Lula e Getúlio Vargas: semelhanças e diferenças entre os dois únicos presidentes que foram e voltaram ao poder na história do Brasil
Edison Veiga
Eleito com mais de 60,3 milhões de votos, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) será o segundo presidente na história do Brasil a reassumir o posto depois de um hiato fora do Executivo. Eleito pela primeira vez em 2002, reeleito em 2006, Lula ficou oficialmente distante da esfera de poder entre 2011 e 2022.
Getúlio Vargas (1882-1954), por sua vez, presidiu o país de 1930 a 1945, sem ter sido eleito pelo voto, vale ressaltar — nos primeiros quatro anos, chefiou o Governo Provisório. Depois foi indicado pela Assembleia Constituinte e, entre 1937 e 1945, foi ditador no período chamado de Estado Novo. Em 1951, entretanto, após ter sido eleito por escrutínio popular, Vargas reassumiu o comando do Executivo — mandato este que seria interrompido com o fatídico suicídio do mesmo, em 1954.
Essa característica que une ambos — o fato de ter reassumido o posto depois de um período sem função executiva — por muito pouco também não foi vivenciada por Francisco Rodrigues Alves (1848-1919). Presidente do Brasil entre 1902 e 1905, ele foi eleito novamente em 1918. Contudo, pelo fato de ter contraído a gripe espanhola, ele se viu impossibilitado de assumir o cargo. Morreu em janeiro de 1919.
A convite da BBC News Brasil, especialistas comentam as diferenças e semelhanças entre ambos os políticos, separados por décadas.
‘Lula deve estar atento à reação conservadora’
Autor de três livros que, em sua totalidade, compreendem uma completa biografia de Vargas, o jornalista e escritor Lira Neto reconhece que tanto ele quanto Lula compartilham características em comum, sobretudo o “imenso carisma” e a “popularidade”, além da “marcante força eleitoral junto às classes médias e camadas populares”.
“Não há precedentes, na história brasileira, de líderes que tenham desfrutado de tamanha empatia com as massas”, afirma ele. “Ambos estabeleceram a questão social como prioridade de seus respectivos governos, ao mesmo tempo em que articularam alianças pragmáticas com diferentes segmentos da população, incluindo desde o operariado até o patronato. Lula, a exemplo de Vargas, sempre defendeu que, em um país de desigualdades tão abissais como o Brasil, o Estado não pode se eximir de seu papel como indutor do desenvolvimento econômico.”
Lira Neto ressalta também que ambos “foram alvos de fortes tentativas de desconstrução política e moral”. Segundo o biógrafo, isso se deu a partir de um “discurso seletivo dos adversários contra a corrupção” e a partir da “fantasmagoria de um suposto ‘perigo vermelho’.”
Mas, na visão do jornalista, nem tudo são semelhanças entre os políticos. Por um lado, Vargas é fruto do “seio das oligarquias gaúchas” e teve sua formação “acadêmica e política no positivismo do movimento republicano, de matriz autocrática e elitista”. Além disso, como lembra o biógrafo, ele chegou ao poder, originalmente, “por meio de um movimento civil e militar, a chamada Revolução de 30”, sendo que governou “ditatorialmente até 1945, com exceção do pequeno interregno constitucional entre 1934 e 1937”.
“Lula nasceu em família nordestina pobre, formou-se politicamente no meio sindical e chegou à Presidência pelo voto, seguindo e respeitando os ritos democráticos ao longo dos oito anos em que passou no Planalto”, compara Lira Neto.
Enquanto muitos classificam o segundo mandato de Vargas como pior que o primeiro — e usam desse argumento para desqualificar, de antemão, a volta de Lula —, Lira Neto não concorda. “Penso exatamente o contrário”, enfatiza. “Creio que o segundo governo de Getúlio, entre 1951 e 1954, consolidou, de forma eficaz e democrática, todas as iniciativas em prol do desenvolvimento do país forjadas no período anterior, ditatorial, no Estado Novo.”
“No contexto da Guerra Fria, sua política nacionalista e independente da tutela americana atraiu a ira dos conservadores, daí a perversa campanha desencadeada pelos adversários, [o político de oposição a ele] Carlos Lacerda [1914-1977] à frente, que resultou na trágica crise que o levaria à morte”, analisa o biógrafo.
Na opinião do escritor, “Lula deve estar atento à reação conservadora que, por certo, enfrentará”. “A extrema-direita, embora tendo sido derrotada, estará à espreita, com seus golpes baixos, incluindo o apelo ao moralismo seletivo”.
‘Adesão por afeto’
O historiador Carlos Fico, pro fessor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lembra que, com a eleição deste ano, Lula é o “primeiro presidente eleito pelo voto direto três vezes” da história do Brasil. Nesse sentido, fazer um paralelo com Vargas significa compará-lo a um presidente que só foi eleito “dessa maneira uma vez”.
Nesse sentido, para ele, “as duas situações são diferentes”.
“A única semelhança que vejo é a seguinte: ambos se beneficiaram da ‘adesão por afeto’, quando parte de seus apoiadores permanece política e eleitoralmente fiel independentemente do que façam os líderes”, ressalta. “Getúlio Vargas e Lula conquistaram esse tipo de apoio por causa do fascínio que exercem e, sobretudo, em função impacto da legislação social e trabalhista do primeiro e do programa Bolsa Família [de redistribuição de renda mínima] do segundo.”
Na visão do historiador, é impossível comparar o “segundo mandato” de Vargas com o mandato que Lula terá a partir do ano que vem. Isso porque o primeiro acabou acumulando uma sucessão de governos diferentes, do Provisório dos primeiros quatro anos e da presidência indicada pela Constituinte dos anos seguintes à ditadura do Estado Novo e à eleição pelo voto direto em 1950.
Como lembra Fico, o governo Vargas dos anos 1950 “foi marcado por crescente inflação, greves, crises políticas e militares”. “Mas o presidente conseguiu [nesse período] criar a Petrobras e o BNDE. Discutiu-se muito o nacionalismo econômico e a abertura ao capital estrangeiro. A oposição da UDN foi muito forte. O contexto internacional era o da Guerra Fria. O atentado contra Lacerda levaria ao suicídio [de Vargas]”, frisa o historiador. “Não vejo nada nesse período que permita estabelecer correlações com o terceiro mandato de Lula.”
‘Lula é um negociador’
Professor na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o cientista político, filósofo e sociólogo Paulo Niccoli Ramirez ressalta a coincidência histórica de que tanto Lula quanto Vargas são expoentes do chamado “desenvolvimentismo”. “Os dois defendem uma maior intervenção do Estado nas políticas de bem-estar social, ou seja, saúde, educação, moradia, relações de trabalho…”, enumera. “Também têm um amplo projeto econômico de desenvolvimento, isto é um aspecto em comum.”
Mas, na visão de Ramirez, é preciso enfatizar a diferença grande entre ambos, principalmente pelo fato de que Vargas, em seu primeiro governo, foi líder de uma ditadura, “em que havia pouca margem para liberdade de expressão e perseguição a partidos de esquerda”. “Lula, por sua vez, foi eleito pelas vias democráticas, com consenso popular em torno de sua pessoa”, recorda.
Contudo, na visão do pesquisador, há uma característica que os une. “Eles são considerados populistas, ou seja, atraíram um grande contingente de apoiadores. São líderes carismáticos capazes de sensibilizar a população mais pobre no processo eleitoral”, ressalta.
Segundo Ramirez, a diferença nesse movimento é que o segundo governo de Vargas foi “marcado por um amplo nível de oposição”, principalmente “pelas elites econômicas”. “E isso é diferente de Lula agora, quando grandes banqueiros e grandes industriais o estão apoiando. Ele tem uma margem de apoio muito maior do que aquela que Vargas tinha na década de 1950”, compara.
O professor salienta que a forte oposição, inclusive da mídia, sofrida por Vargas em seu segundo mandato fez com que o período fosse marcado por “forte instabilidade”. “Isto acabou presente até em sua carta de despedida, de suicídio, quando ele disse que ‘forças ocultas’ o pressionavam”, comenta. “Mas, no caso de Lula, há um cenário diferente. Ele tem amplo apoio de empresários, movimentos sociais… Então, provavelmente terá um governo mais tranquilo. Conseguiu uma base de apoio partidário, permitiu uma aliança inclusive com [o ex-tucano histórico] Geraldo Alckmin [seu vice-presidente], uma figura conservadora e representativa dos interesses do grande capital.”
“Vargas não conseguiu promover uma ampla negociação com opositores da direita brasileira e parte da imprensa, inclusive do Lacerda”, diz. “Lula, ao que me parece, vai pela via oposta, se apresentando como negociador, capaz de promover alianças com grupos conservadores do grande capital. Esse parece ter sido o grande aprendizado do populismo brasileiro: não se governa por si só, somente com o apoio do povo, mas principalmente é preciso ter apoio dos grandes do setor econômico.”
‘Grandes estadistas’
“Desde 2002, as campanhas de Lula sempre tentaram relacioná-lo à figura de Getúlio Vargas”, analisa o historiador e sociólogo Wesley Espinosa Santana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Porém, como historiador, não consigo fazer uma comparação diacrônica, de dois tempos diferentes, sem marcar a ideia de que a história não é cíclica. Ela aparentemente traz alguns elementos que podem ser repetidos, mas com outro pano de fundo, outro contexto histórico”, argumenta ele.
Nesse sentido, Santana ressalta que, embora tanto Lula quanto Vargas tenham sido “grandes estadistas”, é preciso ressaltar que o presidente do Estado Novo foi “autoritário, ditador”. “Mas foi um grande estadista, porque criou o Estado brasileiro. Ao mesmo tempo, ficou à mercê dos interesses internacionais”, pondera. “Vargas fez os direitos sociais, mas ligados aos interesses do desenvolvimento e da consolidação do capitalismo industrial.”
“Não acredito que nenhum governo se repita, e o segundo governo de Lula não será tão ruim como o segundo governo de de Getúlio Vargas. Não vejo dessa forma”, avalia. “Lula fez um bom primeiro governo até quando houve o escândalo do Mensalão. Mais tarde, ele foi preso e as razões de sua prisão são discutidas ainda hoje, justamente por conta de um funcionário público, o então juiz Sergio Moro, ter sido parcial em seu trabalho, extrapolando suas funções. Ele investigou e julgou, o que é bem complicado, depois virou ministro do concorrente [do PT], o que é um problema ético já consolidado. Fora as questões jurídicas que estão vindo pela frente.”
Para Santana, contudo, o que se vê hoje é “um estado de exceção na política das narrativas, das fake news”. “É um clima de guerra”, frisa, deixando claro que isso pode tumultuar um futuro governo.
“Se o próximo governo Lula vai ser pior ou melhor do que os anteriores, é muito difícil falar. A situação vai estar difícil, crítica, tanto no cenário político quanto no externo”, acredita.