Hitler pôs ópera a serviço do nazismo

Mostra na antiga cidade-sede de comícios nazistas revela a ópera como poderoso instrumento de propaganda nacional-socialista. Com destaque para o compositor Richard Wagner, inspirador do ditador e seu mentor à distância.

    
Hitler (dir.) durante comício do Partido Nazista de 1936, em NurembergueHitler (dir.) durante comício do Partido Nazista de 1936, em Nurembergue

Adolf Hitler declarou Nurembergue “Cidade dos Comícios Nacionais” do Partido Nacional-Socialista em 1933, por considerar que o tradicional papel da cidade bávara no comércio, arte e cultura alemães a tornava um pano de fundo ideal para os eventos anuais epicamente encenados. Eles tinham como palco não só o estádio municipal, mas também teatros, lagos e parques de Nurembergue, cuja importância histórica remonta à Idade Média.

Mas tanto para o ditador quanto para seu ministro da Propaganda, Joseph Goebbels – o responsável pela censura e distribuição de filmes, peças teatrais e musicais, e artes visuais no Terceiro Reich –, a música germânica, em especial a ópera, conferiria impacto propagandístico vital às manifestações de massa nazistas.

Uma nova exposição no Dokumentationszentrum Reichsparteitagsgelände (Centro de Documentação da Área dos Comícios Nacionais do Partido) conta de forma quase palpável a história de como esse terreno e a Casa de Ópera de Nurembergue foram palcos duplos de instrumentalização da arte para a propaganda de um regime assassino.

Manifestações de massa dos nazistas eram submetidas a coreografia rigorosaManifestações de massa dos nazistas eram submetidas a coreografia rigorosa

O título da mostra, Hitler.Macht.Oper, é um jogo com o duplo sentido da palavra alemã Macht, traduzível tanto como “faz” (verbo) quanto como “poder” (substantivo). De fato, o próprio Hitler estava envolvido em certos aspectos das montagens operísticas em celebração de sua liderança.

Espalhada por 530 metros do Grande Salão do antigo local de manifestações de massa, a nova exposição emprega texto, imagens, filmes e minuciosas reconstruções de cenários teatrais para permitir aos visitantes vivenciarem a força desse poderoso instrumento de propaganda.

Com suas quatro horas e meia de duração, a odisseia operística de Richard Wagner Os Mestres-Cantores de Nurembergue  era uma favorita dos nazistas, sendo encenada na Staatsoper de Berlim em março de 1933, para marcar a fundação do Terceiro Reich.

A “mais germânica de todas as óperas” preenchia os pré-requisitos da propaganda artística nazista, retratando o mestre-cantor Hans Sachs (1494-1576) como um gênio trabalhando, acima de tudo, em nome de seu povo e sua raça.

A obra retornaria triunfante à cidade-título em 1935, na forma do prelúdio de seu terceiro ato, que a cineasta Leni Riefenstahl usou no filme O triunfo da vontade, no qual apresenta o congresso partidário do ano anterior, assistido por centenas de milhares de apoiadores do nazismo.

Também no ano de lançamento do filme, uma monumental montagem de Os Mestres-Cantores foi estreada na Casa de Ópera de Nurembergue. Cantada por um elenco estrelar, selecionado a dedo por Hitler, com um opulento cenário do designer e arquiteto nazista Benno von Arent, ela dava o tom para as futuras produções do Terceiro Reich.

Nurembergue lembrava um cenário de ópera na época dos comíciosNurembergue lembrava um cenário de ópera na época dos comícios

Tamanho era o significado do teatro de ópera da cidade bávara, que o próprio Hitler ordenou sua reconstrução em 1934. O astro da arquitetura nazista Paul Schultze-Naumburg foi encarregado de purgar a “arquitetura burguesa, vanguardista” do prédio em estilo Art Nouveau, e de criar um interior mais minimalista e brutalista, refletindo sua dupla função como local de arte e política.

O próprio comício anual nazista era submetido a uma direção de cena rigorosa. O pano de fundo de inspiração militar empregava recursos típicos de tetro como holofotes, música, cenários e decoração.

O compositor Friedrich Jung recebeu a encomenda de compor uma obra grandiloquente, a ser executada durante a cerimônia de “Grande apelo aos líderes políticos”, no comício de 2 de setembro de 1939. Este foi, no entanto, cancelado na última hora, pois um dia antes a Alemanha invadira a Polônia.

Ópera wagneriana como inspiração nazista

Hitler era fã de longa data de Richard Wagner (1813-1883), cujo antissemitismo possivelmente contribuiu a seu apelo para o ditador nazista. No bicentenário do nascimento do compositor, a emissora britânica BBC perguntava: “Podemos escutar, assistir ou executar a música de Wagner de consciência limpa? Terá ela sido pervertida de modo desprezível pelos nazistas, ou a adulação deles meramente expôs suas perversões inerentes?”

Reafirmando que ele não era um nazista – nem podia ser, por motivos cronológicos –, o programa da BBC não deixava dúvidas quanto ao antissemitismo do músico: “Wagner já deixara claros seus monstruosos sentimentos, a começar com o infame panfleto Sobre o judaísmo na música, de 1850.”

O líder nazista era um verdadeiro amante da ópera, frequentando quase diariamente o teatro na época em que viveu em Viena. No autobiográfico Minha luta  ele descreve como assistir à obra wagneriana Lohengrin  pela primeira vez, aos 12 anos de idade, foi uma experiência que mudaria sua vida.

Ele gostava de inspirar a liderança nazista com a ópera Rienzi, a história protofascista de um nacionalista italiano que se ergue contra as elites corruptas de Roma. Assim como Os Mestres-Cantores, uma história de grandes salvadores do povo, que se tornariam alegorias para Hitler, auxiliando-o na promoção de seu próprio culto à personalidade.

Gosto secreto por “música degenerada”

Em 1938, os nazistas celebraram o festival Reichsmusiktage, uma semana de música nacionalista, com participação do Coro da Juventude Hitlerista e da Filarmônica de Berlim. Paralelamente, em Düsseldorf, a exposição Entartete Musik  (Música degenerada) denunciava e ridicularizava as “antigermânicas” artes negra e judaica.

Meio ano mais tarde, compositores judeus como Arnold Schoenberg e Kurt Weill, assim como músicos de jazz afro-americanos eram oficialmente execrados, enquanto o regime se ocupava em promover a ópera wagneriana, também para observadores estrangeiros.

Em segredo, contudo, o autonomeado Messias do povo alemão apreciava diferentes estilos musicais. Segundo uma reportagem da revista Der Spiegel, a discoteca de Hitler em seu bunker, descoberta em 2007, incluía, lado a lado com os ídolos Wagner e Beethoven, os russos Modest Mussorgsky, Alexander Borodin e Sergei Rachmaninov – povo tachado pelos nazistas de “sub-humano”. Numa das gravações é até mesmo um judeu polonês, o violinista Bronislaw Huberman, a tocar Piotr Tchaikovsky.

Hitler.Macht.Oper reúne mais de 350 objetos e recursos audiovisuais“Hitler.Macht.Oper” reúne mais de 350 objetos e recursos audiovisuais

A exposição Hitler.Macht.Oper, no centro de documentação dos comícios nazistas, localizado justamente na área em Nurembergue onde os eventos transcorriam, tem mais de 350 peças de exibição, assim como numerosos clips de áudio e vídeo, textos eruditos, colagens visuais, testemunhos da época e maquetes de cenários teatrais.

Ela é dividida em sete seções temáticas, incluindo Götterdämmerung, “Crepúsculo dos Deuses”, a ópera que encerra a tetralogia O Anel do Nibelungo, uma das últimas a serem encenadas pelo regime nazista, na Casa de Ópera danificada por bombardeios.

Aberta de 15 de junho a 3 de fevereiro de 2019, é a maior sobre o teatro musical sob o nacional socialismo, desde a famosa mostra sobre “música degenerada” de 1988, em Düsseldorf.

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A ÓPERA SEMPER, EM DRESDEN

História turbulenta

Ela é um destaque do centro histórico de Dresden. Poucos sabem que este prédio já é a terceira versão da Ópera Semper. A primeira, de 1840, foi totalmente destruída por um incêndio. A segunda foi arrasada pelas bombas da Segunda Guerra Mundial. A cuidadosa reconstrução de edifício se deve também à insistência dos habitantes da cidade.

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Projeto desenhado no exílio

Assim era a primeira versão da Ópera Semper, que pegou fogo em 1869. O arquiteto Gottfried Semper, autor do projeto, foi encarregado de reconstruir o edifício, mas não podia voltar à cidade, por ser procurado pela polícia, acusado de participar das revoluções de 1848. Ele projetou a nova construção no exílio, em Viena, e seu filho Manfred liderou as obras em Dresden, seguindo as instruções do pai.

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Destruição na Segunda Guerra

Mas a segunda versão da Ópera Semper também não durou muito. O bombardeio de Dresden, em fevereiro de 1945, destruiu palco e auditório. O resto do edifício foi consumido por um incêndio. Nos anos do pós-guerra, a fachada foi refeita, e a reconstrução do interior começou em 1977. Exatamente 40 anos depois de sua destruição, a ópera foi reaberta em 13 de fevereiro de 1985.

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Gesso minimiza risco de incêndio

Graças aos inúmeros esboços originais de Semper, muitos detalhes puderam ser reconstruídos. Nos trabalhos no teto do foyer, os restauradores descobriram até mesmo alguns afrescos originais. O revestimento da parede, que parece de carvalho, é feito de gesso pintado. Com a ideia, Semper visou reduzir o risco de incêndio.

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Suntuosas escadarias

As colunas de mármore no hall de entrada, através do qual o visitante se aproxima do salão, o ponto alto da casa, também são imitações. Elaboradas meticulosamente, elas não se prestaram a reduzir custos, mas a corresponder ao estilo escolhido por Semper: o alto renascimento italiano.

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Camarote para convidados

No salão da Ópera Semper, a reconstrução trouxe algumas mudanças. Para uma melhor visualização, o piso e as fileiras de assentos foram ligeiramente inclinados. Para ganhar mais espaço, a parede foi colocada uns poucos metros para fora. Em troca, diversos camarotes deixaram de existir. Apenas um sobrou, bem no meio, reservado a convidados do governo do estado da Saxônia.

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Lugares cobiçados

Concertos, óperas e balés são realizados neste palco frequentemente com casa lotada. A Ópera Semper, com seus 1.300 assentos, é a casa de ópera economicamente mais lucrativa da Alemanha. Atores e cantores não precisam de microfone, graças à excelente acústica. A orquestra da casa, a Sächsische Staatskapelle, está entre as mais antigas do mundo.

Bildergalerie Semperoper Dresden

Original derretido

O lustre, pendurado no teto ornamentado do salão, pesa 1,9 tonelada e é preso por inúmeras cordas. Ele sobreviveu, como por milagre, às bombas na Segunda Guerra, mas não à sede por metais não ferrosos dos primeiros anos da Alemanha Oriental. O original foi derretido. O lustre atual é uma réplica.

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Foyer principal

Estes corredores arqueados do saguão principal no primeiro andar encantam os visitantes da ópera nas pausas dos espetáculos. Aqui também os ornamentos do teto em estuque puderam ser restaurados de acordo com os desenhos originais de Semper. As grandes janelas convidam a um olhar para fora, onde fica a Theaterplatz, a praça mais importante de Dresden do ponto de vista da história da arquitetura.

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Theaterplatz

Nos arredores da Theaterplaz (praça do teatro) estão a igreja barroca Katholische Hofkirche e o palácio renascentista Residenzschloss, onde residiam os reis, e que foi recentemente restaurado. No canto direito, o Schinkelwache, prédio em estilo clássico. No verão, a praça é palco de concertos ao ar livre.

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A Florença do Elba

A Ópera Semper (no canto direito) é uma das várias atrações turísticas reconstruídas do centro antigo de Dresden. Para os habitantes de Dresden, ela é mais do que uma mera casa de ópera. Graças à sua restauração, o edifício devolveu à cidade um pedaço de sua antiga silhueta, assim como de sua identidade, se tornando um sinal de reconciliação com o passado.

Autoria: Elisabeth Jahn (md)

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