Gustavo Scarpa: como jogador do Palmeiras se tornou influência literária no Instagram
Ingrid Santos
Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski; A Revolução dos Bichos, de George Orwell; e O Sol é para Todos, de Harper Lee, estão entre os livros preferidos de Gustavo Scarpa, jogador do Palmeiras, de 27 anos.
O atleta ficou recentemente entre os assuntos mais comentados no Twitter em razão das opiniões bem-humoradas que publica sobre clássicos da literatura em seu perfil no Instagram.
“Faz o maior tempo que eu faço isso. Aí uma moça viu, postou, o negócio bombou, e eu não entendi nada”, conta Scarpa à BBC News Brasil. “Tinha alguns comentários legais, o pessoal falando ‘faz o maior tempo que eu não leio um livro, era dessa motivação que eu precisava, vou voltar a ler’. Eu fico feliz com isso”, acrescenta.
O futebol e a literatura se entrelaçam no dia a dia do atleta, a ponto de ele ter dedicado um gol ao personagem Jean Valjean, de Os Miseráveis, na partida contra o Bahia, pela sétima rodada do Campeonato Brasileiro, no domingo passado (27/06). O homenageado é o protagonista da obra de Victor Hugo, condenado a 19 anos de prisão por ter roubado um pão para alimentar sua família.
O gosto de Scarpa pela leitura vem desde a infância, segundo o jogador, mas foi uma aposta feita com um amigo que o incentivou a cultivar o hábito de ler com mais frequência. A cada gol marcado, Scarpa era presenteado com um livro.
Já são mais de 90 “resenhas” publicadas no Instagram Stories. Entre as obras, estão livros de cunho religioso, como Por que Tarda o Pleno Avivamento?, de Leonard Ravenhill, e Cartas de um diabo a seu aprendiz, de C. S. Lewis. Há também publicações de autoajuda, como Nunca desista dos seus sonhos, de Augusto Cury, e Quem Mexeu no Meu Queijo?, de Spencer Johnson.
Mas os que mais chamam atenção são os clássicos, como Hamlet, de William Shakespeare; Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez; Os Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski; além de obras de Machado de Assis, entre elas Memórias Póstumas de Brás Cubas, O Alienista e Dom Casmurro. Sobre este último, ele é taxativo no comentário: “Traiu kkkkkkkkkk”, a respeito da polêmica relação entre os personagens Bentinho e Capitu.
A “crítica” que fez mais sucesso entre os seguidores de Scarpa nas redes sociais foi a de Metamorfose, de Franz Kafka. “Eu não tinha muito para falar do livro, achei interessante, a história é um tanto pesada, aí eu só coloquei lá ‘nossa, da hora, moleque inseto’, super de boa. Do nada, quando eu vi estava todo mundo repostando, falando disso”, afirma.
Ele conta que sempre recebe muitas indicações de livros. “Posso até deixar o código postal do Palmeiras, pra quem quiser mandar”, disse, entre risos.
O jogador vem ganhando obras de editoras, mas confessa que elaborar resenhas propriamente ditas não é “o forte” dele. A proposta é manter as publicações de forma simples, com o intuito de encorajar outras pessoas a lerem.
Atualmente, Scarpa está lendo Todo meu caminho diante de mim, de C. S. Lewis, um de seus autores prediletos. Ele explica que se trata de um diário sobre a vida do escritor, de 600 páginas.
“Está difícil de ler, mas eu estou me empenhando. Quando acabar esse, já vou pegar algum [livro] mais leve, algum romance, para voltar a ler com mais frequência”, afirma.
A cada gol, ganhava um livro
Nascido em Campinas, Gustavo Scarpa viveu a infância em Hortolândia, também localizada no interior de São Paulo. Quando tinha 9 anos, seus pais se separaram, e ele e a irmã Gabriela passaram a viver com o pai, José Luiz Scarpa.
“Meu pai sempre pegou no pé para estudar. E uma coisa que eu agradeço muito a ele é ter colocado eu e minha irmã para ver filmes legendados desde crianças. Essa é uma dica que eu dou aos pais: botar os filhos desde pequenos para ver filmes em inglês, em espanhol, porque a criança aprende muito mais rápido”, relata.
A influência do pai despertou em Scarpa a vontade e a facilidade de ler, segundo o atleta. Ele conta que se destacava nas leituras em voz alta na escola e que, embora não fosse o tipo de aluno que “se matava de estudar”, prestava atenção nas aulas e tirava boas notas.
O primeiro livro pelo qual se interessou foi a Bíblia, que passou a ler diariamente a partir dos 15 anos de idade, quando começou a frequentar a igreja. Aos 24 anos, ganhou de sua tia a bibliografia de Steve Jobs, escrita por Walter Isaacson, da qual diz ter gostado muito.
Apaixonado por futebol desde pequeno, Scarpa afirma que o fato de ter começado a jogar cedo não o impossibilitou de ler e estudar.
“O sonho de me tornar jogador foi ficando cada vez mais forte em mim. Com 13 anos eu passei a morar longe de casa. Rodei em clubes do interior até chegar ao Fluminense com 18 anos, e no meu segundo para o terceiro ano da escola eu já estava no profissional, e aí minha carreira decolou”, afirma.
Contratado pelo Palmeiras em 2018, Scarpa recebeu, no ano seguinte, um incentivo no clube para manter a conexão com a leitura. Ele e o amigo Pedro Jatene, que na época era estagiário da preparação física, fizeram uma aposta.
“E ele é um cara superinteligente, a gente trocava muita ideia sobre assuntos aleatórios, fora do futebol. Ele começou a me indicar e a me dar alguns livros. Aí a gente teve a ideia de fazer uma aposta. Se eu não fizesse gol ou não desse assistência, eu teria que dar uma camisa para ele, mas se eu fizesse, ele me daria um livro”, explica.
“Graças a Deus que eu fiz essa aposta bem numa fase em que estava saindo gol e assistência toda hora, e aí me dei bem, ganhei vários livros”, relata Scarpa.
Recentemente, os dois voltaram a entrar em contato e retomaram o desafio.
“A gente tinha parado com essa aposta, aí no último jogo antes da fase final do Paulistão, que foi contra a Ponte Preta, me deu vontade de mandar mensagem para ele. Falei ‘valendo nossa aposta? Ou duas assistências ou um gol?’. E ele disse ‘demorou’. Minha fase não estava muito boa, e a gente precisava ganhar, aí no jogo eu fiz um gol e dei duas assistências, então ele já está me devendo dois livros”.
Influência positiva
Gustavo Scarpa acredita que o hábito da leitura tem um impacto benéfico em seu dia a dia e o ajuda a sair da “bolha do futebol”, conhecendo histórias que vão além do esporte e dos jogadores.
“É você trocar o seu hábito. Em vez de eu ficar no celular, vendo nada ou não fazendo nada, eu comecei a ler e conheci histórias incríveis, abri a mente. Você aprende. Tem muitas frases marcantes nos livros, e isso pode mudar a vida. Tem muita coisa que eu já li nos livros, sejam eles de romance ou cristãos, que eu nunca vou esquecer”, afirma.
Como sugestão para os jovens que não têm o hábito da leitura, mas que gostariam de começar a ler, Scarpa indica A Revolução dos Bichos, de George Orwell. Segundo ele, “é um livro legal, fácil de ler, até para quem não entende nada de política”. Ele também dá outras dicas.
“É preciso bastante disciplina até que isso se torne prazeroso. No começo eu forçava um pouquinho para ler, até que começou a sobrar um tempo, e eu falava: ‘Quer saber? Vou ler um pouco do livro’. Aí você começa a entrar na história, você começa a imaginar”.
Ele conta que, ao longo do tempo, passou a preferir os livros às adaptações para filmes.
“E eu me tornei até uma pessoa que eu nunca imaginei que eu me tornaria: leio o livro, aí vou assistir ao filme e fico decepcionado porque o livro é bem mais interessante. Você imagina o negócio do jeito que o cara fala, é bem mais detalhado”.
Com tanto prazer pela leitura, seria possível imaginar que Scarpa gostaria de escrever o próprio livro em algum momento. No entanto, o jogador afirma que isso não está em seus planos.