Massacres e pesadelos: guerra desperta emoções ambíguas em descendentes de judeus ucranianos

Daniel Lisboa

Mehil e Etel (criança desconhecida)
Mehil e Etel (e a bebê Anete Blanc) – ele trabalhava revendendo peças e objetos de segunda mão e se estabeleceu na capital paulista

Fisel Judensnaider tinha um pesadelo recorrente: ele era forçado a caminhar por uma estrada e espancado até a morte.

O pavor de morrer de forma tão brutal tinha uma origem clara: o avô de Fisel fora assassinado exatamente assim. Judeu, ele foi uma das vítimas das “marchas da morte” promovidas pelos nazistas.

De acordo com a enciclopédia do Museu do Holocausto, a prática consistia em forçar os prisioneiros a “caminhar longas distâncias expostos ao frio extremo sem agasalho, com pouca ou nenhuma comida, água ou descanso. Aqueles que não conseguiam acompanhar o grupo eram assassinados”.

Fisel, que no Brasil adotou o nome Felipe, era de Novoselytsya. A cidade no extremo oeste da Ucrânia era parte da Bessarábia, região nunca reconhecida como país que englobava também partes da Romênia e da Moldávia. Felipe e sua família, inclusive, emigraram com passaportes romenos.

A história da família de Felipe, que chegou ao Brasil no início da década de 30, ilustra os sentimentos conflitantes dos descendentes de judeus ucranianos em relação ao atual conflito com a Rússia. Suas raízes estão fincadas em um palco de perseguições, massacres e pobreza.

Felipe (ao meio) com os irmãos Jacó (esq) e Elza (dir)
Felipe (ao meio) com os irmãos Jacó (esq) e Elza (dir)

“Quando eu soube que a guerra havia começado, meu primeiro pensamento foi o de não me importar”, diz Ivy Judensnaider, de 62 anos. A pesquisadora e professora universitária de São Paulo, filha de Felipe, é quem conta à BBC a história da família.

“Eu conheço a história dos esquadrões da morte da Ucrânia. Sei como a perseguição lá foi cruel”, diz Ivy. “Hoje, porém, se você perguntar sobre meu sentimento em relação à guerra, eu torço para o povo ucraniano. Não são as mesmas pessoas daquela época. E, por mais que existam grupos ultranacionalistas lá, eles também existem aqui no Brasil.”

Mehil e Etel
Mehil e Etel

A história da família de Ivy, ao menos a documentada, começa com a chegada de seu avô Mehil ao Brasil. Ele emigrou deixando a mulher, Etel Judensnaider, e três filhos em Novoselytsya, entre eles Felipe. Eram muito pobres. Os filhos e a esposa chegariam ao Brasil cerca de dois anos depois. Mehil trabalhava revendendo peças e objetos de segunda mão e se estabeleceu na capital paulista. Morreu em 1973. Felipe trabalhou como tapeceiro e fabricava móveis e cortinas. Faleceu em 2011.

Do pai de Mehil, bisavô de Ivy, resta apenas uma foto amarelada onde ele aparece ao lado da mulher. Foi ele que ficou na Ucrânia e morreu em uma marcha da morte durante o Holocausto. A família não sabe seu nome e nunca encontrou qualquer documento relacionado ao casal.

A única imagem que a família possui do pai de Mehil, fotografado ao lado da mulher
A única imagem que a família possui do pai de Mehil, fotografado ao lado da mulher

“A história que chegou até a família, por meio do relato de sobreviventes, foi a de que meu bisavô caiu enquanto fazia a marcha, foi chutado por soldados e caiu numa ribanceira”, conta Ivy. “Por isso, o grande medo do meu pai era morrer desse jeito. Para ele, morte era o que tinha acontecido com o avô dele, que foi chutado como um cachorro. O único jeito de eu acalmá-lo era dizer que não, que ele morreria cercado de carinho.”

Etel
Etel

Ivy revela que só não participou de um trabalho internacional para recolher depoimentos de sobreviventes do Holocausto porque estava grávida e não se sentia em condições psicológicas para lidar com o assunto.

“Quando lançaram o filme A Lista de Schindler e criaram uma fundação para resgatar esses depoimentos, escrevi uma carta em inglês dizendo que tinha prática em pesquisas e adoraria ser voluntária nesse trabalho quando ele chegasse ao Brasil”, lembra Ivy. “Uma entidade aqui do Brasil respondeu que gostaria de me conhecer. Mas eu estava grávida de gêmeos e decidi que não teria equilíbrio emocional para entrevistar sobreviventes do Holocausto.”

Nenhum país europeu ocupado pelos nazistas escapou de deportações, assassinatos e da atuação de colaboracionistas. Mas o Holocausto foi especialmente cruel no Leste Europeu.

“Os colaboracionistas estonianos, letões, lituanos, ucranianos, e cidadãos de origem étnica alemã tiveram um papel significativo no assassinato dos judeus do leste e sudeste europeu. Muitos deles serviram como guardas nos perímetros dos campos de extermínio, e envolveram-se no assassinato de centenas de milhares de judeus por gás tóxico”, diz o Museu do Holocausto.

Ainda sobre os colaboracionistas destes países, a enciclopédia afirma que eles “formaram espontaneamente grupos de extermínio que posteriormente eram reformulados e reorganizados pelas SS e pela polícia alemã”.

São vários os massacres de judeus ocorridos na região que entraram para a história. O livro “Uma Marcha, Uma Vida, Um Legado”, da editora Humanitas (ligada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), relata um deles, que aconteceu justamente na Bessarábia. Em 1940, a Romênia, aliada da Alemanha nazista, expulsou cerca de 150 mil judeus da região. Em torno de 90 mil deles morreram.

Mas as raízes do antissemitismo local são muito anteriores ao Holocausto. A palavra “pogrom”, por exemplo, surgiu das grandes revoltas contra os judeus ocorridas na Rússia e na Ucrânia. Ainda de acordo com o Museu do Holocausto, mais precisamente na cidade de Odessa, no litoral ucraniano, em 1821.

“É uma palavra russa que significa ´massacre` e efetivamente surgiu na Ucrânia”, esclarece Michel Gherman, historiador e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “Esses massacres contra a população judaica eram geralmente produzidos pelo poder central do país, mas por meio de intermediários como camponeses e milícias.”

O historiador explica que a região fez parte da chamada “zona de residência judaica”, que vai da Galícia polonesa ao oeste da Rússia. A partir de 1791, diz Gherman, o czar russo proíbe os judeus, com algumas exceções, de avançar pelo interior das terras russas.

Em uma reportagem sobre a Transnístria (região autônoma da Moldávia vizinha à Ucrânia), o escritor holandês Arnon Grunberg lembra como o historiador americano Timothy Snyder se refere àquela faixa do planeta que vai dos países bálticos ao Mar Negro: “bloodlands”, ou “terras de sangue”, já que seus habitantes foram massacrados tanto por Hitler quanto por Stalin.

“Havia uma piada (entre os judeus locais) que dizia que houve uma guerra entre Rússia e Ucrânia e perguntaram ao rabino o que ele desejava. Ele respondeu que gostaria que ambas vencessem. Ou seja, que se destruíssem”, conta Gherman.

A menção ao antissemitismo nunca foi explícita na família de Ivy. Outras questões econômicas e sociais também pesaram para que ela deixasse a Bessarábia. “Mas eles (pai e avô) tinham consciência do antissemitismo da região. Era uma questão implícita na história deles. Sabiam que eram de um povo que ninguém queria”, diz Ivy.

O absoluto distanciamento com a qual sempre trataram a terra natal dá pistas sobre essa relação. Ivy diz que, a não ser pelo samovar (utensílio de origem russa usado para aquecer água e fazer chá), sua família nunca teve objetos em casa que lembrassem a região. Tampouco memórias afetivas e qualquer menção a amigos, conhecidos ou parentes que lá viviam.

“As pessoas vêm me perguntar se ainda tenho parentes na Ucrânia. Não tenho, porque quem ficou lá morreu”, diz a editora Elena Judensnaider, de 30 anos. Filha de Ivy, ela também se viu diante de emoções ambíguas com a explosão da guerra. “Por um lado, é o país onde fomos perseguidos. De outro, é o local de onde viemos. Escuto as notícias, os nomes das cidades, e reconheço alguma coisa da história da minha família”.

A Ucrânia segue como a quarta maior comunidade judaica da Europa, segundo o “World Jewish Congress” (Congresso Mundial Judaico). Tem entre 56 mil e 140 mil integrantes, de acordo com um censo divulgado em 2016. Mas as estimativas dão conta de que pelo menos 1,5 milhão de judeus locais morreram durante o Holocausto.

Elza e Felipe (à frente)
Elza e Felipe (à frente)

Para Michel Gherman, entretanto, é preciso ser cuidadoso ao abordar o morticínio judaico no Leste Europeu e as dimensões do antissemitismo na região. Ele lembra, por exemplo, que da Ucrânia vieram grandes intelectuais judeus como os escritores Scholem Aleichem e Mendele Moicher Sforim.

“Por mais que que a atuação de colaboracionistas tenha sido mais forte em alguns países, é sempre bom lembrar que foi a Alemanha, um país da Europa Central, que desenvolveu os métodos para o genocídio em massa”, diz o historiador. “Tivemos esse fenômeno horrendo da cumplicidade, mas temos que tomar cuidado ao culpar os países que foram invadidos pelos nazistas.”

É uma história com muitas sutilezas, dentre as quais Gherman destaca o que ocorreu na Polônia. “Foi o país onde tivemos mais cúmplices de assassinos. Ao mesmo tempo, foi onde mais gente ajudou a esconder judeus”, explica.

Jacó, Felipe, Etel e Elza
Jacó, Felipe, Etel e Elza

Para o historiador, Polônia e Hungria são, hoje, países muito mais antissemitas que a Ucrânia. Ele conta que já viajou várias vezes para a Polônia e não acredita que o país, diferentemente da Ucrânia, seja capaz de eleger um presidente judeu.

Como Ivy, Gherman também diz que o Brasil de hoje não é exatamente um exemplo. “Temos o maior crescimento de grupos neonazistas no mundo desde 2018. E a Polônia e a Hungria são fortes aliados do governo Bolsonaro.”

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