‘Na moda’, negacionismo surgiu na Idade Média, quando ciência ameaçava dogmas da Igreja
Coberto da cabeça aos pés com um macacão branco impermeável e ocultando o rosto com uma máscara do personagem V, do filme V de Vingança, um homem caminha por uma rua de Liestal, na Suíça, acompanhado de uma pequena multidão. Em seu pescoço, um cartaz chama a atenção: “Parem a loucura do corona imediatamente”. Para ele, a pandemia não existe, é um surto coletivo. E o pior é que ele não está só. Em Londres, na Inglaterra, um protesto de negacionistas reúne 15 mil pessoas, aglomeradas e sem máscaras. “Onde está a pandemia?”, questiona uma mulher, segurando uma placa.
A pandemia que ela nega já matou 4,5 milhões de pessoas em todo o mundo – 581 mil só no Brasil –, mas ainda há muita gente capaz de afirmar categoricamente que ela não existe. No ano passado, um advogado alemão iniciou uma ação civil coletiva milionária cujo principal argumento era justamente dizer que a pandemia era uma farsa – e o que pandêmica, mesmo, era a realização de testes PCR, aqueles usados para detectar casos de covid-19. O alvo dele? Dois cientistas consideradas as maiores autoridades sanitárias do país.
No Brasil, as pessoas tomam as ruas com cartazes contra a vacina, enquanto elas são atacadas diariamente nas redes sociais com milhares de peças de desinformação. Já nos Estados Unidos, onde 99% das mortes atuais por covid-19 são de pessoas que não se vacinaram – porque negam a eficácia das vacinas – o governo considera viver outra pandemia dentro da pandemia do coronavírus: a dos negacionistas, ou dos antivacina. Mas, afinal, o que essas pessoas tanto negam? E desde quando elas se tornaram tão numerosas – ou, pelo menos, tão barulhentas e convincentes?
Ao longo da história, pessoas e grupos políticos têm negado de tudo um pouco. E, embora o termo negacionismo tenha se popularizado nos últimos anos, ainda mais intensamente desde o início da pandemia do SARS-CoV-2, o fenômeno não é novo, nem nasceu junto com comportamentos de extrema-direita.
“A verdade é que ele remonta já ao final do medievo e início da Idade Moderna, quando algumas descobertas científicas ameaçavam os dogmas religiosos. As autoridades religiosas negavam os avanços científicos e as reflexões feitas pelos filósofos humanistas”, explica a historiadora Natalia Reis, professora de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Afronta a Deus
Para Natalia, os negacionistas se preocupam em reafirmar sua ideologia – e negar o que pode ser visto como uma ameaça ao seu poder. “O que move os negacionistas, em geral, é a preocupação em negar tudo aquilo que é inconveniente às suas ideologias políticas e sociais, muitas vezes servem a interesses políticos. No caso da Igreja, o seu monopólio sobre os fiéis e a sua forma de pensar era um meio de manutenção do seu poder político e social”, exemplifica.
Foi essa preocupação que fez com que a Inquisição romana perseguisse e condenasse Giordano Bruno à morte, no final do século XVI. O frade, filósofo, teólogo e matemático napolitano foi acusado de heresia ao questionar uma série de dogmas da Igreja Católica e ainda defender a existência de vida em outros planetas. A teoria conhecida como pluralismo cósmico acabou culminando na morte de Giordano Bruno em 1600, numa fogueira no Campo dei Fiori, em Roma, com plateia e tudo.
Giordano Bruno ganhou estátua no Campo dei Fiori, em Roma, onde foi morto em 1600 (Foto: Francesca Soria) |
Quem não quis ter o mesmo fim, acabou negando suas próprias descobertas científicas. “Foi o caso de Galileu Galilei, que desenvolveu a teoria do heliocentrismo, indo contra o dogma geocêntrico da Igreja, que era baseado em interpretações bíblicas. Tais descobertas eram vistas como uma espécie de afronta a Deus”, completa Natalia.
A teoria de que o Sol é o centro do universo de Galileu Galilei se estabeleceu. Mas, outras descobertas científicas ainda são negadas por alguns grupos, como a esfericidade da terra, medida há mais de 2 mil anos por Eratóstenes. Faz apenas dois anos, por exemplo, que um ex-jogador de futebol espanhol criou seu próprio time negacionista: o Terra Plana FC. Nos jogos, a torcida gritava que “Toda ciência não passa de uma grande mentira” e “A Nasa é uma fraude”.
A diretoria do clube, que se desfez em julho passado, defendia que a Terra não é redonda – mesmo que Eratóstenes, que nasceu em 276 a.C., tenha medido a circunferência da Terra e que os próprios espanhóis tenham, lá no século XVI, feito a primeira viagem de circum-navegação com base na descoberta da esfericidade da Terra. As naus, então, – ufa! – não despencariam quando chegassem à ‘borda’ da Terra.
Expedição de circum-navegação, comandada por Fernão de Magalhãs, teve cinco embarcações; só a Victoria conseguiu retonar (Mapa: Ortelius/Domínio Público) |
Negação da ciência
Para Natalia Reis, é possível falar em negacionismo “sempre que algum movimento político ou algum indivíduo nega o que a ciência já comprovou com base em pesquisas empíricas ou em reflexões baseadas no método científico”. É o que acontece, por exemplo, quando grupos ou pessoas negam a existência da pandemia, a eficácia das vacinas, a circunferência da Terra, os efeitos do aquecimento global ou – um caso clássico de negacionismo – o Holocausto.
É um fenômeno tão intrigante que o pesquisador John Cook, do Center for Climate Change Communication, da Universidade George Mason, nos Estados Unidos, criou um projeto para combater o negacionismo na ciência, sobretudo em questões sobre o aquecimento global. O Skeptical Science (Ciência Cética), acumula uma lista dos argumentos céticos mais usados para negar o aquecimento global e os contrapõe com o que a ciência diz a respeito. A lista, por enquanto, tem 198 mitos – inclusive um que afirma que o que aquece a Terra é o Sol.
O também historiador Valdei Lopes de Araújo, presidente da Associação Nacional de História (Anpuh) e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) explica que a ciência entra na mira dos negacionistas por ser uma forma de autoridade.
“É um discurso contra tudo que está aí. E a ciência, que é uma forma de autoridade constituída, acaba sendo um alvo”, aponta Valdei.
Na era das transformações digitais, onde todo mundo é um pouco produtor de conteúdo, as coisas tendem a sair do controle. O negacionismo passa a se confundir, inclusive, com a desinformação. “Vira um grande mercado, deixa de ser um boato que atingia pequenas comunidades. Alguém monta um blog para alimentar essas teorias da conspiração, ganha dinheiro, amplia a audiência, logo aparece um candidato para defender aquilo. No limite, isso leva às sociedades à extinção, porque se cria uma realidade compartilhada. O caso da vacina é evidente, está morrendo muito mais gente que não acredita que elas funcionem”, pontua.
Para o cientista de dados e coordenador da Rede Análise Covid, Isaac Schrarstzhaupt, um fundo emocional pode ajudar a explicar por que as pessoas acreditam: “No caso da pandemia, envolve o nosso medo e a nossa vontade individual. A pessoa vê a notícia ruim e começa a negar, a não aceitar. E aí ela começa a buscar informações até achar algo que diga o que ela quer”.
Os efeitos disso estão claros, aponta a jornalista, editora de Ciências do Jornal da USP e divulgadora científica Luiza Caires.
“Já estamos vendo os efeitos perniciosos do crescimento desse ataque à ciência e a promoção de informações pretensamente baseadas em ciência, mas que não o são. Cria-se a dúvida (não a dúvida saudável), a insegurança. ‘Vence-se’ o debate (em questões que nem deveria haver um) pelo grito, pela retórica e apelo emocional e se convence as pessoas a fazerem escolhas erradas para sua saúde, por exemplo”, expõe Luiza.
O Holocausto
Para a História, nem tudo é negacionismo. E é comum que outro termo seja usado como sinônimo: revisionismo. Contudo, são fenômenos diferentes, como explica a historiadora Ana Carolina Barbosa Pereira, professora de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Na prática, revisionistas desenvolvem teses historiográficas, geralmente polêmicas e permeadas de erros, mas construídas com método histórico, debatidas entre profissionais da História.
O negacionismo, pelo contrário, não se firma em um método.
“As estratégias negacionistas são muito diversas e apresentam diferentes nuances. Podem se manifestar tanto na forma de comportamentos quanto de discursos, se baseiam em generalizações, omissões ou mesmo ataques diretos à ciência e aos historiadores(as), em vez de seus argumentos, ideias ou resultados de pesquisa. O negacionismo é, como afirma Caroline Bauer, sempre anticientífico ou pseudocientífico, assim como o ataque à ciência e aos cientistas é uma constante”, afirma Ana Carolina.
Um dos negacionismos históricos mais difundidos é o do Holocausto. “É a negação da existência de campos de extermínio e das câmaras de gás, a omissão de testemunhos que informam sobre o número de vítimas, a deslegitimação dos testemunhos dos sobreviventes, dentre outras estratégias”, explica a historiadora.
Entre essas outras estratégias estão, por exemplo, o surgimento de outras interpretações e até justificativas. “Dizem que o nazismo foi uma reação ao comunismo, uma reação à União Soviética. Era um pouco como ‘passar o pano’, como a gente diz hoje”, completa o professor Valdei Lopes de Araújo.
Uma das histórias mais impressionantes em torno disso começou com a publicação de um livro em 1993. A historiadora estadunidense Deborah Lipstadt lançou Negando o Holocausto: O Crescente Ataque à Verdade e à Memória (Plume Books, 304 p., R$ 85, em inglês). Num trecho, ela falava sobre a forma equivocada como o escritor britânico David Irving interpretava documentos para que eles ‘confirmassem’ a tese dele de que câmaras de gás nunca tinham sido usadas para exterminar judeus.
Historiadora Deborah Lipstadt (à direita) foi processada após criticar negacionismo de escritor britânico; julgamento virou livro e filme, em que ela foi interpretada pela atriz Rachel Weisz (à esquerda) (Foto: BBC Filmes) |
Irving processou Lipstadt e a pesquisadora precisou provar na Justiça que o Holocausto existiu. Na verdade, a estratégia usada por ela e sua defesa foi outra: em vez de provar a existência do Holocausto, expondo sobreviventes a depoimentos nos tribunais, Deborah provou que a história contada por Irving era uma mentira. Em 2000, após 32 dias de julgamento de um processo que caminhou por seis anos, a Justiça decidiu que Deborah não havia difamado Irving, que ele era um “negador do Holocausto”, além de racista e antissemita.
O caso gerou outro livro de Deborah, Negação (Universo dos Livros, 432 p., R$ 27), no qual ela narra o julgamento em Londres. O livro deu origem a um filme homônimo.
‘Assassinos da memória’
O cientista John Cook, aquele que mentou uma lista dos principais mitos em torno do aquecimento global, também criou um acrônimo para que as pessoas possam memorizar e identificar facilmente um discurso negacionista no dia a dia: FLICC. O acrônimo se refere aos termos em inglês ‘fake experts’ (falsos especialistas), ‘logical fallacies’ (lógicas falaciosas), ‘Impossible expectations’ (expectativas impossíveis), ‘cherry picking’ (supressão de evidências) e ‘conspiracy theories’ (teorias da conspiração).
Na história, Pierre Vidal Naquet escreveu Os Assassinos da Memória (Papirus, 216p, esgotado), com um modus operandi dos negacionismos e suas manifestações e motivações: parte-se de uma hipóstase – o que importa é confirmar o que já se sabe de antemão, sem espaço para a dúvida; negação pura e simples do acontecimento histórico; generalizações e omissões; deslegitimação dos testemunhos contrários e aceitação acrítica dos favoráveis às teses negacionistas; mobilização de artimanha pseudotécnica e pseudocientífica.
“Quando falamos em negacionismos históricos, nós estamos sempre nos referindo a disputas em torno da memória coletiva que motivam as falsificações, deturpações ou até mesmo negações pura e simples da realidade dos acontecimentos históricos”, aponta Ana Carolina.
No Brasil, um dos grandes alvos de negacionismo é a ditadura civil-militar. “Você tem dois caminhos para negar: um é dizer não foi ditadura, que não foi golpe, foi antigolpe. Não há evidencia de que houvesse planejamento para golpe comunista, mas se usou isso como justificativa. Se não havia uma golpe comunista, você não pode dizer que houve um contragolpe. Outro caminho é dizer que houve tortura, mas que ela se justificava pelo contexto histórico. Aí é com poucas evidências e com um problema ético: como se pode aceitar a tortura?”, questiona Valdei Lopes de Araújo, lembrando que o assunto foi trazido de volta à tona por Jair Bolsonaro, em 2016, ao elogiar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos maiores torturadores da ditadura militar brasileira, como se fosse um herói.
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Contra o negacionismo, a divulgação científica
Se é pelas redes sociais que os negacionistas ganham espaço, constroem suas narrativas e convencem outras pessoas, esse parece ser, também, o melhor ambiente onde cientistas e outras pesquisadores podem combater esse tipo de atuação. O desafio é valorizar o papel da ciência e se comunicar melhor com a sociedade. Para o historiador Valdei Lopes de Araújo, presidente da Associação Nacional de História (Anpuh) e professor da Federal de Ouro Preto (Ufop), nós já vivemos outras ondas como essa: no século XIX, com a Revolução Francesa e a explosão da imprensa, e no século XX, na era do rádio.
“Com a expansão do rádio, você tem uma onda de desinformação que vai dar origem ao fascismo. Agora, nós vivemos a onda das redes sociais e da internet, crises do sistema de mídia em escala global. Isso vai ter que ser resolvido pela política, pela regulação, pela construção de ferramentas para qualificar essa informação, pelo reforço da ciência, dos sistemas de curadoria da informação”, aponta Valdei.
É um pouco o que vem sendo feito na Anpuh, com a valorização do historiador, do professor de história – atacado, por exemplo, pelo projeto Escola Sem Partido. A Associação vem melhorando as formas de comunicação com a sociedade e acolhendo as demandas. “O inimigo é a desinformação”, afirma Valdei.
Falar de ciência de forma cada vez mais clara tem sido, aliás, uma das estratégias, principalmente, de jornalistas especializados. “Procuramos, ainda mais do que antes, ser bastante claros, não dar margem a ambiguidades em textos e títulos. Não noticiar o que ainda não está muito bem resolvido sem deixar bastante claro que a ciência ainda não tem certeza sobre aquilo. Mas o respeito ao público, a busca da verdade, e a transparência devem permanecer”, afirma a jornalista Luiza Caires, divulgadora científica e editora de Ciências do Jornal da USP.
Para o cientista de dados e coordenador da Rede Análise Covid, Isaac Schrarstzhaupt, a divulgação científica serve para preencher um vazio de informação e de liderança. Foi por ver esse vazio que ele decidiu partir para a divulgação.
“As pessoas estavam perdidas. O máximo que as prefeituras faziam era divulgar uns gráficos e eu pensava: minha mãe vai olhar para esse gráfico e não vai entender. Eu decidi ajudar as pessoas a entender os riscos”, afirma Isaac, que explica situações da pandemia através de storytelling.
“Nós, adultos, temos uma autonomia para tomada de decisão. Mas, entre a autonomia e a tomada de decisão, tem uma zona cinzenta que é tomada informação. Ali eu decido se eu mando meu filho para a escola ou se eu não mando. Essa informação, daí a importância da divulgação científica, vem para preencher essa zona cinzenta das pessoas”, completa.
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Não dá para negar
– A Terra é redonda
Há mais de 2 mil anos, o matemático Eratóstenes de Cirene mediu a circunferência da Terra ao comparar os tamanhos das sombras de estacas de madeira fincadas no solo de duas cidades diferentes no Egito: Siena e Alexandria. Ao meio-dia, não havia sombra em Siena, mas havia em Alexandria. Se a Terra fosse plana, não haveria diferença nas sombras. No século XVI, a expedição de Fernão de Magalhães, patrocinada pela Espanha, fez a primeira viagem de circum-navegação, provando a circunferência a Terra.
– O Holocausto existiu
Estudiosos ressaltam o quanto é difícil precisar o número de judeus exterminados pelos nazistas no Holocausto, sobretudo por conta da destruição sistemática de documentos pelos nazistas. Mas, dois dos principais centros de pesquisa sobre o tema – o Yad Vashem, em Israel, e o Museu do Holocausto, em Washington – estimam em 6 milhões de pessoas. No Brasil, o Museu do Holocausto de Curitiba (PR) coleta depoimentos de sobreviventes que chegaram ao Brasil e contam os horrores dos campos de extermínio.
– Brasil viveu ditadura militar
O Brasil viveu um golpe militar em 1964 e uma ditadura militar na sequência. Negacionistas costumam argumentar que houve um contragolpe, uma resposta a uma ameaça de golpe comunista, mas não há provas de que havia uma ameaça de golpe comunista no país. Também se costuma negar as torturas, a despeito dos documentos e dos depoimentos de sobreviventes.
– Há aquecimento global
De acordo com dados do site Skeptical Science, desenvolvido pelo pesquisador estadunidense John Cook, 97% dos especialistas em clima do mundo concordam que os humanos estão causando o aquecimento global. A Antártida, por exemplo, está perdendo gelo em taxa acelerada, ao contrário do que dizem os que negam o aquecimento.
– A pandemia é real
A Organização Mundial de Saúde (OMS) decretou a pandemia do coronavírus em março de 2020. Isso acontece quando a disseminação de uma doença já ocorre em escala mundial. Segundo a OMS, já foram registrados mais de 218 milhões de casos e 4,5 milhões de mortes por covid-19 nos cinco continentes.
– Vacinas salvam vidas
A ciência já provou que a vacinação eliminou ou reduziu drasticamente a incidência de doenças que matavam milhares de pessoas. No Brasil, por exemplo, a vacinação foi responsável por erradicar a varíola e a poliomielite. No mundo, a varíola matou mais de 300 milhões de pessoas. A OMS estima que mais de 1,5 milhão de mortes na infância tenham sido evitadas com a vacinação contra pólio.