Lima Barreto é bom remédio para nossa enxaqueca republicana e democrática, diz Lilia Schwarcz

Néli Pereira

Lima Barreto
Lima Barreto em foto de sua ficha em hospital psiquiátrico, em 1914

Se estivesse vivo, o escritor Lima Barreto (1881-1922) talvez fizesse piada com o 7 a 1 da Alemanha sobre o Brasil ou destilasse sarcasmo ao comentar a crise política nacional. Sua picardia, a qualidade de sua prosa, suas críticas aos estrangeirismos e à qualidade do funcionalismo público e sua literatura de temática racial não poderiam estar mais atuais, defende a historiadora Lilia Moritz Schwarcz.

Autora de uma recém-lançada biografia do autor, Lima Barreto – Triste Visionário, publicada pela Companhia das Letras, ela navega pela história do personagem para desaguar em um tratado sobre uma “certa história do Brasil”.

Vítima de um grave alcoolismo, que o levou a duas internações manicomiais, Lima Barreto teve sua obra silenciada por muito tempo, já que conseguiu desagradar a toda elite cultural e econômica nacional no início do século passado.

Revisitado política e literariamente, ele é o tema da Feira Literária de Paraty (Flip) deste ano, que acontece entre esta quarta-feira e o domingo. “Essa é a Flip da crise. Tinha que ser o Lima Barreto para ser uma edição mais marginal, que vai ser menor, não vai ter tenda, tem que ser na Igreja, enfim. Parece que o Lima desestabiliza até na Flip, quando chega a vez dele é diferente”, disse Schwarcz à BBC Brasil.

Veja a seguir os principais trechos da conversa com a historiadora.

A historiadora Lilia Schwarcz
Schwarcz vê conexões entre seu livro anterior, ‘Brasil: Uma Biografia’, e obra sobre Lima Barreto

BBC Brasil – A biografia de Lima Barreto sucede seu livro Brasil: Uma Biografia. As duas obras têm algo em comum?

Lilia Schwarcz – Sim. Lima Barreto teve uma biografia fundamental, de Francisco de Assis Barbosa, de 1951. Mas eu queria outro Lima – que era vítima sim, mas que tinha protagonismo. E eu queria inquirir o tema racial e a questão de gênero – essas são questões da nossa geração, e não podia cobrar isso do Francisco de Assis. Minha geração é que tem convivido com as questões dos direitos civis, das diferenças.

Eu lia Lima Barreto havia muito tempo, já identificava isso e é uma história do Brasil, é uma certa história do Brasil. Quando eu fiz o Brasil: Uma Biografia, muito influenciada pela pesquisa, a gente dizia que um dos pilares da história do Brasil é a questão racial, que ainda é uma grande invisibilidade hoje no Brasil.

Para você ter uma ideia, quando eu lancei Brasil: Uma Biografia, não poucos jornalistas me falavam “poxa vida, nunca tinha pensado na história do Brasil sobre esse ângulo”. E foi o último país a abolir a escravidão, recebemos 45% dos africanos que foram forçados a sair do seu território, então é um espanto. Eu quero contar a história do Brasil a partir da janela de Lima Barreto.

Anúncio no jornal "A Noite"
Página do jornal ‘A Noite’, de 1915, anunciando início de publicação de textos de Lima Barreto

BBC Brasil – Além de ser atual pela questão do gênero, de raça, há na obra dele uma decepção com os políticos, presente atualmente também. Como aborda isso?

Schwarcz – Eu começo o livro com uma citação que diz que “O Brasil é uma grande comilança – comem os políticos, os jornalistas, comem os juristas”. Você lê aquilo e a sensação que te dá é um dèjá vu. Ela cobre a corrupção da República, cobre o mau uso da res pública a partir de interesses privados. E faz uma crítica feroz aos políticos, chega a dizer “à República do Brasil falta dignidade”.

Então ele cobra um Brasil mais inclusivo, mais justo, mais igualitário – problemas que estamos vivendo até hoje. São temas que ele viveu no pós-abolição e que vivemos ainda nessa mesma República falhada que padece com os problemas de corrupção, mas não só disso: de racismo, homofobia. São questões que estão na pauta de Lima Barreto, e que estão na nossa agenda.

BBC Brasil – E ele faz isso com um humor ácido…

Schwarcz – A gente tem esse jeito tão brasileiro de rir da desgraça. Me lembro do 7 a 1 da Alemanha contra o Brasil. Assim que o jogo terminou comecei a receber mensagens tirando sarro disso, e o Lima tem um pouco disso – muito crítico, muito mordaz, mas ao mesmo tempo muito bem humorado.

As histórias dele sobre o funcionalismo público são de matar de dar risada – ele diz que “você mede a qualidade de um bom funcionário público pela quantidade de vezes que ele abre as gavetas, ou que ele aponta o lápis”. E ele tá lá, é funcionário público.

É uma blague que tem a ver com esse modernismo carioca, que durante muito tempo ficou fora da agenda, fora do compasso dos modernismos, e que era um modernismo boêmio e bem humorado.

Era crítico de idealizações do país, era uma literatura crítica, de contestação. E ele faz uma crítica aos estrangeirismos. E teve uma recepção desastrosa na época, como você pode imaginar.

Fotos que constam da 'Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin'
João Henriques e Amália Augusta, pais de Lima Barreto, em imagens que estão na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindli

BBC Brasil – Desastrosa porque era crítica às elites ou porque já era racialmente engajada?

Schwarcz – Quando eu digo que Lima Barreto merece mais do que (ser) a vítima, é porque ele tinha um projeto literário, de inserção. E fazer uma literatura negra, afrodescendente, era grave nessa época. Porque era um tema entre muitas aspas, as pessoas achavam desagradável, era melhor não falar disso.

E a gente sabe que naquela época, quem fazia sucesso, virava branco. Tanto nas fotos como na cor. Temos cor social.

No próprio manicômio, ele foi internado como branco e, depois, como pardo. Essa é a régua da cor no Brasil. Eu tentei provar no livro que ele trazia esse tema, ele descreve a cor dos personagens de uma forma minuciosa, ele próprio se chamava de azeitona escura.

Para você ter um autor que diz que negro é a cor mais cortante no Brasil – não tem ingenuidade nisso. Ninguém queria falar desse tema.

BBC Brasil – Lima ajudou a impulsionar uma literatura afrodescendente?

Schwarcz – Ele morreu em 1922, aos 41 anos e com a obra muito silenciada. Depois da Nigéria, o Brasil é o maior país de população negra e africana e somente agora começam a aparecer expoentes da literatura negra, afrodescendente.

E eu não chamo de literatura negra quem nasceu negro, não é uma questão de origem, é uma opção – no Lima Barreto é um projeto literário.

Página do jornal 'Cigarra', de 1919
Caricatura de Lima Barreto em página do jornal ‘A Cigarra’, em 1919

E agora sim, para esse tipo de literatura, Lima Barreto é sempre lembrado e vai continuar a ser lembrado. E ele nunca esteve tão atual.

BBC Brasil – E pode ser inspirador para esse momento de apatia?

Schwarcz – Lima Barreto é um bom autor para a gente pensar as nossas falácias da democracia e da República. Ele vivia acusando as nossas instituições – a gente anda dizendo que as nossas instituições estão fortes, eu não vejo como. É só um ritual vazio que anda forte, e não as instituições.

E ele falava mal do presidente, do deputado, ele é crítico dos discursos vazios. Ele é um bom remédio para nos curar da nossa enxaqueca republicana e democrática. É um autor que provoca, que não estabiliza.

Exatamente depois das manifestações, dos panelaços, a gente entrou em um período de apatia. E o período pede de nós – como diria o poeta – vigilância. E não apatia. E Lima Barreto era muito vigilante, e incômodo na sua vigilância. Ele é bom para nós neste momento.

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