Museus deveriam exibir restos mortais humanos?
No final do século 19, os colonizadores europeus continuavam se intrometendo na terra do povo bunuba, onde hoje fica a Austrália Ocidental.
Foi quando Jandamarra se tornou uma lenda como líder da resistência local.
A polícia colonial o procurou por três anos, até contratar um rastreador aborígene para encontrá-lo.
A polícia matou Jandamarra a tiros e o degolou em 1897. Ele tinha cerca de 24 anos de idade.
Seu crânio foi enviado como troféu colonial para o museu particular de uma fábrica de armas em Birmingham, no Reino Unido. Mas a fábrica foi demolida nos anos 1960 e o crânio de Jandamarra desapareceu.
Os anciões bunubas e pesquisadores vêm tentando encontrar o crânio do célebre combatente da liberdade há décadas, mas seu paradeiro é desconhecido até hoje. Jandamarra se tornou uma figura reverenciada entre os bunubas.
Museus de todo o mundo abrigam os restos físicos de inúmeras outras pessoas – e muitas delas são anônimas.
Os museus vêm avaliando cada vez mais sua responsabilidade pela exibição ou manutenção desses restos. Em alguns casos, eles consideram a possibilidade de devolvê-los, já que os descendentes das suas comunidades, entre outros interessados, passaram a pedir tratamento mais digno dos restos humanos.
O que conta como restos humanos
A definição de restos humanos nos museus – e o próprio uso da expressão “restos humanos” – não é claramente estabelecida.
No Reino Unido, por exemplo, a Lei do Tecido Humano não se aplica às unhas e aos cabelos. Ela também só exige consentimento de uso de restos humanos de pessoas que morreram nos últimos 100 anos.
Mas alguns museus britânicos adotam uma definição mais ampla. E os padrões internacionais também são variáveis.
Quando o Grupo de Trabalho sobre Restos Humanos da Associação Alemã de Museus redigiu suas primeiras orientações, em 2013, “para as nossas recomendações, realmente não importava se uma pessoa morreu 100 ou 1 mil anos atrás”, afirma a etnóloga Wiebke Ahrndt, presidente do grupo de trabalho.
Os restos humanos foram definidos como todos os restos físicos de Homo sapiens, incluindo cabelos, dentes ou unhas, que podem não ter ficado unidos à pessoa no momento da coleta.
Ahrndt explica que certos itens foram excluídos por razões práticas, como objetos de túmulos e fotografias de seres humanos, mesmo que, para algumas culturas, estes itens também tragam significado especial.
Foi por isso que o Museu Nacional da Escócia retirou todas as imagens de restos humanos (não embalados) do seu banco de dados online.
Culturas diferentes também mantêm diferentes crenças sobre como tratar os restos humanos. Ahrndt menciona os exemplos de instrumentos musicais tibetanos feitos com ossos humanos e crânios incrustados em objetos religiosos, nas tradições vodu do Haiti.
Mas, em muitas tradições culturais, separar ou remover partes do corpo é algo profundamente negativo.
Outra questão discutida é se é aceitável exibir corpos humanos, se estiverem totalmente embalados.
Um bom exemplo são as múmias egípcias, muitas vezes “observadas mais como artefatos do que como pessoas”, segundo o curador Lewis McNaught, que já trabalhou no Departamento de Antiguidades Egípcias do Museu Britânico.
Embora as múmias sejam antigas e, muitas vezes, não tenham partes do corpo expostas, sua exibição é um objeto de discussão permanente.
A exibição continua tratando esses seres humanos como objetos, sem aumentar a verdadeira compreensão do público.
A BBC entrou em contato com o Museu Britânico pedindo comentários, mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.
Mudança de comportamento
O advogado Edward Halealoha Ayau defende há 35 anos a repatriação de ancestrais nativos do Havaí que se encontram em instituições culturais.
Quando ele e seus colegas começaram seu trabalho, os museus que exibem restos humanos não consideravam a questão ética envolvida.
Mas uma imensa mudança ocorreu desde então, segundo Ayau.
Para ele, “houve uma [mudança da] maturidade de opiniões em relação aos restos humanos”.
Wiebke Ahrndt é diretora do Museu Ultramarino de Bremen, na Alemanha. Quando ela chegou à instituição, 20 anos atrás, cabeças encolhidas da América do Sul eram exibidas sem explicação, nem respeito pela sua condição sensível.
Ahrndt teve a impressão de que as cabeças estavam ali apenas como espetáculo. Elas foram “a primeira coisa que coloquei no depósito”.
Depois, foi a vez da coleção de múmias peruanas com crânios visíveis. O museu expôs suas razões para deixar de exibir aqueles restos humanos e não houve contestação.
Alguns museus receiam que essas medidas levem a um perigoso caminho de questionamento e renúncia de objetos, que poderia acabar praticamente esvaziando suas coleções. Mas esta certamente não foi a experiência do Museu Ultramarino, segundo Ahrndt.
E sua nova política sobre os restos humanos não prejudicou a quantidade de visitantes, nem o financiamento do museu, segundo ela.
Agora, em meio a discussões sobre responsabilidades e legados coloniais, existe ainda mais pressão do público e da imprensa alemã para acelerar a repatriação de restos humanos adquiridos em contextos coloniais.
“O que percebemos na última década é que o comportamento dos visitantes em relação ao material sensível mudou”, afirma Ahrndt.
Os visitantes atuais dos museus às vezes não compreendem por que a repatriação pode levar tanto tempo.
É verdade que alguns museus usaram brechas legais para retardar o processo.
Mas, em outros casos, é preciso mais tempo para respeitar os processos de tomada de decisão dos grupos originários.
Ahrndt explica que as comunidades de origem enfrentam decisões emocionais muito complexas sobre o que fazer com os restos devolvidos.
Um exemplo é o de duas cabeças maori tatuadas, chamadas Toi moko, oferecidas pelo Museu Ultramarino em 1999 para o Museu Te Papa Tongarewa, em Wellington, na Nova Zelândia. Elas foram entregues somente em 2006.
Uma consideração importante em relação aos restos humanos nos museus é a forma em que eles entraram na coleção.
Ahrndt acredita que eles não devam ser apresentados ao público de nenhuma forma, quando foram sabidamente adquiridos ilegalmente ou de forma antiética.
No caso do Museu Ultramarino de Bremen, os restos humanos repatriados não foram coletados inicialmente de boa-fé.
“Eles foram contra a vontade das pessoas”, conta Ahrndt. “Eles foram roubados, foram desenterrados na calada da noite.”
Na opinião de Ayau, como é impossível presumir o consentimento, os museus têm a responsabilidade de nunca exibir pessoas mortas.
Ele relembra que, quando nossos familiares morrem, por exemplo, eles não são enterrados com a intenção de que, um dia, sejam colocados em exposição pública.
Atualmente, existe também maior questionamento sobre o real valor científico ou acadêmico de se manter restos humanos.
E, nos casos em que possa haver algum argumento em favor do mérito científico, ele é cada vez mais ponderado em relação a outras questões, como a dignidade da pessoa e os desejos da comunidade de origem.
Muitos dos corpos humanos em museus ocidentais acabaram ali como justificativa para o colonialismo e o racismo científico. Os exemplos são numerosos e incluem incidentes até do início do século 20.
Na Suécia, as mulheres dos povos tradicionais sâmi foram esterilizadas à força. Foram também realizadas pesquisas eugênicas. Com isso, ossos e crânios sâmis permanecem guardados em diversos museus do país.
Restos humanos também foram retirados das colônias alemãs e transportados para museus, na falsa crença de que eles demonstrariam a superioridade branca.
No início do século 20, um antropólogo do Museu Nacional de História Natural (NMNH, na sigla em inglês) de Washington DC, nos Estados Unidos, coletou centenas de partes do corpo de pessoas pobres e vulneráveis dos Estados Unidos e do exterior, para o que ele chamou de “coleção de cérebros raciais” e “coleção racial de pélvis”.
Um representante do Instituto Smithsonian, administrador do NMNH, fez a seguinte declaração à BBC:
“O Instituto Smithsonian vem devolvendo restos humanos desde 1984. Desde então, nos concentramos em devolver restos de povos originários, segundo a Lei do Museu Nacional do Indígena Americano de 1989. Em 2024, nosso foco são os restos que não são de povos originários”, declarou o representante.
“Em maio do ano passado, o Smithsonian indicou 13 membros para sua força-tarefa sobre restos humanos, dedicada a elaborar recomendações que abordem o futuro da coleção de restos humanos do Instituto. A força-tarefa está em fase final de elaboração das suas recomendações para a Secretaria, que irá emitir uma política revisada sobre restos humanos nos próximos seis a 12 meses.”
Até 2020, o Museu Pitt Rivers em Oxfordshire, no Reino Unido, mantinha em exposição tsantsa sul-americanas – às vezes denominadas cabeças encolhidas.
Lewis McNaught é o editor do website sobre restituição cultural Returning Heritage. Ele descreve a instituição como tendo sido um “museu com ambiente muito vitoriano” no passado.
O museu já retirou de exibição 120 restos humanos, incluindo as tsantsa.
Elas podem ter vindo originalmente de três povos jívaros, incluindo o grupo étnico shuar, originário da região amazônica do Peru e do Equador.
Segundo o website do Museu Pitt Rivers, “a decisão de retirar as tsantsa da exibição pública foi tomada porque se percebeu que a forma da exposição não ajudava suficientemente os visitantes a compreenderem as práticas culturais relativas à sua elaboração, levando as pessoas a pensar na cultura shuar de formas racistas e estereotipadas”.
É claro que muitos museus adquiriram partes humanas sob premissas pseudocientíficas. Mas alguns defendem que existem razões cientificamente válidas para continuar a exibi-las.
O Museu Britânico, por exemplo, mantém em exibição os delicados ossos de uma criança do antigo Egito, portadora do transtorno genético conhecido como osteogenesis imperfecta (“ossos de vidro“). Perto deles, uma placa aborda a importância dos restos humanos para o estudo de doenças antigas.
Já o Museu de História Natural do Reino Unido permanece aberto a receber restos humanos. A instituição defende, por exemplo, que as assinaturas químicas dos ossos e dentes podem ajudar a esclarecer movimentos populacionais do passado.
Análises de esqueletos também podem ajudar a aprimorar as técnicas de identificação usadas pelos antropólogos forenses.
E alguns curadores acreditam que avanços tecnológicos futuros podem trazer mais aplicações científicas para as partes do corpo que se encontram em museus hoje em dia.
Um representante do Museu de História Natural afirmou que “a Lei do Tecido Humano de 2004 exige o consentimento das pessoas cujos restos são objeto de pesquisa, caso elas tenham morrido nos últimos 100 anos. E as propostas de exibição pública de restos são sujeitas a aprovação, depois de consideradas as questões legais, normativas, éticas e outras relevantes.”
Uma solução é retirar uma exibição humana controversa da visão do público, mas manter os restos no depósito para possível uso científico.
McNaught é cético sobre os argumentos em favor da manutenção indefinida dos corpos, já que é possível retirar amostras de DNA para que o corpo possa ser respeitosamente devolvido ou enterrado.
Mas nem todos concordam com este procedimento.
O Museu Hunteriano de Londres guarda na sua coleção os restos de Charles Byrne (1761-1783), um homem irlandês com gigantismo.
Conta-se que, antes da morte, Byrne fez de tudo para evitar que seu corpo fosse comprado por anatomistas. Até que veio a intervenção do cirurgião John Hunter (1737-1821), que originou o nome do museu.
Os restos de Byrne foram retirados de exibição antes que o museu reabrisse em 2023, depois de uma reforma.
Segundo o website da instituição, o esqueleto “ficará retido como parte integrante da Coleção Hunteriana e estará disponível para pesquisas de boa-fé sobre as condições da acromegalia e gigantismo”.
Como tratar restos humanos com dignidade
“Passou realmente a ser prática comum analisar e considerar a devolução de restos humanos”, segundo McNaught.
Esta prática ganhou mais terreno em alguns países ocidentais que, na visão de McNaught, têm muito mais visibilidade, devido à escala da pilhagem e retirada de restos humanos ocorrida no passado. Mas este é um desafio maior em algumas das antigas potências coloniais do oeste europeu.
A legislação francesa, por exemplo, historicamente dificulta a devolução de parte das coleções das instituições públicas.
Na experiência de Ayau ao buscar a repatriação dos ancestrais nativos havaianos, “o país provavelmente mais difícil é a França“.
Espera-se que mudanças recentes da legislação possam acelerar este processo.
Além disso, alguns museus enfrentam dificuldades com sua própria catalogação e registros, o que pode complicar a situação.
“Existem ainda muitos restos humanos em coleções públicas que não conseguimos sequer identificar de onde vieram, que dirá devolvê-los à sua terra de origem”, explica McNaught.
“Acho que ainda estamos arranhando a superfície.”
De fato, sobre o rastreamento de restos ancestrais, Ayau comenta que “sempre que achamos que acabou, descobrimos mais”.
Devoluções emotivas
Quando realmente acontece alguma devolução de restos humanos, ela pode ser uma forma de curar feridas ou de reconciliação.
Ayau já viu este processo despertar fortes emoções entre os representantes de museus e não só nas comunidades de origem.
“A emoção da repatriação causa impactos a todos”, ele conta.
As cerimônias públicas de devolução do Museu Ultramarino incluem a assinatura dos documentos oficiais da entrega e do “Livro de Ouro” histórico, na prefeitura de Bremen. Já houve pedidos de desculpas de Ahrndt, como diretora do museu, e do prefeito da cidade.
“Eles levaram a reconciliação muito a sério”, relembra Ayau sobre a cerimônia da qual ele participou, que foi transmitida ao vivo. “Foi um grande exemplo para os demais.”
Esse tipo de pedido de desculpas não é algo difícil para Ahrndt.
“A questão foi mais sobre o que realmente ocorreu em seguida.”
Idealmente, a repatriação não é o fim do relacionamento entre os museus e as comunidades de descendentes.
Em 2017, por exemplo, após a devolução de restos maori e moriori pelo Museu Ultramarino, os parceiros da Nova Zelândia expressaram o desejo de trabalhar em projetos culturais conjuntos no futuro.
Ahrndt concordou, mas não achava provável, devido a limitações financeiras.
Mas, cinco anos depois, o Museu Ultramarino conseguiu financiamento para uma nova exibição em parceria com o Museu da Nova Zelândia, Te Papa Tongarewa.
“Foi muito tocante para os dois lados”, relembra Ahrndt. “Agora, posso dizer, cinco anos depois, que a repatriação não é o fim. Na verdade, é o começo de algo novo.”
O Museu Ultramarino de Bremen continua exibindo múmias egípcias enfaixadas. No momento, suas cabeças encolhidas da América do Sul permanecem no depósito, onde ficam disponíveis para pesquisadores com fortes razões científicas para terem acesso a elas.
Para Ahrndt, é preciso ter uma boa razão para exibir pessoas.
“Você deve sempre pensar: ‘eu conseguiria contar minha história sem os restos humanos?'”
Esta situação está em constante mutação. Em meio às contínuas controvérsias, o Museu Britânico e o Instituto Smithsoniano estão agora revendo suas políticas sobre restos humanos.
“Daqui a dois anos, os colegas virão dizer que precisamos de novas orientações e outra geração irá depois reescrevê-las por completo”, afirma Ahrndt. “Tenho certeza absoluta disso.”
Para manter sua relevância, os museus estão em constante mutação, seguindo a evolução da ciência e da sociedade.
Para McNaught, “estamos em um período de transição entre o museu colonial antigo, que foi construído para celebrar a nossa história colonial e trazia troféus da Índia, da África e de outros lugares, e o museu do futuro, onde não haverá restos humanos em exibição.”