Antes da Aldeia Global, ele foi um dos poucos brasileiros conhecidos lá fora
Na Tower Records da Piccadilly Circus, no coração de Londres, ou na Fnac, no centro de Paris, duas das principais lojas de discos do mundo, a discografia de João Gilberto ocupava algumas prateleiras.
Isso era no início dos anos 1990, quando não existia internet nem o mundo globalizado, ou a Aldeia Global, preconizado pelo teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan – conceito este que veio a se concretizar na década seguinte.
Um contato naquela época com o Brasil, da capital inglesa, uma vez por mês, por telefone público, era algo diminuto e caro. A conversa não passava de um a dois minutos, entre algumas poucas palavras e muitos choros.
As duas lojas famosas de discos passavam a ser momentos de se matar a saudade do Brasil. Em geral, um registro fonográfico de João Gilberto, falecido neste sábado 6, era disponibilizado nas torres de áudios com fones de ouvido devidamente localizadas ao lado das gôndolas de CDs.
Para escutar, por exemplo, uma das obras-primas de João Gilberto, o disco Amoroso, não era difícil. O cantor tornou-se um dos poucos brasileiros conhecidos lá fora além de Pelé, naquele distante período.
Além disso, brasileiros que se apresentavam nas duas capitais mais agitadas da Europa basicamente alegravam os seus compatriotas – João Gilberto era exceção.
Estranhei quando voltei ao Brasil, passei a frequentar rodas de samba e João Gilberto, apesar de não ser compositor nato, era solenemente ignorado como intérprete de samba.
Pois o cantor foi, acima de tudo, um grande divulgador do gênero. João nunca esqueceu de gravar samba, embora não frequentasse rodas muito menos escolas de samba – é até menor dizer que ele foi apenas um expoente da bossa nova ou mesmo influenciado pelo jazz.
E ele interpretou, consciente ou não, grandes compositores de samba, como Haroldo Barbosa, Zé da Zilda, Wilson Moreira, Noel Rosa, Geraldo Pereira, Ary Barroso. A maioria desses autores vivido na primeira metade do século passado.
E dos grandes compositores da bossa nova que gravou, como Tom Jobim, Carlos Lyra e Vinicius de Moraes, a levada de samba foi algo predominante.
Roberto Carlos inspirou sua carreira em João Gilberto. O Rei tentou inúmeras vezes levá-lo ao seu programa de final de ano na TV Globo ou mesmo gravar uma faixa em dueto com o músico. Nunca conseguiu.
O biógrafo (desautorizado) de Roberto Carlos, Paulo Cesar de Araújo, na obra O réu e o Rei (2014), relata bem como se aproximou de João Gilberto, com objetivo único de entrevistá-lo para a biografia do Rei, mas tornou-se íntimo do cantor baiano de Juazeiro, recebendo conselhos, trocando ideias e viajando com o cantor. Ali se entende bem a personalidade do cantor.
O enigma João Gilberto é muito rico. Tem a ver com a formação dos grandes gênios do mundo. Músico com técnica única e busca incansável pela perfeição, ajudou a levar a música brasileira de sua origem no samba ao patamar merecido desde antes da internet.