Em uma decisão liminar, a Justiça Federal proibiu o povo Ava Guarani de ocupar e promover movimentações dentro do Parque Nacional do Iguaçu (PNI), no Oeste do Paraná, sob pena de multa diária de R$1 mil. A determinação do juiz Sérgio Luís Ruivo Marques atendeu uma ação de interdito proibitório proposta pelo Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade (ICMBio), que administra o parque, e segundo o qual há “risco iminente” de “invasão” de áreas por indígenas.
O pedido liminar foi feito também com base em uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF) do Paraná. Em declaração ao G1, a procuradora Monique Cheker, que assina o documento com a colega Indira Bolsoni Pinheiro, admite não haver notícias efetivas sobre “invasões”, mas diz que a ação preventiva se faz necessária.
Publicada em 11 de dezembro, a decisão judicial intimou a Delegacia da Polícia Federal (PF) de Foz do Iguaçu para que monitore com maior atenção as movimentações dos Ava Guarani, originários deste território. Ambos os documentos que fundamentam a liminar afirmam que as informações de “risco” de retomadas indígenas no parque vieram do Núcleo de Inteligência da PF.
“Foi criado um fato inverídico de que iríamos invadir o PNI para nos atacar de forma leviana e vil, ao invés de buscar a verdade”, reagiram os Ava Guarani do Tekoha Guasu Ocoy-Jacutinga, em um ofício enviado ao MPF. Nele, os indígenas afirmam ter ficado “estarrecidos” com os documentos do ICMBio e MPF que, segundo eles, estão carregados de “manifestações preconceituosas e violentas”.
“Ao recomendar medidas antecipadas de proteção ao ICMBio, fomos tratados como tratavam os indígenas do período colonial, vítimas da ‘guerra justa’ ou guerra preventiva. Atacar e matar os indígenas porque ouviram dizer que iriam ser atacados, aqui se passou processo semelhante”, denunciam os Ava Guarani.
“Não basta os ataques cotidianos aos nossos parentes do Guasu Guavirá”, diz a carta, se referindo aos atentados de pistoleiros contra a comunidade Yvy Okaju em Guaíra (PR), que apenas no último 3 de janeiro alvejou quatro indígenas. “Agora parece que desejam também nos ver atacados por terceiros”.
“Não fomos ouvidos, não sei de onde tiraram essa ideia, sem comunicar nem conversar com ninguém”, critica Lino Kunumi Pereira, da Comissão Regional Tape Rendy Avaeté. “É muito ruim esse tipo de coisa porque é uma ameaça a nós, indígenas”, resume.
“Lembramos que o Parque Nacional do Iguaçu é Terra Guarani. As Cataratas do Iguaçu, como as Sete Quedas no rio Paraná, são espaços sagrados de nosso povo, há milhares de anos, mesmo que invadidas pelo PNI e pela Itaipu”, ressalta o documento escrito pelos Ava Guarani.
“Jamais abriremos mão de nossos lugares sagrados, mas estamos fazendo pela lei e pela ordem, inclusive mais pela lei dos juruá kuéra (brancos) que pela nossa lei. Pela lei dos juruá kuéra estamos pedindo a identificação de terras tradicionalmente ocupadas, aquelas que são nossas; e estamos pedindo as devidas reparações da Itaipu, Funai e Incra das graves violações de direitos, através de compra/desapropriação de terras particulares, o que não inclui o PNI”, salientam os indígenas.
Principal polo turístico da região, o Parque Nacional do Iguaçu é visitado, anualmente, por uma média de 1,8 milhão de pessoas. Dentro dele há um hotel e residências de dezenas de famílias de servidores do ICMBio.
A área de preservação ambiental “é atacada permanentemente com milhares de litros de veneno nos cursos d’água que cruzam o mesmo e a transgenia do seu entorno”, acrescentam os Guarani no documento, ao argumentarem que soa “ignorância” ou “má fé” dizer “que alguns indígenas iriam destruir o parque”: “Será que há empenho dos órgãos que nos atacaram para pedir a um Juiz Federal que impeça essa violência sistêmica ao Parque?”.
“Hoje, no momento, qualquer movimentação de indígena próximo ao parque ou um ônibus com uma excursão pode ser motivo para que sejam parados pela PF ou pela Polícia Militar. É uma questão muito séria”, alerta Osmarina Oliveira, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
“Criaram um factoide”
A situação atual tem como pano de fundo duas ações envolvendo a luta dos Ava Guarani pelas terras das quais foram expulsos no Oeste paranaense.
Nos anos 1970, parte das terras deste povo foi submersa pela instalação da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Um dos processos, a Ação Civil Originária nº 3.555 que está no Supremo Tribunal Federal (STF), diz respeito à negociação em curso para que a Itaipu adquira fazendas sobrepostas ao território tradicional Ava Guarani, como forma de reparação territorial.
Paralelamente, existe outra ação, apresentada pelo MPF em 2017, que determina que a Funai e a União têm a obrigação de demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos Guarani na região. Extrapolando o prazo de dois anos estabelecido na época, a Funai criou um Grupo de Trabalho (GT) em 2023 que recentemente apresentou uma versão preliminar destes estudos.
Segundo apuração da reportagem, em meio ao levantamento de informações do GT, houve uma conversa entre lideranças indígenas, pesquisadores e membros da gestão do PNI a respeito de indícios de que parte das terras tradicionais identificadas incidam sobre o parque.
Durante a conversa, aventou-se a possibilidade de que áreas do entorno do PNI sejam compradas e entregues de volta aos indígenas e que a inciativa, inclusive, poderia contribuir na proteção ambiental dos arredores do parque. Não houve, no entanto, qualquer processo formal instaurado neste sentido. “Foi só uma conversa”, conta Celso Alves, da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
Na recomendação que embasou a liminar, o MPF diz que estaria em curso a criação de um acordo “para viabilizar o uso de parte do Parque Nacional pelos Ava Guarani, em razão de apontamento da Funai acerca de áreas de interesse para destinação dessa população”. E que isso representa a “ameaça” de um “desastre” ao parque.
“É claro que a Itaipu não vai comprar o Parque Nacional, isso é uma coisa absurda. Não tem como comprar áreas de um Parque Nacional, você compra de quem quer vender, você compra de um proprietário”, elucida Clovis Brighenti, também do Cimi. “Misturaram as questões e criaram um factoide propositalmente para incriminar os Guarani”, avalia.
Segundo Celso Alves, os indígenas foram pegos de surpresa. “Foi um diálogo e já pensaram que a gente queria retomar. Dialogamos para negociar com a Itaipu, a gente teve essa ideia de conversar com o pessoal do PNI sobre áreas perto do parque. A gente não estava falando de entrar no parque, e aí já proibiram os Ava Guarani de circular no parque”, relata Alves. “É um desrespeito”, aponta.
Inversão entre invasores e invadidos
Em sua decisão, o juiz Sérgio Marques diz que “os direitos das pessoas indígenas devem ser equacionados também com o interesse público na conservação do meio ambiente, o que se apresenta ainda mais salutar em se tratando de unidade de conservação da natureza”.
Para Clovis, a mera possibilidade aventada de os Guarani viverem próximo ao parque “já gera um ‘auê’ de setores vinculados aos empreendimentos do turismo. Não se trata de uma preocupação ambiental com o parque, é uma preocupação econômica com a geração de lucro”, argumenta.
“Colocam os Guarani como possíveis invasores e destruidores ambientais. Fazem uma inversão. Os povos indígenas é que tiveram suas terras invadidas. Eles é que tem uma relação de respeito e proteção com o meio ambiente”, pontua Brighenti.
“Isso é muito grave porque atinge, fundamentalmente, as pessoas. A gente fala ‘os indígenas’, fica genérico. São povos que estão aqui na região e que estão sendo acusados de violadores. Sendo que eles é que foram violados, eles que foram expulsos pela Itaipu Binacional da terra que ocupavam” reforça o integrante do Cimi.
A reportagem pediu uma posição do ICMBio ao longo de dias, por telefone e e-mail, mas não houve resposta. Caso haja um retorno, o texto será atualizado.
Procurado, o MPF do Paraná limitou-se a enviar o link de uma matéria do G1, dizendo que a posição do órgão está expressa na entrevista dada pela procuradora. Nela, Monique Cheker diz que o “elo mais frágil” da história é o parque, em “um jogo que talvez não queira responsabilizar devidamente a quem de direito teria responsabilidade por essas terras indígenas”.
Ao Brasil de Fato, a Itaipu Binacional informou que “comprometeu-se a adquirir terras privadas no noroeste do Paraná como medida compensatória às comunidades Ava Guarani impactadas pela construção da barragem. A aquisição será realizada a preços de mercado, respeitando a iniciativa dos proprietários interessados em vender”. A empresa ressalta, ainda, que as negociações estão sob responsabilidade da Funai e do Ministério dos Povos Indígenas (MPI).
Entre as reivindicações endereçadas ao MPF, os Ava Guarani demandam que sejam tomadas medidas para a anulação da decisão judicial e que sejam sempre procurados pelos órgãos para conversar sobre qualquer tema que lhes diga respeito, conforme previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Ao ICMBio, dizem os indígenas, que evite “propagar notícias falsas e infundadas”. E à Funai, terminam, que “conclua o GT de identificação e delimitação” das Terras Indígenas da região.