Flávio Dino no STF: indicado de Lula é contra legalização do aborto e visto como ‘mão pesada’
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, foi escolhido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva como seu segundo homem de confiança no Supremo Tribunal Federal (STF), após a indicação de seu ex-advogado Cristiano Zanin em junho.
Mais interessado em ter um novo interlocutor dentro da Corte do que em aumentar a representatividade social da instância, o presidente ignorou a pressão de parte da sociedade para indicar uma jurista negra na vaga aberta com a aposentadoria de Rosa Weber. Com isso, o Supremo volta a ter apenas uma mulher em sua composição de onze ministros, a ministra Cármen Lúcia.
A confirmação de Dino no cargo ainda depende da aprovação do Senado, o que costuma ocorrer com tranquilidade — nenhuma indicação para a Corte foi rejeitada desde 1894.
O perfil político combativo do atual ministro da Justiça, porém, cria mais resistência ao seu nome entre parte dos senadores do que se observou na indicação de Zanin.
A expectativa é que sua aprovação exigirá mais articulação do governo com as principais lideranças do Senado, como o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Davi Alcolumbre (União Brasil-AP).
Alcolumbre marcou para 13 de dezembro a sabatina de Dino na CCJ; depois, a votação vai a plenário.
Caso aprovado pelo Senado, juristas ouvidos pela BBC News Brasil esperam que Dino tenha uma postura alinhada com a esquerda nas pautas econômicas, mas não tão progressistas em pautas de constumes.
Católico, o ministro de 55 anos já se disse “filosoficamente, doutrinariamente, contra o aborto” e defendeu “que a legislação brasileira não deve ser mexida nesse aspecto”.
Já nas pautas penais, entrevistados que acompanham de perto a trajetória de Dino acreditam que ele pode ter “mão pesada”, contrariando as expectativas iniciais de que Lula privilegiaria alguém de perfil mais garantista em sua escolha para a Corte (entenda melhor ao longo da reportagem).
A entrada de um ‘camisa dez’ no STF?
Enquanto Zanin se projetou para o STF por ter sido o advogado que liderou a defesa de Lula nos processos da operação Lava Jato, Dino conquistou a confiança do presidente aos poucos, ao longo de anos de sua carreira, em que exerceu cargos no Judiciário, no Legislativo e no Executivo, dizem entrevistados pela BBC News Brasil que acompanham de perto sua trajetória.
A relação se fortaleceu neste ano, quando Dino passou a comandar uma das pastas mais importantes do governo e protagonizou a reação do Executivo aos ataques de 8 de janeiro, quando um multidão de radicais depredaram as sedes dos Três Poderes. Houve, por outro lado, desgastes com crises na área de segurança pública, mas que não foram suficientes para abalar a confiança do presidente.
Os dois temas levaram a fortes embates com lideranças bolsonaristas, algo que contribuiu para projetar Dino para a opinião pública. Com uma forma de se expressar irreverente, o ministro costuma viralizar nas redes sociais com falas “lacradoras”. Segundo levantamento do instituto pesquisa Quaest, é o segundo ministro mais popular do governo, atrás de Fernando Haddad (Fazenda).
Foi também no contexto da reação ao 8 de janeiro que o ministro da Justiça se aproximou do ministro do STF, Alexandre de Moraes, entusiasta de sua escolha para a Corte. Contribuiu também para a indicação de Lula o apoio do ministro Gilmar Mendes, com quem Dino tem longa relação de amizade, desde a época em que era juiz federal, antes de ingressar na política.
Na primeira passagem de Lula pelo Palácio do Planalto, havia uma distância entre ele e Dino devido ao cenário político no Maranhão, lembra o Secretário Nacional do Consumidor, Wadih Damous, amigo de 30 anos de Dino e ex-deputado petista.
Dino, então filiado ao PCdoB, era oposição ao clã político de José Sarney, forte aliado do petista em seus dois primeiros mandatos.
Seu desempenho como governador e sua postura nos momentos de maior fragilidade do PT conquistaram a admiração do presidente, acredita Damous.
Dino manteve fiel apoio à Dilma Rousseff durante e após o processo de impeachment e foi crítico de primeira hora da operação Lava Jato – operação que atingiu em cheio Lula, o PT e outros partidos tradicionais.
Seu apoio foi importante, não só por ser governador naquele momento, mas por conseguir debater a operação juridicamente — antes de ingressar na política, Dino foi juiz federal de 1994 a 2006 e chegou a presidir a Associação dos Juízes Federais (Ajufe).
Deixou a magistratura para ser deputado federal (2007 a 2011), presidente da Embratur (2011 a 2014) durante a gestão Dilma, e depois governador do Maranhão por dois mandatos (2015 a 2022). Eleito senador no ano passado, se licenciou para assumir o Ministério da Justiça.
Para os entrevistados pela BBC News Brasil, a rara experiência nos Três Poderes deve dar a Dino, que tem 55 anos, um rápido protagonismo dentro da Corte, com capacidade de redefinir o equilíbrio de forças do Supremo.
“A grande maioria dos ministros recentes entraram com um perfil muito cauteloso, tentando buscar sua voz nesse espaço tão público quanto o Supremo. Não vai ser o caso (do Dino)”, acredita Pedro Abramovay, vice-presidente global de programas da Open Society Foundation, que integrou o Ministério da Justiça nos primeiros governos de Lula.
Na sua visão, Dino chegará ao STF não como um jogador que precisa “aquecer”, mas como um “camisa dez”.
“Ele vai entrar aquecido. Isso faz diferença Não vai precisar buscar o apoio de um grupo pra ser legitimado como a gente viu acontecer com outros ministros, mas é alguém que pode inclusive criar novos grupos e novos arranjos com uma presença tão forte”, reforça.
Na visão de Damous, Dino será um “polarizador” e vai marcar sua passagem na Corte.
“O Flávio tem posições muito nítidas, é sempre muito enfático nas coisas que ele defende. Então eu acho que ia ser uma personalidade ali dentro do Supremo, assim como o Alexandre de Morais tem sido, o Gilmar Mendes. Ele vai ser, sem dúvida”, compara.
“Os tribunais constitucionais sempre são políticos, mas o Supremo se politizou indevidamente ao longo dos últimos anos. Então, a trajetória de Dino na política e na carreira de juiz daria a ele um perfil único lá”, ressalta ainda.
Garantista ou punitivista?
A decisão de Lula de indicar nomes próximos a ele ao STF em seu terceiro mandato contrasta com suas escolhas nos primeiros dois governos, quando o presidente definia os nomes a partir das sugestões do seu então ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos e do advogado e ex-deputado do PT Sigmaringa Seixas, ambos já falecidos.
A mudança é atribuída ao trauma com a Lava Jato, operação controversa que revelou grandes esquemas de corrupção envolvendo a Petrobras e obras públicas. Lula chegou a ser preso pela operação, mas depois teve suas condenações anuladas quando o STF entendeu que houve ilegalidades na condução dos processos.
Por causa disso, a expectativa no meio jurídico seria de que Lula indicaria ao Supremo juristas com perfil garantista — ou seja, que dão mais ênfase às garantias constitucionais dos acusados durante investigações e processos, como o direito à ampla defesa e a responder processos em liberdade, usando a prisão preventiva em situações muito excepcionais.
Os entrevistados ouvidos pela BBC News Brasil, porém, avaliam que Dino não tem um perfil tão garantista.
Como ministro da Justiça, chegou a enviar ao Congresso um pacote que endurecia leis penais sob justificativa de enfrentar ataques ao Estado Democrático de Direito.
A proposta incluía estabelecer pena de 20 a 40 anos de prisão para quem atentasse contra a vida do presidente da República, do vice-presidente, dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, dos ministros do Supremo Tribunal Federal e do Procurador-Geral da República, com o objetivo de alterar a ordem constitucional democrática.
Outra proposta era permitir a um juiz bloquear contas e apreender bens “quando houver indícios suficientes de autoria ou de financiamento de crimes contra o Estado Democrático de Direito” em uma decisão de ofício, ou seja, sem solicitação prévia de outro órgão como a Polícia Federal ou o Ministério Público.
O pacote gerou controvérsia entre juristas e acabou não avançando no Congresso.
“Ele tem a fama de mão pesada. É aquele negócio também de ter sido governador e precisar lidar com o crime comum, com a criminalidade. De forma arbitrária acho que ele não vai se conduzir, mas não se deve esperar uma postura intensamente garantista não”, prevê Wadih Damous.
A visão é compartilhada por um advogado criminalista com trânsito nos bastidores de Brasília.
“Flávio não é um cara propriamente garantista. Ele é um cara um pouco mais do lado do punitivismo. Então, a gente sabe que o Flávio não vai adotar uma linha tão liberal no âmbito criminal quanto o Gilmar, quanto o (Ricardo) Lewandowski (ministro aposentado), quanto o (Dias) Toffoli”, destaca.
Na avaliação desse advogado, o presidente parece ter privilegiado a proximidade com seus indicados – Zanin e Dino – do que realmente o perfil garantista.
“Em relação ao Lula, ele (Dino) vai se absolutamente leal às posições políticas e ideológicas”, ressalta
Visão à esquerda na pauta econômica
No âmbito econômico, os entrevistados acreditam que Dino levará ao STF uma visão de esquerda, próxima a de Lula e a do PT.
A expectativa é que tenha decisões favoráveis aos direitos do trabalhador — Dino foi advogado trabalhista no início da carreira — e uma postura menos liberal.
“O Flávio é uma pessoa de esquerda e pragmático. Não vejo ele de jeito nenhum como alguém ultraestatista, mas claramente mais à esquerda que o (ministro Luís Roberto) Barroso na pauta econômica”, disse Abramovay.
“Como governador foi muito aberto a investimentos privados. Não tem de jeito nenhum um preconceito contra o investimento privado, privatizações, mas certamente não virão dele as decisões que vão impedir o Estado de atuar em esfera econômica”, acrescenta.
Aborto, maconha e a crise com o Congresso
Caso aprovado pelo Senado, Dino chegará ao STF em um momento de escalada da tensão entre a Corte e o Congresso.
O Parlamento vem debatendo propostas que batem de frente com o Supremo, como uma possível alteração na Constituição que pode limitar poderes individuais dos ministros ou a criação de mandatos com duração fixa — hoje os ministros podem ficar na Corte até os 75 anos.
Como pano de fundo dessa crise, analistas apontam uma insatisfação da maioria conservadora do Congresso com decisões progressistas do STF, como a rejeição do marco temporal para territórios indígenas e o andamento de julgamentos que pode descriminalizar o aborto e o porte de maconha para consumo.
Na visão dos entrevistados, a experiência prévia de Dino como parlamentar pode contribuir para uma melhor interlocução entre o Congresso e o Parlamento.
Também há uma expectativa que seu lado político pragmático o leve a atuar com cautela e contensão em pautas controversas, para não alimentar essas tensões com o Parlamento.
“Ele pode fazer um cálculo político (ao analisar uma pauta progressistas) e não trazer a fúria dos fundamentalistas para dentro do ambiente do Supremo: ‘Ah, isso não é matéria do Supremo, isso é matéria pro Congresso'”, exemplifica Damous.
“Não me causaria surpresa se ele raciocinar dessa maneira. Mas, do ponto de vista do entendimento pessoal dele, ele é progressista”, ressalta.
Declarações anteriores de Dino reforçam essa percepção. O ministro já se colocou contra a ampliação da legalização do aborto, embora tenha apoiado falas de Lula de que o tema seria uma questão de saúde pública, algo que gerou desgaste para o petista junto ao eleitorado conservador na eleição de 2022.
“Eu sou filosoficamente, doutrinariamente, contra o aborto, e acho que a legislação brasileira não deve ser mexida nesse aspecto. Por que eu registro minha posição? Porque essa é a prova de que é um tema que não tem consenso nem no nosso campo político. Acho que temas que neste momento desunem devem ser evitados, porque o bolsonarismo precisa da polêmica”, disse em abril do ano passado, em entrevista ao Valor Econômico.
“A posição do presidente Lula em relação a isso (ao aborto) levanta uma preocupação necessária, qual seja, a da desigualdade entre mulheres ricas e mulheres pobres. E como você vai tratar desse assunto, que não é pela via do Direito Penal, e sim pela via das políticas públicas. Ele levantar essa preocupação não há nenhum problema. Agora, isso não vai constar de programa de governo porque nem na esquerda existe consenso sobre isso”, disse ainda, na entrevista.
O STF tem uma ação em andamento que discute a descriminalização ampla do aborto, prática que hoje é permitida no país apenas em caso de estupro, risco de vida para a mãe e quando o feto é anencefálico. Dino, porém, não poderá se manifestar no mérito dessa ação quando o julgamento for retomado (não há previsão ainda) porque a ministra Rosa Weber – única a se manifestar até o momento – já votou pela ampla liberação.
Por outro lado, ele poderá julgar outras ações que costumam chegar ao STF discutindo casos particulares, como ações criminais contra suspeitos de realizar abortos ilegais ou pedidos de gestantes para abortar, por exemplo em casos de fetos diagnosticados com problemas que impedem sua vida após o parto (casos similares ao da anencefelia, mas que não são permitidos nas regras atuais).
Na questão das drogas, Dino se coloca contra o consumo, mas já indicou ser contra o atual modelo de criminalização.
“Individualmente, eu tenho uma atitude contra as drogas, de rejeição ao consumo. Como política pública, nós temos que enxergar sempre a questão da eficiência. O que nós estamos vendo é que esse modelo atual faz com que marcadamente jovens de baixa instrução negros de periferia, essencialmente esses, sejam atraídos pelo tráfico de drogas e depois levados ou a morte violenta ou ao cárcere”, disse, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 2019.
No momento, há um julgamento em andamento no STF que discute descriminalizar o porte de maconha para consumo e fixar parâmetros que diferenciem qual a quantidade liberada para usuário e qual a quantidade que enquadraria o portador como traficante.
A princípio, Dino não se manifestará no mérito principal dessa ação, caso seja aprovado para a Corte, porque a ministra Rosa Weber já votou. Mas, como o julgamento ainda está em curso, pode ser que o próximo ministro precise se manifestar em alguma etapa do caso.