Há 200 anos, Dom João 6º voltava a Portugal e, sem querer, abria caminho para independência do Brasil

Edison Veiga

Retrato de D. João 6º por Albertus Jacob Frans Gregorius
Em 26 de abril de 1821, o rei Dom João 6º embarcou de volta a Portugal

Do ponto de vista de uma colônia, considerando o modelo implantado durante o período conhecido como Grandes Navegações, foram bem estranhas as primeiras décadas do século 19 no Brasil.

O primeiro movimento foi a transferência de toda a corte da metrópole, Portugal, para a colônia, mais precisamente a cidade do Rio de Janeiro. Isso ocorreu em 1808 — então príncipe regente, Dom João 6º (1767-1826) se viu obrigado a fugir das tropas de Napoleão Bonaparte (1769-1821).

Se não bastasse essa configuração esdrúxula, em que o poder emanava da colônia e não da metrópole, em 1815, o monarca assinou um decreto criando o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Na prática, o Brasil deixou de ser colônia e passou a ser tratado como parte do reino.

Se do lado tupiniquim do Atlântico, a elite parecia entender que as coisas iam bem, os portugueses colecionavam descontentamentos — sem rei, longe do poder, cada vez mais mais periféricos.

Há exatos 200 anos, um novo movimento nesse xadrez tentava equilibrar as peças sem provocar xeque-mate de nenhum lado do tabuleiro.

Em 26 de abril de 1821, o rei Dom João 6º embarcou de volta a Portugal. “Junto foram cerca de 4 mil pessoas”, salienta o historiador Marcelo Cheche Galves, professor da Universidade Estadual do Maranhão (Uema). “Chegaram a Portugal em julho.”

Nem os ossos ficaram para trás. “Até mesmo os membros da dinastia de Bragança que haviam morrido enquanto a família real estava no Rio de Janeiro, como a mãe de Dom João 6º, a rainha Dona Maria I, o sobrinho do rei, Dom Pedro Carlos, e uma tia, Dona Maria Ana Francisca, tiveram seus corpos levados para Portugal nos navios que transportaram a corte de volta”, aponta o pesquisador Paulo Rezzutti, autor de diversos livros sobre personagens da nobreza luso-brasileira.

Quadro de autor desconhecido representa a família real portuguesa embarcando de Lisboa para o Brasil
Quadro de autor desconhecido representa a família real portuguesa embarcando de Lisboa para o Brasil

Antecedentes do retorno

Não fosse a pressão vinda de Portugal, Dom João 6º podia muito bem ir ficando no Brasil. Mas o descontentamento por lá com a ausência da família real era tamanho que havia risco inclusive para a continuidade da dinastia.

“Ele foi obrigado a voltar”, enfatiza Rezzutti. “Em 1820, estourou em Portugal a Revolução do Porto, que acabou com o absolutismo do rei de Portugal, instituiu as cortes constitucionais portuguesas, que deveriam dar uma constituição, a primeira do reino, e exigiu o retorno da corte para Portugal. Segundo o manifesto produzido pelos revoltosos, eles estavam cansados de Portugal ter passado a ser tratada como uma colônia, com todos os assuntos tendo que ser resolvidos no Brasil junto à corte, que estava instalada ali desde 1808.”

Também chamada de Revolução Liberal de 1820, esse movimento iniciado em agosto na cidade do Porto se espalhou por Lisboa no mês seguinte. “O movimento é chamado de liberal no sentido do juramento a uma constituição e na reorganização administrativa do Estado português, já que o monarca havia fugido por conta da invasão francesa”, explica o historiador Galves.

Sessão das cortes de Lisboa, em quadro de Oscar Pereira da Silva
Sessão das cortes de Lisboa, em quadro de Oscar Pereira da Silva

O desenrolar da revolução precipitou o juramento das bases da Constituição portuguesa. “Na realidade, um texto de princípios que tomou como referência a ideia de que as cortes, como era chamado o Congresso, iria elaborar uma Constituição”, complementa o historiador.

“As notícias desse conjunto de movimentações chegaram ao Rio e deixaram Dom João 6º impressionado. No fim de fevereiro de 1821 ele jurou as bases da Constituição, ou seja, assumiu ali o compromisso de respeitar a Constituição que seria elaborada e, junto com isso, o compromisso de retornar a Portugal.”

“O retorno começou a ser planejado no final de 1820 e início de 1821, entretanto sempre ficou a incógnita de quem realmente iria e quem ficaria, ou se iriam todos, ou se não iria ninguém”, comenta o pesquisador Rezzutti. “Após várias confusões políticas no Rio de Janeiro, Dom João finalmente tomou a decisão de deixar Dom Pedro no Brasil.”

Não foi tão simples, contudo, vencer a reticência de Dom João. “A decisão foi tumultuada, como praticamente todos os episódios do governo dele”, pontua Rezzutti.

Mas era preciso ter uma leitura da dimensão do que ocorria em Portugal. A Revolução Liberal ecoava a Revolução Francesa ocorrida décadas atrás e pretendia, em última instância, diminuir o poder da nobreza. Como explica o pesquisador Rezzutti, significava o “fim do absolutismo em Portugal, com a burguesia ascendendo politicamente”.

“Foi um duro golpe para o rei, que viu os seus poderes diminuídos e suas ideias para a América Portuguesa ruírem”, contextualiza. “Ele tergiversou o quanto pôde para não sair daqui, chegou a propor a ida do então príncipe Dom Pedro para Portugal, para que ele, Dom João, ficasse aqui com a família. Depois, voltou atrás.”

Decisão tomada, em 22 de abril de 1821, Dom João 6º nomeou Dom Pedro príncipe regente — da parte brasileira, evidentemente, do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Quatro dias depois, em 26 de abril, despediu-se e voltou para as terras lusitanas.

Rezzutti provoca que ficou parecendo um presente de aniversário para a rainha, Dona Carlota Joaquina (1775-1830), já que a partida foi no dia seguinte às comemorações de seus 46 anos. “Deve ter sido um dos melhores presentes que ela recebeu, pois era público o seu desconforto com o povo brasileiro e o Brasil em geral”, alfineta ele.

Gravura do desembarque de d. João 6º em Lisboa, no regresso a Portugal
Gravura do desembarque de d. João 6º em Lisboa, no regresso a Portugal

Desdobramentos

Mas, se a emenda não saiu pior que o soneto, também não dá para dizer que foram agradados completamente gregos e troianos — ou portugueses e brasileiros.

Nos trópicos, uma aristocracia que havia se habituado a frequentar as proximidades do poder real de repente entendeu-se novamente rebaixada. Em Portugal, por outro lado, houve descontentamento porque Dom Pedro havia ficado para trás.

“Ao deixar o príncipe, seu herdeiro, como regente do Reino do Brasil, ele agiu à revelia dos que queriam as cortes constitucionais em Lisboa”, afirma Rezzutti. “Elas queriam o retorno de toda a família real para Portugal e a extinção de qualquer centralização de poder no Brasil, que deveria ser governado diretamente da Europa.”

“Dom João 6º, a partir do momento em que saiu do Brasil e deixou aqui seu filho, contrariou deliberadamente as ordens das cortes portuguesas”, enfatiza ele. “A ordem era que toda a família real retornasse. Ele deliberadamente deixou aqui Dom Pedro como príncipe regente, assegurando ao Brasil a ideia de uma continuidade.”

Começava a ser pavimentado o caminho da independência do Brasil — não com um movimento republicano, como vinha ocorrendo em outras colônias americanas, mas com um monarca, no caso, Dom Pedro 1º (1798-1834). “Aos poucos as cortes começaram a solapar o poder do príncipe regente para ter todo o controle do Brasil em Lisboa, o que acabou levando ao rompimento”, diz Rezzutti.

Se no Brasil ficou uma estrutura estatal instalada no Rio, em Portugal passou a haver pressão pelo retorno do herdeiro. “A ideia era que se esvaziasse o poder do Rio de Janeiro”, conta Galves. “No fim de setembro e em outubro, houve uma série de decisões tomadas [em Portugal] que, na prática, esvaziavam o poder do Rio de Janeiro como centro de autoridade. Isso causou um aumento de tensões.”

O historiador ressalta, contudo, que, nesse momento, o que tais atritos indicavam era uma independência não no sentido de separação total de Portugal, mas sim apenas uma busca de autonomia do Brasil dentro do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve.

“E o retorno do regente Pedro a Portugal comprometeria completamente esse projeto de autonomia. A situação se esgarçou a partir de janeiro de 1822 [com o histórico Dia do Fico, que sacramentou a decisão de Dom Pedro de não retornar, naquele momento, a Portugal].”

“Mas, a rigor, a ideia de independência mesmo do Brasil só começou a ser vista em agosto de 1822. Até então, as medidas eram em busca de autonomia da porção americana do reino, com Dom Pedro convocando uma assembleia constituinte, um conselho de procuradores, enfim, buscando mecanismos de aumento da legitimidade política de sua porção do reino.”

A semente da rusga, porém, estava plantada. “O que levou o Brasil a se tornar independente foram as seguidas ordens intransigentes das cortes, que queriam recolonizar o Brasil a qualquer custo, impedindo um poder centralizado e administrativo no Brasil”, salienta Rezzutti. “Isso afetava diretamente o interesse das elites locais e da burocracia estatal brasileira que seria desmontada.”

D. João 6º nos trajes de sua aclamação, pintura do francês Jean-Baptiste Debret
Dom João 6º nos trajes de sua aclamação, pintura do francês Jean-Baptiste Debret

Nesse movimento, entendeu-se que era mais negócio uma independência “de continuidade” do que o risco de um esfacelamento do Brasil em várias republiquetas.

“Diversas forças nacionais chegaram à conclusão de que uma união nacional ao redor do príncipe Dom Pedro poderia consolidar a independência e evitar as diversas guerras civis que se abateriam no caso de cada facção escolher um líder que mais lhes agradasse, como acabou ocorrendo nas províncias espanholas na América durante o processo de independência”, completa ele.

O que ficou no Brasil

Quando a frota marítima partiu de volta a Portugal naquele 26 de abril, ficaram pouquíssimos nobres, conforme as pesquisas de Rezzutti. Segundo ele, apenas Dom Pedro, sua esposa — a então princesa Dona Leopoldina — e os filhos do casal, Dona Maria, futura Maria 2ª de Portugal, e Dom João Carlos, não embarcaram.

Restou também, como pontua o pesquisador, a estrutura “administrativa do Reino do Brasil”. Ou seja: tribunais, órgãos públicos, secretarias já existentes na época de Dom João no Rio de Janeiro.

“O decreto do pai nomeando o filho como príncipe regente estabelecia tudo o que ele podia ou não fazer na administração dos negócios de Estado e até mesmo eclesiásticos, uma vez que quem confirmava ou não bispados no Brasil era o governante e não o papa”, comenta ele.

“Entre as prerrogativas cedidas por Dom João, estava a de que o jovem príncipe poderia fazer a guerra ofensiva ou defensiva contra qualquer inimigo que atacasse o reino.”

“Também o decreto real assinalava que, em caso de impedimento, a regência seria assumida por Dona Leopoldina”, conta. “Ainda trazia a imposição de uma tutela: Dom João partia determinando quais seriam os quatro ministros de Estado do governo de Dom Pedro. Para o cargo mais importante, o de Secretário de Estado dos Negócios do Reino do Brasil e Negócios Estrangeiros, foi nomeado o conde dos Arcos, Dom Marcos de Noronha e Brito, antigo vice-rei do Brasil e conhecedor do país.”

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