Intolerância religiosa agride duas pessoas por mês na Bahia
Luana Almeida
A cada mês, pelo menos duas pessoas no estado são agredidas, excluídas ou desrespeitadas por conta da religião, credo, culto ou práticas litúrgicas que escolheram seguir.
O dado é do Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela, que desde 2014 já registrou cerca de 38 ocorrências desse tipo de crime, previsto no artigo 208 no Código Penal Brasileiro.
Este ano, a entidade – vinculada à Secretaria de Promoção da Igualdade Racial (Sepromi) – já contabilizou 11 casos. Todos eles envolvem preconceito contra pessoas de religiões de matrizes africana. O mais recente envolve a morte de uma ialorixá de 90 anos em Camaçari (Grande Salvador).
Mildreles Dias Ferreira, conhecida como Mãe Dede de Iansã, faleceu na madrugada do último dia 1°, vítima de um infarto. A família da sacerdotisa atribui a morte à perseguição sofrida ao longo de um ano de fiéis da igreja evangélica Casa de Oração Ministério de Cristo, que se instalou em frente ao terreiro Oyá Denã.
“Quando as pessoas chegavam aqui para entrar no nosso terreiro, os fiéis da igreja gritavam coisas como ‘se retira, Satanás’. Também nas pregações, o pastor xingava o candomblé”, denunciou a filha de criação de Mãe Dede, Mary Antônia Monteiro, 61.
Em uma última vigília realizada no templo evangélico que, segundo Mary, chegou a entrar pela madrugada, as ofensas à casa de santo aumentam.
“O barulho foi tão grande que minha mãe não conseguiu dormir, ficou agitada com os gritos do pastor e passou mal. Ela já tinha 90 anos, mas fazia tudo sozinha, estava lúcida. Foi muito aborrecimento”, lamentou.
Evangélicos negam
Procurados pela equipe de reportagem de A TARDE, os responsáveis pela Casa de Oração não foram encontrados. Mas Carlos de Oliveira, diretor da Associação de Pastores e Ministros do Brasil, entidade que representa as igrejas evangélicas do país, negou as acusações.
“É irresponsável atribuir a morte de uma idosa, vítima de um infarto, à conduta de um pastor. Ainda que a ialorixá tenha se aborrecido, ela tinha vivência suficiente para não se importar com qualquer atrito”, afirmou.
Oliveira disse não conhecer o pastor responsável pela Casa de Oração Ministério de Deus, mas afirmou que a maior parte dos integrantes da igreja é pacífica.
“Acredito que seja um caso isolado. Estamos atentos para comportamentos agressivos. A discordância existe, mas está apenas no âmbito das ideias. A igreja não prega a violência”, completou.
Desrespeito
Embora não estejam contabilizados, adeptos de outras religiões também afirmam ter sofrido agressões. A advogada Ana Cristina Abir da Costa, 36, que professa o islamismo, contou que ouve piadas sobre a vestimenta desde a infância.
“Uso o véu em respeito à tradição da minha família, me sinto bem, bonita. Muitas vezes riram de mim, me chamaram de terrorista. Antes, encarava como brincadeira. Agora, levo muito a sério. Não aceito desrespeito com a minha fé”, afirmou.
Por conta do uso do quipá – espécie de chapéu utilizado pelos judeus -, o publicitário Alexandre Brandão, 41, também foi alvo de agressões verbais. “Certa vez, pediram que eu tirasse meu quipá em uma revista policial. Argumentei que aquilo não fazia o menor sentido, pois era um símbolo religioso. Fui xingado e disseram que minha religião não era ‘de Deus'”, relembrou o publicitário.
A pedagoga Jorgiana Aldren, 33, chegou a ser agredida fisicamente por um pastor evangélico em uma missão católica.
“Ele criticou a minha religião e a adoração de imagens, quis pegar na minha cabeça e, como me afastei, ele bateu em minha mão. Foi um fato triste, que demonstra ignorância e fanatismo”, lamentou a pedagoga.
DIRETOR DE CENTRO DIZ QUE NÚMEROS SÃO “TÍMIDOS”
Em menos de dois anos de funcionamento, o Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela já acumula pelo menos 100 denúncias de preconceito racial ou de credo.
Para o coordenador da instituição, Walmir França, os números ainda são tímidos: “Muitas vítimas não sabem da importância da denúncia, não sabem que se trata de um crime”.
As atividades do centro vão além do simples registro. Quem chega ao local recebe também orientação jurídica e psicológica.
“Ao chegar, fazemos uma triagem e encaminhamos para o atendimento. A maioria sofreu algum tipo de preconceito no ambiente de trabalho, no shopping ou na rua”, explicou.
A intenção, segundo França, é contribuir para uma mudança de mentalidade. “Trabalhamos, para aumentar o grau de resolutividade desses casos”, disse.
Desafios
O centro é uma das portas de entrada dos casos acompanhados pela Rede de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa do Estado da Bahia.
De acordo com a secretária de Promoção da Igualdade Racial, Vera Lúcia Barbosa, o trabalho da rede funciona de forma integrada com cerca de 20 secretarias e órgãos e alcança resultados positivos. “A Bahia é um dos poucos lugares que reservam atenção especial para esse tema, que é antigo no seio na sociedade, mas novo para a máquina pública”, afirmou ela.
Alguns dos desafios para o combate à intolerância religiosa, segundo Vera Lúcia, são a falta de informação e a subnotificação dos casos.
“Antes, atitudes desrespeitosas eram vistas como normais. Temos um longo caminho a trilhar para mudar essa cultura repressora, exercitar a tolerância e o respeito”, disse a gestora.
REPRESENTANTES DE INSTITUIÇÕES REPUDIAM DISCRIMINAÇÃO
A morte de Mãe Dede, ialorixá do terreiro Oyá Denã, em Camaçari, ganhou repercussão na mídia nacional e suscitou debates nas principais redes sociais.
Foi com repúdio que representantes de diversas religiões da Bahia disseram encarar qualquer manifestação de desrespeito ou exclusão por conta da fé.
Para o coordenador de ecumenismo e diálogo intereligioso da Arquidiocese de Salvador, frei Jorge Rocha, o respeito ao próximo está além da questão religiosa.
“A dignidade humana deve ser respeitada em qualquer circunstância. A igreja abomina a violência e preza para que os ensinamentos saiam dos documentos e se tornem atitudes”, disse.
Djalma Torres, pastor da Igreja Evangélica Antióquia, vê a depreciação de práticas religiosas como “pecado”. Para ele, “o cristianismo ensina que devemos conviver de forma harmoniosa com as diferenças. Uma postura contrária à essa não pode ser atribuída a qualquer seita que pregue a paz”.
Questionada sobre o tema, a assessoria de comunicação da Igreja Universal do Reino de Deus respondeu por meio de nota que “respeita os fiéis de todas as
religiões”. O comunicado aponta que “a intolerância religiosa, como qualquer tipo de preconceito, é fruto da ignorância do ser humano e, no caso de religiosos que a praticam, a maior prova de que sua religião é vazia de Deus”.
Diferenças
Na opinião do antropólogo e teólogo Josué Caldas, casos de intolerância religiosa são históricos em nossa sociedade e ressurgem na atualidade, sobretudo, por conta do desconhecimento a respeito do tema.
“As pessoas têm facilidade em criticar e julgar o que não conhecem. A crença é fruto de uma escolha pessoal, que deve ser respeitada como qualquer outra. Entender que a liberdade de expressão não está associada à disseminação do ódio é o primeiro passo para uma convivência pacífica com as diferenças”, argumentou.
Como denunciar
Rapidez
Quem for vítima ou testemunhar casos de intolerância religiosa deve denunciar de imediato
Crime
A pena prevista para o crime de intolerância religiosa é prisão de 1 a 3 anos e multa
Recomendações
É importante prestar queixa em uma delegacia. Narre o ocorrido com o máximo de detalhes
Endereço
Centro de Referência Nelson Mandela funciona na Av. Sete de Setembro, 282, Ed. Brasilgás
Disque-denúncia
Centro de Referência Nelson Mandela:
(71) 3117-7438/7445
Ouvidoria Geral do Estado (OGE): 162
Fonte: A Tarde