‘Medicina de Humanas’: médicas criam comunidade para desenvolver habilidades socioemocionais

Thais Borges
A infectologista Ana Elisa Almeida (de amarelo) e a psiquiatra Mariana Fontes fundaram a Comu Social para médicos e estudantesA infectologista Ana Elisa Almeida (de amarelo) e a psiquiatra Mariana Fontes fundaram a Comu Social para médicos e estudantes (Ng kwan Fu/@fufilms_fotovideo/Divulgação)

‘O que o paciente quer é um médico empático, que olhe no olho’, dizem

Na faculdade, era tudo muito técnico: aulas de anatomia, histologia, bioquímica e por aí vai. Ainda que muitos professores tentassem oferecer uma percepção mais humanizada da Medicina, a ausência estava ali. Não era um problema de uma universidade x ou y. Era geral – e, desde o começo, o incômodo da médica infectologista Ana Elisa Almeida, 28 anos, e da médica psiquiatra Mariana Fontes, 30, estava presente.

Durante a residência, o mesmo diagnóstico: a maioria dos médicos não tinha aprendido habilidades básicas que iam desde planejamento nos atendimentos até inteligência emocional. “O que o paciente quer é um médico empático, que olhe no olho. O que mais tem por aí é médico com doutorado que não olha na cara do paciente ou que não sabe se comunicar. Simplesmente fala, na lata, o diagnóstico”, diz Ana Elisa.

Foi esse o ponto de partida para as duas criarem a Comu Social, uma comunidade online com aulas sobre habilidades socioemocionais para médicos e estudantes de Medicina de todo o Brasil. Criada em novembro do ano passado, a comunidade tem, ainda, encontros mensais para troca de vivências e discussões sobre livros e filmes – que, por sua vez, não necessariamente estão relacionados ao ofício em si.

Tudo com o objetivo de desenvolver as habilidades que, no fim, devem gerar um atendimento diferenciado.

“A gente sempre fala que Medicina é da área de Humanas, porque a gente tem que lidar com pessoas”, acrescenta a infectologista.

O que nem todo mundo percebe é que a falta de um atendimento humanizado não é ruim apenas para os pacientes, mas também para os médicos, segundo a psiquiatra Mariana. Esse adoecimento começa justamente na graduação, de acordo com elas, em diferentes aspectos.

Não é incomum encontrar estudantes de Medicina que “glamourizam” perder noites dando muitos plantões ou trabalhando por horas a fio, sem pausas e com o foco na produtividade. “Desde o início, a gente não compactuava com o que a gente chama de cultura da exaustão. Ao mesmo tempo, começamos a buscar outras habilidades que percebemos que eram importantes”, explica ela, citando treinamentos que vão desde oratória a organização pessoal.

Mudança
Começou com uma página no Instagram. Em 2016, ainda estudantes e um ano antes de concluir a graduação, as duas queriam tanto compartilhar a rotina quanto mostrar que era possível fazer algo além de estudar Medicina. Ou seja: dava para ter algum hobby, para respirar além do mundo do trabalho em saúde.

Aos poucos, outras pessoas começaram a se identificar. Entravam no perfil e diziam passar pelo mesmo: se sentiam mal por não seguir um ritmo de produtividade. Com o crescimento da página, a transformação em empresa foi quase um caminho natural. O primeiro produto foi justamente a prescrição ilustrada – adesivos que têm, como proposta, facilitar o entendimento do paciente diante da receita médica.

Mariana e Ana Elisa lançaram a prescrição ilustrada (Ng Kwan Fu/@fufilms_fotovideo/Divulgação)

“Isso foi pensado no contexto da nossa residência. Tínhamos muitos pacientes que não sabiam ler nem escrever. Queríamos trazer uma coisa mais lúdica e isso facilitou”, explica Mariana. Era 2019 e, hoje, três anos depois, até o nome ‘prescrição ilustrada’ é patenteado por elas. A empresa foi batizada de Espectrusmed, numa alusão a um novo “espectro” da Medicina.

Foi o pontapé para transformar aquela inquietação em uma mudança. O incômodo em aceitar as coisas como estavam se transformou em vontade de tentar trazer melhorias para o atendimento. Além disso, elas percebiam que estava cada vez mais presente a necessidade de desenvolver habilidades socioemocionais nas consultas.

“As pessoas não param para perceber que os ambientes médicos estão doentes, que não tem quem cuide de quem cuida. Não tem líder, só chefe. Foi assim que eu percebi o quanto, na Medicina, a gente está defasada nesse sentido”, completa Ana Elisa.

Formato 
As aulas de cada módulo são semanais. Acontecem ao vivo, mas ficam gravadas para quem quiser assistir depois. Já os encontros semanais incluem desde as reuniões para discutir livros “não médicos” até o chamado “grupo da pausa”, que é uma espécie de mentoria. Nesse último, as pessoas trazem situações que viveram em suas consultas para serem analisadas. Cada um dos presentes começa a trazer novos pontos de vista, como se fossem os outros participantes daquela situação.

Num desses momentos, uma das participantes contou que se sentia desamparada por fazer residência em psiquiatra em um lugar considerado por ela como muito medicalizante. Porém, a moça tratava uma paciente que precisava mais de escuta e acolhimento do que de remédio.

“Ela estava num conflito: seguia o que os professores falavam, mas incomodada, ou tornava aquele momento da consulta mais um momento de acolher o paciente? Então, as outras pessoas começam a falar. Por exemplo: ‘eu sou sua paciente e me sinto grata por você me ouvir’, ‘eu, sendo seu colega, tentaria ajudar porque estou vendo que você teve bons resultados com a paciente”, conta Mariana.

Além disso, há um grupo de WhatsApp onde as trocas são constantes. Hoje, são cerca de 30 participantes de todas as regiões do Brasil. Pela assinatura mensal de toda a comunidade, os integrantes pegam R$ 59,90.

Num dos módulos mensais, a discussão foi sobre a Medicina “sem pressa”. Para elas, foi uma tentativa de resgatar algo que a burocracia e a ideia de que a profissão é um sacerdócio têm feito desaparecer. “O que estamos trazendo é o que nunca deveria ter se perdido na Medicina”, explica a infectologista.

De acordo com Ana Elisa, os pacientes percebem a diferença de imediato quando são atendidos por um médico com habilidades socioemocionais. Ela defende que, no atendimento, eles não esperam um médico que saiba todas as respostas, mas um profissional que se importe.

“No posto, não foram poucas as vezes em que eu falei para o meu paciente que o caso era muito complexo e, como recém-formada, eu precisaria conversar com um professor, com uma referência. Perguntava se a pessoa podia voltar no dia seguinte para definirmos a consulta. No dia seguinte, ela voltava e agradecia”, completa.

Fonte: Correio

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