Juizados de Violência Doméstica descumprem Lei Maria da Penha ao não decretarem divórcio, alerta advogada
Por Camila São José
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Divórcio é um direito potestativo, o que significa dizer que ele não depende de prova, da outra pessoa aceitar ou se manifestar. Nos casos em que o divórcio é solicitado com base na Lei Maria da Penha (11.340/2006), cabe à Justiça dar prioridade na análise do pedido.
Foi o que fez a modelo e apresentadora Ana Hickmann, que ingressou com ação de divórcio na 1ª Vara Criminal e de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Paulo, após o pedido de medida protetiva contra o ex-marido, o empresário Alexandre Correa, por violência doméstica. Eles estavam casados há 25 anos.
O Juízo da 1ª Vara Criminal e de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher declinou da competência e redistribuiu o processo para a Vara da Família e Sucessões, como sinalizou o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), devido à “alta complexidade e especialidade da ação” que “ultrapassam os limites e parâmetros circunscritos à competência criminal ou atinente ao rito de celeridade das causas envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher”.
A decisão não significa que o divórcio foi negado, mas descumpre norma prevista no artigo 14 A da Lei Maria da Penha, explica a advogada e diretora da Tamo Juntas, Letícia Ferreira.
O texto da legislação diz que a “ofendida tem a opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher”, excluindo da competência desses juizados apenas aquilo que for relacionado à partilha de bens. “Iniciada a situação de violência doméstica e familiar após o ajuizamento da ação de divórcio ou de dissolução de união estável, a ação terá preferência no juízo onde estiver”, indica o inciso 2º.
“O caso de Ana Hickmann, na verdade, repete um padrão de resposta do Judiciário, que tem encaminhado às Varas de Família demandas cíveis, justamente por considerar que essas demandas são muito complexas para serem tratadas no Juizados de Violência Doméstica e Familiar. Nós temos insistido, mas não temos obtido respostas no sentido de efetivar esses dispositivos da lei que autorizam sim que ela possa propor a ação de divórcio, de solução de união estável”, pontua Ferreira ao Bahia Notícias.
Tendo o exemplo do caso da apresentadora, a advogada afirma que o divórcio poderia ter sido decretado pelo Juizado de Violência Doméstica e as questões cíveis, como a partilha de bens, alimentos e guardas dos filhos, encaminhadas à Vara de Família.
“O que na verdade fez foi encaminhar todo o pedido de divórcio e a partilha de bens, e outras questões que devem relacionar o filho do casal, para a Vara de Família como vara competente”, explica.
“Ele [o divórcio] poderia ter sido decretado no Juizado de Violência Doméstica? Sim, porque existe essa previsão legal. O juiz tem feito isso? Não. Por quê? Porque eles consideram que essa competência é completa da Vara de Família. Só que nós, como organização que inclusive advoca pela Lei Maria da Penha, defendemos a competência híbrida e a possibilidade de o juiz ter decretado o divórcio já no pedido de medida protetiva. Seria perfeitamente cabível e tem previsão legal”.
Para solicitar o divórcio, leia-se o fim da relação matrimonial, Letícia Ferreira sinaliza que basta apresentar a certidão de casamento no Juizado da Violência Doméstica ou na Vara de Família. Procedimento válido para todas as pessoas, incluindo as mulheres vítimas de violência e que acionam a Maria da Penha para o pedido.
“A mulher não precisa fazer outras provas em relação ao fim do casamento, o porquê acabou o casamento. Não. O divórcio, como eu disse, é um direito potestativo. Ele é um direito que cada pessoa pode exercer independente da outra. Então, se você decide pedir um divórcio, o juiz tem a obrigação de decretar esse divórcio”.
Apesar de assegurar a decretação do divórcio, é preciso que as partes tenham em mente que o processo de qualquer maneira seguirá tratando das questões cíveis do casamento. Por isso, ao acionar o dispositivo da Lei Maria da Penha, a advogada indica que a parte que anda mais rápida no processo é somente o fim da relação matrimonial.
O ponto ao qual é preciso estar atento, como ressalta a advogada da Tamo Juntas, é que, em série de medida protetiva, o relato da mulher tem especial relevância como comprovação de violência.
“Isso é importante destacar, porque você tem a noção de que a violência doméstica por acontecer no ambiente familiar é de difícil apreensão de testemunhas, então não tem essa questão probatória muito elevada. Lembrando também que não necessariamente a mulher é obrigada a registrar um boletim de ocorrência para pedir a medida protetiva, que ela pode trazer outros elementos que levem o juiz a entender que a integridade física e psicológica dela está em risco, e que existe uma situação de violência doméstica. É evidente que quanto mais elementos ela tiver melhor vai ser compreendida a situação pelo juiz”, detalha.
“Para pedir o divórcio na Vara de Violência Doméstica, tem que ter um contexto de violência doméstica. Mas ela não precisa se exaurir de comprovar, uma vez que ela já fez um boletim de ocorrência ou que ela tenha prints ou um relato também que seja coeso com a situação, o juiz vai considerar. Acho que é importante frisar que o relato da mulher tem especial relevância nas situações de violência doméstica, porque muitas mulheres acham que não vão conseguir comprovar. Isso é bem significativo e importante”, complementa.
A preocupação para quem atua no combate à violência doméstica contra a mulher está relacionada diretamente às vítimas de baixa renda. Na visão de Letícia Ferreira, o que aconteceu com Ana Hickmann acende ainda mais o alerta.
“Essa resistência do Judiciário em aplicar integralmente a Lei Maria da Penha, em fazer com que os Juizados de Violência Doméstica tenham essa competência cível e criminal, essa competência híbrida, traz sim revitimização, prejudica as mulheres no acesso à Justiça, as coloca numa situação de vulnerabilidade e estigma. Isso para mulheres que estão em vulnerabilidade social e econômica é mais um entrave, pois elas vão ter que buscar outro tipo de apoio para ingressar numa Vara de Família para dar entrada no processo de divórcio. Então essas situações vão sendo prejudiciais ao enfrentamento à violência, uma vez que uma mulher que está sinalizando que quer se divorciar, que está sinalizando o contexto de violência doméstica, tem o direito garantido de ter o seu vínculo rompido imediatamente. E nós temos previsão legal para isso”, analisa.
“Eu até, sinceramente, torci muito para que a Ana Hickmann tivesse o seu divórcio decretado pelo Juizado porque nós teríamos um grande trunfo na mão, mas infelizmente não aconteceu. O Judiciário continua sendo bem resistente, bem refratário a atender integralmente às mulheres que estão em situação de violência e ao cumprimento integral da Lei Maria da Penha”, reforça.
Diante da repercussão do tema a partir da vivência de Ana Hickmann, Letícia Ferreira orienta que as mulheres vítimas de violência não desanimem e não desistam de ingressar na Justiça com pedido de divórcio e medida protetiva. (BN)