Mary Lincoln, a primeira-dama considerada louca por chorar demais morte do marido e filhos

Alessandra Corrêa – BBC

Retrato de Abraham e Mary Lincoln com os filhos
A pintura mostra Abraham e Mary Lincoln com os filhos Tad (sentado ao lado do pai) e Robert (em pé). Tad morreu aos 18 anos em 1871, seis anos após o assassinato do presidente

Mary Todd Lincoln já havia perdido dois filhos pequenos quando, aos 46 anos de idade, presenciou o assassinato do marido, o então presidente americano Abraham Lincoln.

Na noite de 14 de abril de 1865, o casal assistia à peça Our American Cousin (Nosso Primo Americano) no Teatro Ford, em Washington, quando John Wilkes Booth entrou em seu camarote e atingiu o presidente com um tiro na nuca.

Mary Lincoln ainda estava de mãos dadas com o marido, com quem estava casada havia quase 23 anos, quando ele caiu ferido. De acordo com testemunhas, os gritos da primeira-dama ecoaram pelo teatro.

O presidente foi socorrido e levado a uma casa do outro lado da rua. Segundo relatos da época, nas horas seguintes, enquanto Lincoln permanecia em coma, a primeira-dama teve “um ataque de histeria”, chorando incontrolavelmente.

Em vez de ser consolada, ela chegou a ser expulsa do quarto onde o marido estava pelo então secretário da Guerra, Edwin Stanton. O presidente morreu na manhã seguinte, em 15 de abril de 1865.

Em luto profundo, Mary Lincoln logo se transformaria em alvo de desprezo e comentários maldosos na capital americana por causa de suas demonstrações de dor.

Mary e Abraham Lincoln já haviam perdido o filho Eddie em 1850, aos três anos de idade, vítima de uma doença não definida, diagnosticada por alguns como tuberculose pulmonar. Dez meses após a morte de Eddie, a primeira-dama deu à luz Willie. Mas o menino também morreu, em 1862, aos 11 anos de idade, de febre tifoide.

Ela ainda sofreria a morte de um terceiro filho, Tad, vítima de doença pulmonar aos 18 anos de idade, em 1871. Dos quatro filhos do casal, somente o mais velho, Robert, chegou à idade adulta.

O sofrimento público da primeira-dama após a morte dos filhos e do marido destoava das rígidas regras sociais da época e era visto como impróprio.

“Ela viveu um grande trauma e estava sofrendo de uma maneira pública que não era permitida para alguém em sua posição”, diz à BBC News Brasil a diretora interina do museu President Lincoln’s Cottage, Callie Hawkins.

“(Na época) uma pessoa em luto, especialmente uma mulher, podia usar roupas pretas por determinado período de tempo, ou carregar uma recordação (da pessoa morta), como uma fotografia ou uma mecha do cabelo. Mas Mary Lincoln foi além do que muitos consideravam aceitável”, afirma Hawkins.

Ela vestiu luto durante muito mais tempo do que era comum e costumava ter crises de choro na frente de outras pessoas. Em vez de encarado com empatia, esse comportamento fez com que sua saúde mental fosse questionada e levou a uma imagem que persiste até hoje entre muitos americanos: a de que ela era “louca”.

Pressões sociais

O museu President Lincoln’s Cottage está instalado na casa de campo frequentada por Abraham e Mary Lincoln, localizada no que hoje é o bairro de Petworth, no noroeste da capital americana. Foi lá que o presidente e a primeira-dama se refugiaram após a morte de Willie.

“Ela se retirou da sociedade por um ano inteiro após a morte de Willie”, diz Hawkins, lembrando que o presidente também foi profundamente afetado pela morte dos filhos.

Mary Lincoln ficou semanas de cama e estava tão abalada que não teve condições de comparecer ao funeral de Willie. Mas quando ela se recolheu na casa de campo, foi acusada por muitos de deixar de lado suas obrigações sociais como primeira-dama.

Hawkins conta que já trabalhava no museu havia dez anos quando, em fevereiro de 2018, também enfrentou a perda de um filho. Depois de uma gravidez “totalmente normal”, seu bebê nasceu morto.

“Durante dez anos eu contei a milhares de visitantes sobre como Mary Lincoln precisou (buscar o conforto) de um lugar tranquilo no momento de sofrimento, mas até então eu nunca havia realmente compreendido (a dor da primeira-dama)”, afirma.

Hawkins então idealizou a exposição Reflections on Grief and Child Loss (“Reflexões sobre Luto e Perda de Filhos”, em tradução livre), em cartaz no museu, que aborda a maneira como o sofrimento de Mary Lincoln foi encarado pela sociedade da época e também traz relatos atuais de mães e pais que perderam seus filhos.

Segundo Hawkins, é a primeira vez que uma exposição aborda de maneira profunda o luto vivido pela primeira-dama e traça paralelos com as pressões sociais ainda enfrentadas nos dias atuais por famílias que choram a perda de um filho.

“Ambos os Lincolns foram imensamente afetados pela trágica perda de seus dois filhos, enquanto Abraham Lincoln era vivo. E, depois disso, Mary Lincoln foi novamente impactada pelo assassinato do marido a seu lado e pela morte de um terceiro filho”, ressalta Hawkins.

“O que a exposição tenta mostrar é que, tanto naquela época quanto nos dias atuais, as pessoas tentam colocar um prazo no luto. E isso é simplesmente injusto (com as famílias)”, afirma.

Retrato de Mary Lincoln
Mary Lincoln usou luto por muito mais tempo do que era socialmente aceitável na época. Suas demonstrações públicas de sofrimento fizeram com que muitos a descrevessem como ‘louca’

Guerra Civil

Hawkins salienta que Mary Lincoln foi alvo de desaprovação desde que chegou à Casa Branca, em 1861. Em uma sociedade na qual esperava-se que as mulheres não chamassem muita atenção, ela se destacava por expressar opiniões fortes e pelo papel ativo na carreira política do marido.

“Ela vinha de uma família rica, tinha uma ótima educação, posição social, era muito inteligente. Quando eles chegaram a Washington, ela achou que seria uma das principais conselheiras (de Lincoln)”, afirma Hawkins.

A parceria política do casal era tão sólida que, quando Abraham Lincoln venceu a eleição presidencial, em 1860, ele correu para casa e disse: “Mary, Mary, estamos eleitos!”

“Mas à medida que ele ficou mais cercado de membros do gabinete, que não gostavam dela, que talvez achassem que ela queria se intrometer muito (nos assuntos de governo), acho que ela se sentiu um pouco ameaçada. E talvez eles também se sentissem ameaçados por ela”, diz Hawkins.

“E acho que isso estabeleceu essa reputação que se manteve por muito tempo, de que ela era mentalmente instável”, ressalta.

Sua atuação como primeira-dama foi marcada pela Guerra Civil americana (1861-1865).

Nascida em Lexington, no Estado sulista do Kentucky, Mary Lincoln vinha de uma família proprietária de escravos e na qual vários membros lutaram ao lado das forças confederadas. Enquanto muitos sulistas a consideravam uma “traidora”, ela era ao mesmo tempo acusada por moradores do Norte de ser “espiã”.

Em meio às privações da guerra, seus gastos em roupas e em um projeto para redecorar a Casa Branca provocaram escândalo.

Enquanto alguns historiadores acreditam que seu objetivo com as compras era criar uma imagem de estabilidade e respeito para a União, a imprensa e comentaristas da época ridicularizavam seu guarda-roupa e a criticavam como egoísta e frívola.

Apesar de suas visitas a hospitais para confortar os feridos e de esforços para arrecadar fundos, a imagem que se cristalizou foi a de uma primeira-dama de temperamento difícil, dada a “orgias” de compras e alheia ao sofrimento causado pela guerra.

Sacrilégio

Foi nesse clima hostil que Mary Lincoln perdeu o segundo filho e o marido. Ela já havia sofrido o trauma da morte da mãe quando tinha apenas seis anos de idade e a perda de Eddie em 1850.

Após a morte de Willie, em 1862, enquanto o presidente teve de viver o luto em meio às obrigações como líder da nação em guerra, a primeira-dama entrou em depressão. Suas manifestações de sofrimento agravaram a fama de “temperamental” e passaram a ser vistas como “sacrilégio”.

“Na época, esperava-se que ela, como cristã, não questionasse a morte, e sim se submetesse à vontade de Deus”, observa Hawkins.

Retrato do velório de Lincoln
Segundo relatos da época, nas horas seguintes ao atentado contra Lincoln, enquanto ele permanecia em coma, a primeira-dama teve “um ataque de histeria”, chorando incontrolavelmente, e chegou a ser expulsa do quarto

Mary Lincoln passou a recorrer a médiuns para tentar se comunicar com os filhos mortos, o que não era incomum na época, em meio às mortes da Guerra Civil, mas também foi muito criticado.

“Ela estava em sofrimento profundo e sendo julgada pelas pessoas”, ressalta Hawkins.

Três anos após a morte de Willie, Abraham Lincoln foi assassinado. Relatos da época descrevem os gritos, lamentos e “convulsões terríveis” da primeira-dama.

Mais uma vez, o luto de Mary Lincoln era encarado como escandaloso e incompatível com sua posição social.

Ela levou mais de um mês para deixar a Casa Branca após a morte do marido, e inicialmente se instalou em Chicago.

Em 1867, chegou a tentar vender as roupas e joias da época em que era primeira-dama para pagar dívidas, o que fez com que novamente fosse ridicularizada pela imprensa, que a descrevia como “louca”. Também iniciou uma batalha com o Congresso para receber pensão como viúva do presidente.

Em 1868, mudou-se para a Alemanha com o filho mais novo, Tad. Em 1871, já de volta aos Estados Unidos, Mary Lincoln sofreu um novo golpe com a morte de Tad. Mais uma vez ela recorreria a médiuns para tentar se comunicar com o marido e os filhos mortos.

A essa altura, o filho mais velho, Robert, único sobrevivente, começou a demonstrar cada vez mais preocupação com o que considerava o comportamento errático e os problemas financeiros da mãe, que continuava a mergulhar em maratonas de compras.

Segundo Robert, ela também passou a sofrer de paranoia e achava que o único filho ainda vivo estava doente e corria perigo. Em 1875, uma década depois do assassinato de Abraham Lincoln, Robert levou a mãe a julgamento, conforme previa a lei estadual da época, questionando a sua sanidade.

Depois de ouvir testemunhos de médicos, empregados, vendedores de lojas e outras pessoas que interagiam com a ex-primeira-dama, um tribunal determinou que ela fosse internada contra a própria vontade em uma clínica para tratamento mental e que suas finanças passassem a ser controladas pelo filho.

Ela só deixaria a clínica meses depois, graças à intervenção de amigos, em um drama familiar amplamente coberto pelos jornais da época. Um novo julgamento, em 1876, determinou que ela havia se recuperado.

Diagnósticos

A ex-primeira-dama cortou relações com o filho e decidiu fugir da humilhação que sofria em seu país e retornar à Europa. Ela passou quatro anos na França, durante os quais viajou pelo continente.

Fachada do Museu President Lincoln's Cottage
O museu President Lincoln’s Cottage, na capital americana, está instalado na casa de campo onde Abraham e Mary Lincoln se refugiaram após a morte do filho Willie

Em 1880, enfrentando vários problemas de saúde, Mary Lincoln retornou aos Estados Unidos e foi morar com a irmã em Springfield, no Estado de Illinois, a cidade onde havia conhecido e se casado com Abraham Lincoln e onde haviam vivido até ele ser eleito presidente.

Em 15 de julho de 1882, exatamente 11 anos após a morte de Tad, ela sofreu um derrame. Depois de horas em coma, morreu no dia seguinte, aos 63 anos de idade.

Ao longo dos quase 140 anos desde sua morte, vários historiadores tentaram diagnosticar a primeira-dama. Relatos e documentos da época indicam que ela sofria de dores de cabeça, febre, depressão, insônia, pesadelos e ansiedade, entre outros problemas.

Alguns acreditam que ela era bipolar, outros afirmam que tinha diabetes. Muitos apontam para a possibilidade de que ela tenha sofrido uma lesão cerebral após um acidente de carruagem em 1863.

Transtorno de personalidade narcisista, doença de Lyme e anemia perniciosa em virtude de deficiência de vitamina B12 estão entre vários outros diagnósticos cogitados.

“É muito difícil, e também um pouco injusto, tentar diagnosticá-la tantos anos depois”, opina Hawkins, lembrando que a sociedade atual ainda estigmatiza saúde mental e luto.

“É importante lembrar que o luto, ou um traumatismo craniano, que ela pode ter sofrido, tudo isso pode levar a um desequilíbrio mental. A exposição não está tentando argumentar que uma coisa ou outra levou a alguns dos comportamentos que ela exibia”, ressalta.

“O que nós tentamos fazer é tratá-la com empatia. Olhar para todo o trauma e todo o sofrimento que viveu, e tentar entender melhor todos os fatores que contribuíram para que ela se tornasse quem foi. O que, infelizmente, é alguém que não é lembrada de uma maneira muito positiva nos livros de história.”

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