de Ana Emília Ribeiro da Cunha.
“E assim, nessa ebriez incontível, imperceptivelmente se consumou o meu crime. Porque é só onde vejo a transgressão à lei: no ter amado, aos 17 anos, uma mulher casada cujo marido não conhecia e se achava ausente, em paragens longínquas, sem ser lembrado sequer por inanimada fotografia.”
Euclides na Flip
Apesar de o foco da Flip ser sobre a obra literária de Euclides, o medo de que Dilermando apareça nos círculos de debate como “o assassino de Euclides” tem preocupado Dirce.
O medo de que Dilermando apareça nos círculos de debate na Flip, em Paraty, como “o assassino de Euclides”, tem preocupado Dirce.
“Eu gostaria de ir, mas já estou muito velha. E também, como vou saber onde estarão falando mal dele para ir defendê-lo?”, pondera.
“Eu realmente me emociono toda vez que falo dessa história. Fico muito angustiada”.
Ela acredita, que aos poucos, a compreensão sobre a morte de Euclides e a história de seu pai estejam mudando.
“Em determinados círculos, as pessoas já não falam no assassino, mas no homem que matou. E aí vai uma grande diferença.”
Para a historiadora Mary Del Priore, a história da morte do Euclides da Cunha deve ser compreendida sob nova luz.
“A desconstrução do Euclides não significa a destruição do Euclides, mas uma compreensão nova de um ator histórico importante, mas que esteve enredado em um drama terrível, cujas história tem que ser revista. E nela o Dilermando foi vítima como foi vítima o Euclides, como foi vítima o Dinorah e como foi vítima o Euclides Filho”, considera a historiadora.
“Nos dois casos, o papai foi atacado. E mesmo cheio de balas ele conseguiu reagir”, diz Dirce. “Só que naquela época, a honra dos maridos era lavada com sangue. E assim foi feito por parte do Euclides da Cunha”, diz Dirce.
“Ele sempre dizia que ele preferia que tivesse ele morrido”, conta Dirce. “A vida toda ele teve que pagar.”