Há 120 anos, o Brasil incorporava Acre ao País: leia sobre o acordo diplomático que deu origem ao estado

Historiadores discorrem sobre o contexto histórico e o papel da diplomacia brasileira no momento em que o documento foi assinado

Governo do Acre
Governo do Acre (Foto: Divulgação (governo do Acre))

Agência Sputnik – Assinado em novembro de 1903, o Tratado de Petrópolis foi um acordo que culminou na adesão do Acre ao território brasileiro.

Em linhas gerais, o tratado teve diversos impactos para a população da região naquele momento. Marcos Vinicius Neves, historiador e arqueólogo, reconhece o acordo como um “feito extraordinário” da diplomacia brasileira.

Já para Sérgio Roberto de Souza, professor de história da Universidade Federal do Acre (UFAC), o Tratado de Petrópolis constitui um “mito fundador”, uma vez que representa um “movimento de colonização que ocorre a partir da segunda metade do século XIX, marcado pela violência contra as populações originárias”.

A história do Acre que antecede o Tratado de Petrópolis

Antes de pertencer ao Brasil, à época do período colonial, o território onde hoje é o estado do Acre pertencia ao espanhóis. Porém, com o avanço dos portugueses rompendo o Tratado de Tordesilhas, foi preciso traçar uma nova linha imaginária na localidade onde hoje está situado o Acre. As novas fronteiras foram demarcadas a partir do Tratado de Madri, de 1750, em um novo acerto entre Portugal e Espanha.

“Para resolver as pendências do Tratado de Tordesilhas, já obsoleto, foi traçado na região uma linha imaginária que não tinha correspondência com o terreno. Não tem nada pior para uma divisão entre países do que uma linha arbitrária, reta, ainda mais sendo imaginária, entre a pretensa nascente do rio Javari e o rio Madeira, como um tratado de limites, porque, na verdade, não divide nada”, comenta Neves.

O acordo estabelecido permaneceu válido enquanto “nenhum fato novo agitasse essa região”. Conforme Neves, na década de 1860, “já começava uma certa valorização da borracha e já se sabia que a região do Acre, como toda a Amazônia, era uma rica produtora” do insumo. Em 1867, no contexto de guerra entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, o governo boliviano pressionou o Brasil para rever a marcação das fronteiras entre Bolívia e Brasil — neste período, já independentes de suas respectivas colônias.

“Diante dessa pressão, o governo brasileiro topou fazer uma revisão dos limites e, dessas condições, surgiu o Tratado de Ayacucho, de 1867, que pegou aquela linha imaginária reta, estabelecida pelo Tratado de Madri, e a substituiu por uma linha oblíqua”, conta o historiador.

Foi em 1877 que o “boom da borracha” aconteceu, comenta Souza. A partir daí, uma “avalanche humana começou a subir os rios amazônicos”, descreve Neves. Os seringueiros, em busca do chamado “ouro branco”, começaram então a atuar na Região Amazônica, inclusive no que viria a ser o Acre — até então, terras bolivianas.

Ao mesmo tempo, os bolivianos não conseguiam chegar à região para explorar o látex, “porque os rios do norte da Bolívia correm todos para o Madeira”, lembra Neves. “Brasileiros começaram a vir, sobretudo, de Manaus e Belém para as terras que hoje pertencem ao Acre.”

Em meio aos levantes e às batalhas pelo território que viriam a acontecer entre seringueiros e o Exército boliviano, com a ocupação do local, os povos indígenas que habitavam o espaço sofreram com “correrias, expropriação de territórios, estupros de mulheres indígenas e assassinatos”, ressalta Souza. “Mesmo após o processo de adesão [do Acre], não há uma mudança significativa em relação a isso”, completa.

“Sem condições de explorar a região, a Bolívia tentou acordo com um consórcio de investidores norte-americanos”, conta Neves.

É a partir daí que surgiu o Bolivian Syndicate, “que utiliza o mesmo modelo de exploração imperialista da África, ou seja, uma companhia de comércio que arrendaria as terras do Acre, já que a Bolívia não tinha condições financeiras nem humanas de ocupar a região, para explorar por arrendamento essas terras e pagar uma parte à Bolívia. Foi assim criada a situação de conflito aqui no Acre, que deu origem à Guerra do Acre, que é o outro episódio dessa história, e que resultaria, então, no Tratado de Petrópolis”, completa Neves.

Como o Brasil comprou o Acre? O Tratado de Petrópolis

Entre conflitos no final do século XIX e começo do XX, diferentes disposições diplomáticas dos governos brasileiros que estiveram no poder durante o período, o Tratado de Petrópolis começou a ser costurado pelo Barão do Rio Branco em janeiro de 1903, mesmo período em que os seringueiros — “financiados por seringalistas de Manaus e Belém, que custearam os levantes na região”, ressalta Souza — expulsaram o Exército boliviano da região.

Pressionado pela questão do Acre, de acordo com Neves, o governo Rodrigues Alves, que assumiu a República em 1902, nomeou o Barão do Rio Branco como chanceler e o incumbiu a missão de solucionar a tensão entre bolivianos e brasileiros.

Com o Tratado de Petrópolis, “a diplomacia brasileira entrou em cena e conseguiu fazer articulações em relação aos membros dos Estados Unidos da Bolivian Syndicate”, comenta Souza. “Foi necessário indenizar a Companhia de Comércio em 120 mil libras esterlinas. O acordo foi feito nos Estados Unidos, antes de os interessados sequer chegarem à região. Isso foi feito para desistirem do contrato”, acrescenta Neves.

Segundo o historiador e arqueólogo, ficou determinado que “o Brasil deveria indenizar o governo da Bolívia com o valor de 2 milhões de libras esterlinas, além de assumir a obrigação de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré e ceder parte das terras que pertenciam ao Mato Grosso”.

No que considera uma ação extraordinária da diplomacia brasileira, Neves destaca toda a arquitetura desenhada no processo de negociação com as partes envolvidas.

Enquanto a Bolivia Syndicate não desistiu do contrato, o governo da Bolívia não queria negociar. O país foi isolado politicamente, a fim de que fosse pressionado a ceder o Acre. O Barão do Rio Branco fez uma movimentação de tropas do Exército brasileiro para o Acre, mas também para a fronteira da Bolívia com o Mato Grosso como forma de cercar o país vizinho, evitando uma eventual invasão e um possível confronto.

“Houve uma série de ações que o Barão do Rio Branco teve que desencadear ao longo desses 11 meses de negociação que resultaram no Tratado de Petrópolis. O Barão do Rio Branco, a partir dessa vitória diplomática, ganhou um poder político tal na República Velha que possibilitou negociar várias outras questões de limite que estavam pendentes, tanto no Norte do Brasil como na região Sul”, aponta Neves.

A vida no Acre logo depois

Sérgio Roberto de Souza ressalta que os conflitos na região não pararam após o tratado. “Em 1904, basicamente, foi estabelecido o processo de organização administrativa do território anexado, mas basicamente em 1905 outro movimento da diplomacia brasileira teve início. E aí veio o processo de construção do que se fundamentaria em 1908, que é o Tratado de Limites. Se você for ver, o Tratado de Limites anexa muito mais terras ao Acre e, obviamente, ao Brasil do que o próprio Tratado de Petrópolis.”

Outra pontuação feita em relação ao que vem depois do tratado para os acreanos é a formação administrativa do Acre, que Sérgio considera uma “anomalia jurídica”.

“Existiam três perspectivas: que fôssemos anexados ao Amazonas, que fôssemos um Estado autônomo ou que fôssemos um território federal, que é uma anomalia. Não existia essa condição na Constituição, em nenhum lugar da legislação brasileira, e essa última lógica prevaleceu.”

Ao tornar o Acre território federal, isto é, “ao assumir a tutela sobre esse espaço, o Estado brasileiro assumiu também a cobrança de impostos sobre o Acre, ficou com a maior parte do [que foi] arrecadado em relação à exportação da borracha e devolveu para cá uma quantidade infinitamente inferior ao que ele arrecada”, acrescenta Souza.

O depois do depois

Chamado por Souza de “mito fundador”, o Tratado de Petrópolis é sacralizado pela historiografia oficial, que vangloria “personagens como grandes desbravadores que para cá vieram, quando na verdade são agentes de uma modernidade violenta. É uma construção discursiva”, pondera.

O professor de história acrescenta que esse é o discurso comprado, inclusive, por boa parte da sociedade local quando o assunto é o tratado que faz com que o dia 17 de novembro seja feriado estadual no Acre. Entretanto, para ele, o ideal, depois de tanto, seria “desdizer esses ditos”.

“Nós temos que repensar e confrontar as narrativas que foram produzidas sobre o Acre, numa de nos posicionarmos para falar da diversidade, da cultura, dos personagens ocultos, dos silenciados, e não mais dessa história mitificada.”

Neves, por sua vez, lamenta que no aniversário de 120 anos do tratado, o estado não tenha mobilizado nenhum evento que reconheça o feito.

“Assim como uma capa de jornal estampou no cinquentenário, quando também não teve nada, que as comemorações seriam adiadas para o centenário, as comemorações dos 120 anos do Tratado de Petrópolis foram adiadas para os 130.”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *