Justiça Federal mira leilão de área verde no Morro Ipiranga; MP aponta risco ambiental e diz que terreno pode deslizar

Terreno no Morro Ipiranga colocado em leilão é alvo de especulação imobiliária é uma das últimas áreas verdes da região da Barra  |   Bnews - Divulgação Foto: MP-BA

Por Matheus Simoni, do BNews

Previsto para o próximo dia 15 de abril, às 10h, o leilão de um terreno público na Encosta do Morro Ipiranga, no bairro da Barra, em Salvador, já foi alvo de impugnação e, agora, ganhou novos contornos. O Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia (CAU) ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal pedindo a suspensão imediata do certame, alegando, entre diversas irregularidades, o impacto ambiental e urbanístico. A BNews Premium teve acesso ao processo e conta com detalhes como o leilão pode ser suspenso.

Na petição, o CAU toma como base um parecer técnico elaborado a pedido da 1ª Promotoria de Justiça do Meio Ambiente do Ministério Público da Bahia (MP-BA), que aponta que os dois terrenos localizados em uma das últimas áreas verdes da região, não devem ser edificados nem ter sua vegetação suprimida.

O documento destaca a importância ambiental, paisagística e cultural das áreas, além de alertar para riscos de erosão e deslizamentos. O parecer foi obtido com exclusividade pela BNews Premium.

Os terrenos, identificados como C034 e C035, somam cerca de 5.800 metros quadrados e foram desafetados pela Lei Municipal nº 9.775/2023 — medida que permite a alienação, permuta ou doação dos imóveis. O Ministério Público, no entanto, vê o movimento com preocupação, considerando o valor ambiental e urbano das áreas. O órgão recomenda que os terrenos sejam mantidos sob domínio público e integrados à política de preservação ambiental da cidade.

A BNews Premium traz uma série de reportagens especiais sobre denúncias, investigações e apurações exclusivas, sempre aos domingos. Clique aqui, confira os outros materiais e compartilhe.

“Por serem áreas de encosta vegetada com espécies de restinga, fitofisionomia da Mata Atlântica, a importância da área para o tecido social urbano reside na manutenção da qualidade ambiental (natural e urbana) local e regional”, assina o MP.

O parecer foi elaborado por uma equipe multidisciplinar composta por arquitetos, urbanistas, engenheiros e biólogos, com base em visitas técnicas e análise documental. Os profissionais destacam que os terrenos estão em área de encosta com inclinação superior a 45 graus, classificada como de “alta vulnerabilidade geotécnica”.

Justiça intima prefeitura a se manifestar

A ação civil pública foi distribuída para o juiz federal Alex Schramm de Rocha, titular da 7ª Vara Cível e Agrária da Seção Judiciária de Salvador. O magistrado abriu prazo de 72 horas e intimou a Prefeitura de Salvador a se manifestar sobre o caso. Com isso, a gestão municipal tem até as 10h20 (horário da intimação via e-mail) da próxima segunda-feira (14).

Repercussão internacional

Na ação civil pública, o CAU aponta que a repercussão negativa pode ter impactos na visão da capital baiana internacionalmente. O conselho afirma que, num cenário de emergência climática, a área verde da encosta do Morro do Ipiranga também possui função de regulação térmica.

“Portanto, é lastimável a conduta da Municipalidade, ao submeter a leilão a referida área verde pública, o que, dentre diversos desdobramentos negativos, também enseja repercussão extremamente negativa no cenário nacional e internacional, visto que o Brasil sediará a 30.ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 30”, enfatiza o CAU-BA.

Morro Ipiranga tem relevante papel ambiental e cultural da cidade, aponta relatório do MP
Morro Ipiranga tem relevante papel ambiental e cultural da cidade, aponta relatório do MP

Ainda segundo o conselho, caso a encosta do Morro do Ipiranga passe a ser ocupada por edificações, a água das chuvas não será absorvida pelo concreto das edificações, evidenciando o risco de acúmulo de água, ou seja, risco de alagamentos e tragédias. A entidade aponta que o risco se soma à questão do chamado “adensamento urbano”, termo utilizado por especialistas para apontar o crescimento populacional ou de edificações em determinado espaço, o qual já é bastante considerável na região da Barra.

“Inclusive, a manutenção da referida área verde, em consonância com a sua finalidade, é muito importante para a ventilação na cidade, visto que Salvador atualmente já apresenta um frontispício que evidencia barreiras de prédios que dificultam a ventilação”, diz o CAU.

Risco geológico e importância ambiental

Simulação
Simulação feita pela área técnica do MP com base em projeções edificações no local

De acordo com os técnicos do MP, as duas áreas estão localizadas em encostas íngremes, o que caracteriza alto risco de instabilidade. O terreno C035, por exemplo, já apresenta erosões ativas e solo exposto, com ausência de dispositivos de drenagem. Já o terreno C034 conta com alguma proteção, mas também mostra sinais de desgaste.

As áreas são cobertas por vegetação típica de restinga, considerada parte do bioma Mata Atlântica e protegida por legislações federais e estaduais. Entre as espécies identificadas estão a embaúba, a aroeira e a jurubeba — essa última, indicadora de vegetação de restinga em estágio primário, o que reforça o valor ecológico dos terrenos.

Confira:

Vegetação
Caption
Vegetação
Caption

Pressão imobiliária e verticalização

O parecer também denuncia a pressão do mercado imobiliário na região, marcada por uma intensa verticalização nos últimos anos. O Morro Ipiranga, que antes abrigava residências familiares, tem sido alvo de empreendimentos de alto padrão, com prédios de luxo, o que vem descaracterizando a paisagem e reduzindo as áreas verdes da orla da capital baiana.

Os técnicos chamam atenção para o risco de que a desafetação abra caminho para novas construções nos terrenos, prejudicando a ventilaçãoaumentando a temperatura local e reduzindo áreas públicas de contemplação da paisagem.

“Os imóveis possuem valor locacional diferenciado, com vista para cartões postais da cidade como o Farol da Barra, e devem ser preservados como espaços públicos”, diz o documento.

Comparativo entre as tipologias construtivas ao longo dos últimos anos na regiãodoMorro Ipiranga
Comparativo entre as tipologias construtivas ao longo dos últimos anos na região do Morro Ipiranga

Legislação prevê proteção

Apesar de estarem em zona predominantemente residencial, os dois terrenos fazem parte do Sistema de Áreas de Valor Ambiental e Cultural (SAVAM) e são classificados como Áreas de Proteção Cultural e Paisagística (APCP). Segundo a legislação municipal, essas áreas estão sob proteção especial, o que se sobrepõe às regras de uso da área.

O parecer reforça que, por lei, as encostas, restingas e áreas com vegetação nativa devem ser preservadas, não sendo consideradas inservíveis, indo de encontro ao que diz a gestão municipal. O MP ainda aponta que a construção nesses locais pode agravar ainda mais problemas como erosão, escassez de áreas verdes e desequilíbrio climático.

Solo exposto evidenciando erosão no terreno
Solo exposto evidenciando erosão no terreno (Foto: MP-BA)

Destinação pública e função social

Embora não recomendem construções, os técnicos do MP-BA avaliam que as áreas poderiam ser adaptadas para equipamentos de lazer de baixo impacto, como mirantespraças ou parques. A proposta considera o valor cênico da região e seu potencial para uso público com foco na contemplação da paisagem.

O órgão considera a legislação urbanística de Salvador e menciona os terrenos como parte do SAVAM e APCP como vetores ao definir o que pode ou o que não pode ser ocupado no local. São essas categorias que restringem a ocupação e sobrepõem-se às permissões previstas para zonas residenciais.

O Ministério Público conclui que a desafetação dos terrenos contraria o interesse coletivo, uma vez que as áreas não são inservíveis, como alegado pela prefeitura, mas sim dotadas de função pública ambiental e cultural relevante.

Segundo o relatório, manter as áreas sob domínio do poder público é essencial para garantir sua preservação, já que mudanças futuras na legislação urbanística podem abrir brechas para uso privado, mesmo em zonas sensíveis como a do Morro Ipiranga.

“A alteração do uso do solo na área certamente traria diversos impactos ambientais negativos locais, destacando-se: impermeabilização do solo, perda desolo, deslizamentos, perda de biodiversidade, aumento da temperatura, aumento do escoamento superficial e degradação da beleza cênica. Portanto, o terreno deve manter-se com posse e domínio públicos”, finaliza o MP.

MP reforça potencial de terreno no Morro Ipiranga com vista para um dos principais cartões postais da cidade
MP reforça potencial de terreno no Morro Ipiranga com vista para um dos principais cartões postais da cidade

Especialistas discordam de iniciativa da prefeitura

Uma nota técnica assinada pelos professores da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (UFBA) apoiou o parecer divulgado pelo MP-BA e criticou a lei que possibilitou as desafetações na capital baiana.

“A lei que autoriza desafetar áreas de domínio público além de absurda, reforça a lógica perversa de uma ‘especulação imobiliária’ desenfreada em curso, pondo em risco a ideia de uma cidade planejada racionalmente, ferindo os preceitos do ordenamento jurídico superveniente”, diz o comunicado divulgado nesta semana e obtido pela BNews Premium. Ao todo, 45 professores assinalam a nota.

Ainda segundo os docentes, a legislação criada pela gestão municipal deixa de atender diversos pontos importantes e previstos no Estatudo da Cidade. São eles:

Nota
Caption

O que diz a prefeitura 

Procurada pela BNews Premium, a Prefeitura de Salvador não se manifestou sobre a nota divulgada pelos especialistas da Ufba. Sobre os pedidos de impugnação, a gestão municipal informou que acolheu e está analisando todos os protocolos, conforme os prazos estabelecidos na legislação vigente.

“A Prefeitura destaca que a maior parte das solicitações possui caráter de esclarecimento e reclamação, sem apresentar questionamentos jurídicos diretos ao conteúdo do edital. A gestão municipal reforça, ainda, que as respostas serão publicadas até esta sexta-feira, data-limite prevista em lei”, afirma.

Publicamente, o prefeito já defendeu que a desafetação e o leilão da área geraram uma arrecadação milionária para a gestão municipal. “Tem uma encosta ali, quase em frente ao Clube Espanhol, que não serve para nada, não gera um real de imposto para a prefeitura de Salvador e que a prefeitura desafetou uma área que está quase sem vegetação. Uma área que era avaliada por 4 milhões de reais que nós levamos para leilão e foi arrematada por 16 milhões de reais”, afirmou o prefeito, durante entrevista à imprensa em fevereiro.

Bruno argumenta que a transação trará benefícios fiscais, como arrecadação de ITIV (Imposto sobre a Transmissão Inter Vivos) e IPTU do futuro empreendimento. Segundo o prefeito, a negociação pode gerar uma arrecadação de até R$ 50 milhões para os cofres públicos, recursos que seriam usados em projetos sociais.

“Esses 50 milhões de reais permitem a gente mudar a vida do povo pobre da periferia dessa cidade, abrir restaurantes populares, abrir mais escolas para as crianças estudarem”, disse.

Outro leilão já foi suspenso

Em março de 2024, a Justiça Federal já havia suspendido um outro leilão de um terreno de quase 7 mil m² localizado na encosta do Corredor da Vitória, bairro nobre da capital. A decisão foi tomada em resposta a uma ação civil pública proposta pelo mesmo Conselho de Arquitetura e Urbanismo da Bahia.

Na ocasião, a entidade alegou que o local é uma Área de Proteção Permanente (APP), protegida por legislação ambiental e pela Lei de Uso e Ocupação do Solo do município, argumentos similares aos que foram utilizados no caso do Morro Ipiranga.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *