Metade dos municípios tem contas no vermelho, e prefeitos pressionam por ajuda da União
O aumento no número de municípios com as contas no vermelho no primeiro semestre de 2023 levou centenas de prefeitos a Brasília na semana passada, numa mobilização em busca de nova ajuda financeira da União.
Segundo levantamento da CNM (Confederação Nacional dos Municípios), 2.362 cidades registraram déficit primário nos primeiros seis meses de 2023 —ou seja, gastaram mais do que arrecadaram. O número é quase sete vezes o registrado em igual período do ano passado (342).
Além disso, o número de prefeituras no vermelho representa 51% dos 4.616 municípios que disponibilizaram informações no sistema integrado mantido pelo Tesouro Nacional. No primeiro semestre do ano passado, a proporção era de 7%.
A deterioração das finanças das prefeituras, a cerca de um ano das eleições municipais, mobilizou representantes de mais de 2.000 cidades, segundo a CNM.
Eles estiveram nos gabinetes de deputados de suas regiões em busca de reforços para emplacar a agenda de socorro aos municípios. Também circularam nos salões do Congresso Nacional, abordando lideranças.
Segundo interlocutores do Ministério da Fazenda, os pedidos de ajuda já chegaram ao ministro Fernando Haddad. Pelo menos dois deputados estiveram na sede da pasta para apresentar demandas ligadas aos municípios.
O deputado Paulo Guedes (PT-MG) pediu ao ministro que pensasse em alguma saída para ajudar as cidades. Já o deputado Fernando Monteiro (PP-PE) levou consigo alguns prefeitos e disse à equipe econômica que pretende apresentar uma PEC (proposta de emenda à Constituição) com medidas focadas nos municípios.
Na Fazenda, o diagnóstico é que a queda nos repasses, inclusive do FPM (Fundo de Participação dos Municípios), abastecido com parte dos impostos federais (como Imposto de Renda e IPI), disparou o alerta entre os prefeitos e, por tabela, no Congresso Nacional.
Diante de seu próprio desafio para reequilibrar as contas federais, Haddad evitou fazer promessas até agora, mas sua equipe já admite que o assunto tende a ganhar força nas próximas semanas.
Uma PEC já em tramitação quer ampliar o volume de recursos destinado ao FPM. O fundo hoje recebe 25,5% das receitas do governo federal com IR e IPI. O percentual original era de 22,5%, mas foram aprovadas três parcelas extras de 1% cada uma, em emendas constitucionais promulgadas em 2007, 2014 e 2021.
A proposta é prever mais um repasse extra de 1,5%, a ser pago em março de cada ano. A CNM estima que a medida possa injetar R$ 11,1 bilhões adicionais nos cofres dos municípios. Ao mesmo tempo, significaria uma perda de receitas para a União.
As prefeituras também reivindicam uma compensação de R$ 6,8 bilhões pelas perdas dos municípios com a redução do ICMS sobre combustíveis, aprovada no ano passado, ainda sob o governo Jair Bolsonaro (PL).
A agenda também inclui iniciativas que coincidem ou afrontam interesses do governo federal no Congresso.
Em comum, municípios e União querem a retomada do voto de qualidade do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), instrumento que devolve à Fazenda o poder de desempate em julgamentos administrativos de conflitos tributários.
Ao ajudar na manutenção de cobranças de impostos repartidos com os entes subnacionais e permitir a negociação de débitos pendentes, a medida pode injetar R$ 33 bilhões no FPM, estima a Confederação. O projeto está em análise no Senado.
Prefeituras e governo federal, no entanto, divergem em relação à desoneração da folha. Municípios menores não costumam ter regime próprio de Previdência, e seus servidores são segurados do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). As prefeituras precisam recolher 20% sobre a folha, assim como os demais empregadores no Brasil.
Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados pretende prorrogar a desoneração da folha para 17 setores e estender o benefício para municípios com até 142 mil habitantes. Para eles, a alíquota cairia a 8%. Só essa mudança custaria cerca de R$ 10 bilhões aos cofres da União. Haddad já disse considerar o projeto inconstitucional e é contra sua aprovação.
O presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, diz que a deterioração das finanças municipais “não é só uma coisa conjuntural” e está ligada também à ampliação das competências dos municípios, que, segundo ele, arcam com uma fatia cada vez maior dos custos dos serviços à população.
“Não é ele [prefeito] que é o culpado, é o Congresso que aprova medidas, o governo que edita tal programa sem prever a devida contrapartida financeira”, afirma.
Do ponto de vista conjuntural, as receitas dos municípios com impostos até subiram 12,6% nos primeiros seis meses, em termos nominais, mas elas representam uma fatia pequena do financiamento das menores cidades, mais dependentes de repasses.
Já as transferências correntes tiveram uma alta nominal de 0,2%. Descontando a inflação, isso significa que os municípios tiveram uma queda real nos repasses, sobretudo os de menor porte.
Além da perda de fôlego no FPM, houve um represamento na liberação de emendas parlamentares, que irrigam os municípios.
No primeiro semestre de 2022, as prefeituras receberam R$ 13,2 bilhões em emendas indicadas pelos congressistas, valor que caiu a R$ 5,6 bilhões neste ano. Na saúde, a queda foi ainda mais intensa, de R$ 10,7 bilhões para R$ 2,9 bilhões.
Enquanto isso, as despesas subiram 24%, também nominais, na esteira da concessão de reajustes e da ampliação de investimentos.
As prefeituras argumentam que 25% da folha de pagamento está vinculada ao magistério, cujo piso salarial é calculado pela União e teve reajustes de 33,24% em 2022 e 14,95% em 2023. Só neste ano, o impacto foi calculado em R$ 19,4 bilhões pela CNM. Nem todos os municípios seguiram à risca o percentual de referência, mas o valor dá uma dimensão do peso da medida para as contas locais.
Em relação aos investimentos, a CNM afirma que os municípios estão concluindo com recursos próprios algumas das obras paralisadas pela União por falta de dinheiro no Orçamento federal.
Ziulkoski afirma que a pressão dos prefeitos por ajuda federal “não tem nada a ver com a eleição” de 2024, no sentido de se reeleger ou fazer sucessor.
“Se o prefeito não deixar dinheiro no caixa para bancar seus restos a pagar [despesas contratadas no mandato que serão pagas só em anos seguintes], ele vai para a cadeia. O prefeito vai para a cadeia, enquanto o presidente da República viaja para os Estados Unidos”, diz, sem citar nomes. A declaração faz uma referência implícita a Bolsonaro, que viajou a Miami na véspera do término de seu mandato.
A LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) proíbe os titulares de Poderes de contratar despesa no fim do mandato sem deixar dinheiro em caixa para pagá-las. A prática pode ser punida, daí a preocupação dos prefeitos a um ano das eleições.
Idiana Tomazelli / Folha de São Paulo