‘Igreja precisa mudar sistema que abusa das freiras’, diz autor de livro sobre vida religiosa feminina
Lucas Ferraz
Em certos mosteiros, conventos e comunidades religiosas da Igreja Católica, adorar e servir a Deus é sinônimo de humilhar-se e submeter-se aos desejos dos superiores, sem contestação. Principalmente se for uma mulher.
Mesmo para as freiras que têm graduação ou pós-graduação, ser um “servo do senhor” significa, frequentemente, realizar atividades serviçais como lavar roupa ou cozinhar, quando não limpar neve em temperaturas extremas ou ser discriminada por causa da cor de pele e origem.
A rotina de abusos de poder e assédios morais, manipulações e chantagens contra as mulheres que optaram pela vida religiosa é assunto que tem ganhado cada vez mais atenção das autoridades do Vaticano. Um exemplo é um livro que acaba de ser publicado na Itália, Il velo del silenzio (“O véu do silêncio”, em tradução), cujo subtítulo é autoexplicativo: “abusos, violências, frustrações na vida religiosa feminina”.
O autor é o vaticanista Salvatore Cernuzio, de 34 anos, que acompanha os temas da Igreja em Roma há uma década. Jornalista que faz parte da Rádio Vaticana, órgão oficial da Santa Sé, ele passou um ano levantando os casos relatos no livro publicado pela editora católica San Paolo.
São onze relatos de mulheres, religiosas ainda na ativa ou que já abandonaram a vida consagrada, que contam anonimamente situações diversas de abusos cometidos pelas superioras, mulheres como as próprias vítimas, e os efeitos – inclusive psicológicos – dos anos de provação.
Com a chegada de papa Francisco, eleito em 2013, as mulheres ganharam um protagonismo inédito no Vaticano, mas a estrutura servil continua ativa, em Roma e em diversos outros lugares do mundo, em especial naqueles em que a posição da mulher na sociedade continua em segundo plano.
O pontífice tem reservado especial atenção para falar sobre os casos de assédio moral e sobretudo dos abusos de consciência, como é chamada a violação do foro íntimo, ou seja, os segredos da própria consciência compartilhados com Deus e que muitas vezes acabam virando instrumento de chantagem nas comunidades religiosas.
“Chegou às minhas mãos o livro de Salvatore Cernunzio publicado recentemente sobre o problema dos abusos. Não os abusos escancarados, mas os abusos cotidianos que fazem mal à força da vocação”, disse Francisco.
Para o vaticanista, um dos problemas está na formação das freiras, já que as madres responsáveis pelas congregações muitas vezes replicam a postura autoritária que as formaram.
Não à toa, muitas das ex-religiosas alvo de assédios e abusos comparam o sistema interno das comunidades católicas aos regimes comunistas ou ao Exército. Embora a formação das religiosas tenha sido discutida no Concílio Vaticano 2º, realizado nos anos 1960 para modernizar a Igreja Católica, pouco se avançou nesse sentido.
“O problema é o clericalismo, ou seja, utilizar a superioridade em razão do cargo. Esse clericalismo foi incorporado por mulheres que são madres superioras ou que têm funções de poder. Não é tanto uma questão de gênero, mas de hierarquia”, comenta Cernuzio, que disse ter ficado horrorizado ao descobrir em Roma uma comunidade religiosa que atende mulheres marginalizadas, muitas delas ex-freiras que ficam desamparadas, sem dinheiro e sem documentos, após desertar da vida religiosa.
A seguir, trechos da entrevista do vaticanista à BBC News Brasil.
BBC News Brasil – O debate na Igreja sobre o abuso contra freiras parece chegar depois dos casos de abusos sexuais cometidos por padres contra crianças e fiéis. É mais uma novidade do pontificado de Francisco?
Salvatore Cernuzio – Num certo sentido, sim. Francisco já disse que o abuso de poder é a antecâmara dos abusos sexuais. Uma das mulheres entrevistadas diz que elas chegaram numa condição de submissão tal que as superioras poderiam dispor delas de qualquer maneira, até mesmo sexualmente, que elas não iriam se rebelar. É o exemplo chave de como se cria, através do abuso de poder e de consciência, o hipercontrole autoritário e ditatorial sobre uma pessoa que pode terminar em abuso sexual.
O problema é o clericalismo, utilizar a superioridade em razão do cargo. Muitas vezes isso impede as denúncias. Esse clericalismo foi incorporado por tantas mulheres que são madres superioras ou que têm funções de poder. Não é tanto uma questão de gênero, mas de hierarquia. As freiras não são respeitadas na sua dignidade, e muitas vezes são sabotadas e tratadas como crianças. É onde se constrói o terreno propício para o abuso.
O papa criou uma atmosfera interna que favorece a verdade e a transparência. O papa reforçou a ideia de uma Igreja que conta as suas dores, os seus sofrimentos e escândalos, que traz o bem da transparência e da purificação.
BBC News Brasil – O livro foi publicado por uma editora católica e você trabalha na Rádio Vaticana. A Igreja parece interessada em abrir sua estrutura para falar dessas questões.
Cernuzio – Houve quem instrumentalizasse essa questão dizendo que a Igreja fez de propósito esse trabalho, utilizando um jornalista interno para evitar uma tempestade por parte da imprensa laica. Não se trata de uma operação do Vaticano, a realidade é outra. Comecei esse trabalho quando ainda estava fora da imprensa vaticana. Uma vez dentro, continuei sem sofrer nenhuma censura. O que me surpreende é ver a disponibilidade de autoridades do Vaticano em promover esse debate. Houve um grande encorajamento por parte de certas pessoas da Igreja.
BBC News Brasil – A obediência é uma questão muito presente no livro, e você menciona a formação rígida e tantas vezes antiquadas das freiras, tema de debate iniciado na igreja há pelo menos cinco décadas. Mas isso ainda parece fora da realidade.
Cernuzio – Essas humilhações e ataques, o que o papa chamou de pequenos abusos cotidianos, são promovidos ou confundidos como uma parte integrante da formação. Essas condutas, aliás, não estão previstas em nenhum documento oficial. Há aspectos da vida consagrada que são difíceis e, para colocar de outra maneira, vão até contra a natureza humana. Por exemplo: estar em silêncio, ficar em jejum, mas isso faz parte de uma vida que você abraça conscientemente. No momento em que acontece um problema e por qualquer motivo você não consegue absorver suas atribuições, passa a ser marginalizada, aí começa o abuso. Há uma linha sútil entre a vida consagrada real e a completa arbitrariedade de uma superiora que decide o humor de uma comunidade e o destino de cada mulher. É uma coisa que precisa de maior controle.
BBC News Brasil – Em alguns casos, se assemelha à formação militar.
Cernuzio – Sim, algumas dizem que viviam em um quartel. E tem ainda o discurso do trabalho, um problema de muitos conventos ou mosteiros pequenos, com poucas freiras. Elas precisam cuidar de toda a estrutura, então precisam trabalhar, trabalhar, trabalhar. Uma jovem me disse que era como viver sob um regime comunista, em que só o trabalho a dignificava e a tornava válida como freira. Elas não tinham tempo nem mesmo para as orações, um dos aspectos principais da vida consagrada. Há sempre o dever de prestar algum serviço, senão você não é uma boa freira, não quer ser uma santa, etc. E isso se degenera de outra forma, em perseguições, vingança, assédio moral.
BBC News Brasil – É possível ter uma vida religiosa sem levar em consideração a questão da obediência?
Cernuzio – A obediência é uma virtude da vida, que aprendemos desde criança. O problema é quando se faz o uso dessa obediência para esmagar, denegrir e impor algo aos outros. Há superiores que fazem de tudo para se manter nos cargos, isso é abuso de poder, não tem nada a ver com obediência, que muitas vezes é usada como arma.
Há uma divisão interna, que ficou tanto tempo exposta, que não funciona, não é útil à vocação religiosa. Uma mulher entra num convento para virar freira e se encontra depois deprimida, falida, sem um trabalho, sem ter aprendido nada, já que tem também o problema da formação. É preciso rever certos sistemas e toda a estrutura fechada e solitária, onde ninguém pede uma ajuda. Há casos de freiras que tinham ataques de pânico, que poderiam ser curadas, mas elas não tinham assistência no tempo certo. Tem sempre essa postura de que não precisa pedir ajuda, não se pode denunciar para não escandalizar os outros e evitar que outras freiras tomem o mesmo caminho. Um sistema assim está totalmente doente.
BBC News Brasil – Seu livro menciona que, em alguns casos, as mulheres e madres superioras podem ser mais cruéis às freiras do que os próprios homens. Por quê?
Cernuzio – Elas replicam o esquema patriarcal que tantas mulheres denunciam, da disparidade de gênero, da hierarquia que oprime. Muitas vezes isso é interiorizado pelas próprias mulheres e replicado às realidades menores, com as mais jovens. Tantas dessas mulheres receberam essa formação, por isso elas repetem o comportamento. Esse é um sistema que precisa ser revisto. Há muitos casos de gente em depressão, em psicoterapia, com dúvidas sobre a vocação. É necessário controlar isso.
BBC News Brasil – Há um problema sério de racismo, em especial contra as freiras asiáticas e africanas. Trata-se de uma reprodução da vida fora da igreja?
Cernuzio – Dentro dos conventos se respira o mesmo ar da sociedade. Uma personagem do livro, africana, conta que, por sua origem, quando estava nos Estados Unidos, foi colocada para fazer trabalhos pesados, como retirar a neve para a chegada do carro do sacerdote, algo totalmente fora de sua atribuição. Há sempre também uma preferência entre as madres superioras. Uma entrevistada contou que a chefe indiana sempre favorecia em Roma as compatriotas, enquanto as outras geralmente tinham que se alimentar com as cestas básicas destinadas aos pobres. A desigualdade se repete no interior da Igreja.
BBC News Brasil – Há casos de freiras utilizadas por padres para trabalhos domésticos. E quase sempre o argumento é de que elas estão servindo ao Senhor. Por que esse paradoxo ainda é tão presente na Igreja?
Cernuzio – O discurso é amplo. É verdade que houve um certo despertar, com muitas mulheres que pedem para estudar, o papa deu função para muitas mulheres no Vaticano. Mas a atribuição de muitas freiras é ficar fechadas dentro de um instituto a vida toda e não fazer nada. Elas não têm saídas, são mantidas em situação de ignorância. Entra também nesse debate a função da mulher dentro da Igreja. Precisamos olhar para a situação interna. A formação, o fechamento, a estratégia política das superiores.
BBC News Brasil – Em outubro começou um sínodo no Vaticano sobre a sinodalidade, que se encerra somente em 2023. Os abusos contras as freiras serão discutidos?
Cernuzio – Há uma expectativa de que isso aconteça. É um processo que se inicia da base, ou seja, pode surgir qualquer coisa. Essas mulheres não tiveram até agora um espaço para discutir certas coisas, além de ter faltado ocasião para falar e denunciar.
Quando uma mulher, por alguma razão, abandona uma congregação ou ordem religiosa, e muitas vezes isso ocorre por questões psicológicas ou problemas com os superiores, elas geralmente saem sem trabalho, sem dinheiro, sem documento, sem nada. Há até quem deseja criar um fundo para ajudá-las nessa situação.
Mas sempre se retorna, nesse debate, à questão do fechamento, do segredo. Como se qualquer discussão sobre o tema devesse ser realizada dentro de quatro paredes. Com um clima favorável, espera-se que surjam coisas novas. Tomara que não seja uma oportunidade perdida.