Nesta edição foi publicada a reportagem sobre uma briga em torno da entronização de um cruzeiro. Um grupo de moradores de Gameleira, liderado pelo major Eloy, resolveu reconstruir a estrutura que havia sido derrubada por ordem do prefeito Livio Garcia Galvão. O prefeito e o major eram adversários políticos.
“Embargada a obra, os seus construtores, não tomaram conhecimento do embargo, prosseguindo, como prosseguiram, na execução da mesma obra. Assim desautorado, o chefe do executivo municipal solicitou o auxílio da polícia e mandou destruir, sumariamente, o que se tinha feito sem permissão da Prefeitura. Os correligionários do major Eloy inconformados com as providências adotadas pelo Prefeito, mandaram acintosamente fazer a reconstrução do Cruzeiro, o que o chefe do executivo, na certa, só permitirá depois de requerida a licença. Para isso não lhe faltam recursos. O que não é possível é que a sua autoridade fique diminuída”. (A TARDE, 27/02/1960, p.10).
No centro dessa polêmica está a memória de Maria Felipa. A construção do cruzeiro no distrito de Gameleira havia sido justificada na edição do dia 23 de fevereiro do mesmo ano em A TARDE como uma referência do lugar em que ela teria atuado no comando da expulsão de invasores. Mas há um erro crucial: o texto aponta um confronto com holandeses sem relação com as batalhas das guerras da Independência do Brasil na Bahia.
“Segundo se diz fôra ele ali colocado em homenagem a uma jovem, filha do local, e conhecida por Maria Filipa que, empunhando um archote, tentou incendiar os navios holandeses quando da invasão flamenga da Bahia”. (A TARDE, 23/02/1960, p.11).
A invasão holandesa da Bahia ocorreu no início do século XVII. Já a Guerra da Independência do Brasil na Bahia foi travada no século XIX. A batalha mais famosa na região de Itaparica ocorreu em janeiro de 1823.
“A confusão sobre Gameleira é porque na descrição de Ubaldo Osório sobre Maria Felipa ele se refere à Rua da Gameleira como o endereço em que ela morava. Há realmente esse tipo de confusão com o distrito de Gameleira”, diz Augusto Albuquerque, advogado e pesquisador que mora em Itaparica.
Resgate
Maria Felipa passou a ter maior protagonismo como heroína da Independência da Bahia há mais ou menos 20 anos. Augusto Albuquerque aponta que novas informações, como as levantadas por Felipe Brito, pesquisador sobre a trajetória de Maria Felipa, apresentam evidências mais fortes sobre a sua trajetória.
A principal fonte sobre a mulher pescadora e marisqueira que armou um plano audacioso para frear o ataque português contra Itaparica foi o livro A Ilha de Itaparica- História e Tradição, de Ubaldo Osório, avô do escritor João Ubaldo Ribeiro. Segundo a versão de Ubaldo Osório, Maria Felipa articulou uma emboscada para incendiar os navios invasores. Enquanto um grupo ficou escondido para o ataque com fogo, ela e outras mulheres foram para a beira da praia e fizeram acenos para os portugueses. Quando eles se aproximaram foram recebidos por elas com galhos de cansanção, ou seja, a astúcia e coragem de uma mulher do povo foi o grande trunfo da resistência em Itaparica.
Na edição de A TARDE que contou o imbróglio por conta da construção e demolição do cruzeiro a versão da participação de Maria Felipa na Guerra da Independência da Bahia foi registrada com a inclusão da citação de um trecho do livro de Ubaldo Osório:
“Na noite de 16 de janeiro de 1823 quando a população da Ponta festejava, no Largo da Fortaleza, a vitória dos Independentes, Maria Felipa, à frente das suas legionárias, invade armação da pesca do porto da Cruz. Espanca o vigia, o Guimarães das Uvas, e sai pelas ruas cantando em altas vozes: “Havemos de comer/Marotos com pão/Dar-lhe uma surra/De bem cansanção/Fazendo as marotas/Morrer de paixão”. (A TARDE, 27/02/1960, p.10).
Estratégias
Essas reportagens de A TARDE são amostras de como as tradições de registro das memórias por outras fontes que não apenas a escrita, mesmo sem o respaldo da historiografia oficial, mostra força. Além de Maria Felipa, a memória de outras mulheres negras tem ganhado novos contornos e estratégias, como a criação de datas para marcar estas trajetórias. Em 2014, a Lei n° 12.987, sancionada pela então presidenta Dilma Rousseff, criou o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra que se juntou a outra comemoração na mesma data: o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha reconhecido pela ONU. O pedido veio da Rede de Mulheres Afro- Latino-Americanas e Afro-Caribenhas que se reuniram para um encontro em 1992 na República Dominicana.
A partir desses marcos, em Salvador e outras cidades brasileiras, no mês de julho, são realizadas diversas atividades voltadas para divulgar a luta e memória das mulheres negras, com destaque para as marchas. “Estamos tratando do papel dos heróis e das heroínas na história de um grupo, de um povo. O ideal é que valorizássemos trajetórias coletivas. A escolha de indivíduos, no lugar de coletividades para homenagear, diz muito do modelo de sociedade que construímos. A ênfase é na líder, no feito pessoal, no orgulho, força e determinação. Nesse feito individual, as pessoas do presente se espelham, buscam inspiração. Isso está nas histórias de deuses e deusas, heróis e heroínas que compõem inúmeras mitologias. E aqui não estou tratando mito como mentira e sim como uma construção coletiva que dá suporte, que estrutura a constituição de uma identidade coletiva, uma origem”, analisa a historiadora Maria Claudia Cardoso Ferreira, doutora em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab).
Licenciada da universidade para atuação no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, Maria Claudia Ferreira, que integra a Rede de Historiadoras Negras e Historiadores Negros afirma que fontes históricas não devem ser hierarquizadas. Segundo a historiadora, as tradições de construção e transmissão pela oralidade têm status de confiabilidade como as que são chamadas de oficiais. “Como seria se não pudéssemos considerar essas narrativas para contar sobre o passado de populações que não tiveram o direito à escrita do português; foram obrigadas a renunciar às suas escritas originárias ou mesmo se negaram a aprender a escrita do colonizador? Assim, não acho que haja uma persistência das memórias sobre essas mulheres e sim o curso comum da memória coletiva de origem negra e popular; e uma maior visibilidade dessa memória por conta da entrada de pessoas negras, mulheres, de origem popular, periférica nas universidades e em outros espaços de produção histórica”, acrescenta.
Maria Claudia Ferreira aponta que tem ocorrido uma promoção e mobilização de fontes diversas para dar visibilidade a estes conhecimentos. “Estamos disputando as narrativas. Então para que outras histórias de mulheres em geral e de mulheres negras em particular surjam é preciso investimento em formação, em políticas de memória e para isso essas pessoas precisam estar nesses lugares concebendo, propondo e gerindo as ações. É importante refletir, quem, onde e como se ensina e aprende sobre essas mulheres”, reitera.
De acordo com a historiadora, os registros sobre o Quilombo do Quariterê, que foi liderado por Tereza de Benguela, são de uma fonte considerada oficial do século XVIII: os Anais de Vila Bela. “Em 2006, as professoras Janaína Amado e Leny Anzai publicaram esses escritos em forma de livro. Ali é possível saber sobre o dia a dia do quilombo, os enfrentamentos, a destruição e sobre a morte de Tereza, ainda que sob o olhar dos homens que compunham a Câmara de Vereadores da Vila”, avalia.
A professora Maria Claudia Ferreira explica que não há uma imagem de representação de Tereza de Benguela. A ilustração que é associada a ela é de autoria de Félix Valloton e intitulada Mulher Negra Sentada. A imagem foi publicada em 1911. “Nos últimos anos ela foi adotada por organizações do movimento negro para representá-la. Assim como não temos retratos de Chica da Silva e Maria Felipa”, completa. Para Maria Felipa, a perita criminal e desenhista, Filomena Orge, elaborou um retrato com bases nas informações que foram sendo disseminadas sobre ela ao longo do tempo. Hoje essa imagem é usada como referência.
De acordo com Maria Claudia Ferreira é importante ampliar o acesso a essas histórias especialmente nos espaços de ensino, pois elas auxiliam na compreensão das lutas de movimentos sociais do Brasil contemporâneo. “Tereza de Benguela, insisto em pontuar, foi uma liderança política e precisamos olhar para outras mulheres negras nesse lugar. Tereza liderou o quilombo do Quariterê e enfrentou as forças da estrutura colonial. O quilombo era autossustentável, agregou africanos, seus descendentes e grupos indígenas. Hoje ao acessarmos a história de Tereza é importante associar com as “Terezas” que resistiram, lideraram e traçaram estratégias em outros tempos”, analisa a professora.
Por essa necessidade de aprendizagem, o mês de julho com esses marcos comemorativos tem reunido eventos diversos e com repercussão, afinal cada geração necessita ter informação para acrescentar novas formas de estratégias que ajudam as mulheres negras a vencer as várias formas de violência. É um tipo de memória que se renova e reconhece o passado como um incentivo permanente para o futuro.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia