Nicarágua: quem é Daniel Ortega, presidente que virou personagem da campanha eleitoral no Brasil
A Nicarágua se tornou um tema em destaque nas redes sociais brasileiras nos últimos dias, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PL), membros do seu partido e alguns de seus apoiadores associaram o governo autoritário de Daniel Ortega e casos de perseguição religiosa no país à campanha do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Em evento com religiosos e fiéis evangélicos em Juiz de Fora (MG) na terça-feira (16/8), Bolsonaro afirmou que Ortega é “aliado” do petista e vem perseguindo cristãos na Nicarágua. O presidente ainda se referiu a Lula como “descondenado”.
“Estamos acompanhando o que acontece em outros países da América do Sul, como a Nicarágua, onde rádios católicas foram fechadas, procissões impedidas”, disse.
Nesta quinta-feira (18/8), o filho do presidente e senador Flávio Bolsonaro (PL) compartilhou em seu perfil no Twitter uma postagem que também fazia menção ao país sul-americano. “Um aviso aos católicos e evangélicos: Na Nicarágua, o amigo de Lula, anda prendendo padre e fechando igrejas! Vigia!”, escreveu.
Em sua página no Twitter, Lula afirmou que pretende tratar “todas as religiões com respeito”. “Religião é para cuidar da fé, não para fazer política. Eu faço campanha eleitoral respeitando religião, e não uso o nome de Deus em vão”, escreveu.
Essas não foram as primeiras vezes em que Bolsonaro e seus aliados usaram a administração de Daniel Ortega como exemplo de esquerda não democrática.
As menções ao governo do ex-revolucionário sandinista têm sido cada vez mais presentes entre apoiadores da campanha do atual presidente para atacar adversários.
Mas, afinal, quem é Ortega e qual seu papel na atual onda de repressão na Nicarágua?
O líder mais antigo das Américas
De baixa estatura e com grandes óculos quadrados, Daniel Ortega não se parecia com um típico militar quando chamou a atenção do mundo pela primeira vez na década de 1980.
No entanto, como líder da revolução sandinista de esquerda da Nicarágua, foi creditado por derrubar um ditador e depois os rebeldes patrocinados pelos EUA, que tentaram bloquear sua empreitada por um poder legítimo.
Agora em 2022, quatro décadas depois, Ortega foi empossado para seu quarto mandato consecutivo como presidente após vencer as eleições em novembro do ano passado.
O processo eleitoral foi duramente criticado pela comunidade internacional, que o classificou como “antidemocrático”, “ilegítimo” e “sem credibilidade”. Mais de 30 líderes da oposição foram presos, incluindo sete candidatos presidenciais que não puderam concorrer.
Terminado o atual mandato, Ortega soma 20 anos consecutivos no poder. Se contarmos outros mandatos, ele já ocupou a cadeira de presidente da Nicarágua por um total de 29 anos e é o líder mais antigo das Américas.
Para seus apoiadores, ele continua sendo um verdadeiro patriota. Eles o chamam de Comandante Daniel, em um misto de reverência e carinho.
Seus críticos, que incluem muitos ex-aliados, dizem que ele se tornou um governante corrupto e autoritário, que deu as costas a seus ideais revolucionários e está cada vez mais parecido com o ditador que ajudou a depor.
Juventude revolucionária
Filho de um sapateiro, Ortega ainda era adolescente quando ingressou na Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), de esquerda.
O grupo lutou contra a ditadura de Anastasio Somoza, cuja família governava o país desde 1936.
Na década de 1960, o jovem abandonou o curso de direito para se comprometer totalmente com a causa. Quando ainda estava na casa dos 20 anos, ele assaltou uma agência bancária na capital, Manágua, com uma metralhadora, em uma tentativa de arrecadar fundos. Ele foi preso e severamente torturado durante sete anos na prisão.
Em 1974, ele conseguiu a libertação antecipada — junto com outros sandinistas — em uma troca de reféns. O acordo previa seu envio para Cuba e ele usou a oportunidade para se especializar em táticas de guerrilha e depois voltou para sua terra natal, onde a revolta liderada por camponeses estava prestes a se transformar em uma guerra civil em grande escala.
Os sandinistas tomaram o poder em 1979, forçando o presidente Somoza ao exílio. Ortega foi eleito seu sucessor em 1984, depois de servir no conselho de “reconstrução nacional” de cinco membros dos sandinistas.
A maioria dos observadores internacionais reconheceu a eleição de 1984 como livre e justa, apesar das reclamações da oposição.
No entanto, o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, classificou o pleito como uma “farsa” e intensificou seu apoio a grupos armados contrarrevolucionários conhecidos como Contras.
Isso aconteceu no auge da Guerra Fria, quando Washington via os sandinistas como uma frente do comunismo soviético e cubano, e uma ameaça aos governos apoiados pelos EUA em toda a América Central.
Dezenas de milhares de nicaraguenses morreram na guerra dos Contras e a Corte Internacional de Justiça (CIJ) mais tarde decidiu que os EUA violaram o direito internacional em sua intervenção.
A primeira queda
Apesar de ter conquistado ganhos importantes, principalmente em saúde, educação e reforma agrária, o primeiro governo sandinista foi criticado por seus fracassos econômicos.
O impacto da guerra com os Contras e as sanções dos EUA tornaram impossível a reconstrução econômica.
Nas eleições presidenciais de 1990, Ortega foi derrotado pela candidata liberal da oposição Violeta Chamorro, uma ex-colaboradora que rompeu com os sandinistas cada vez mais radicais e que formalmente encerrou a guerra.
Uma combinação de acusações de corrupção e divisões profundas dentro do movimento sandinista levaram Ortega a sofrer mais duas derrotas eleitorais em 1995 e 2001.
Entre as duas campanhas, sua enteada Zoilamérica Narváez o acusou de estuprá-la repetidamente quando criança.
Ortega negou e evitou o julgamento invocando sua imunidade como membro do Congresso. Sua esposa Rosario Murillo -— uma poetisa que ele conheceu na prisão — o apoiou, dizendo que as acusações de sua filha eram “vergonhosas”.
As reputações pessoais de Ortega e Murillo foram duramente prejudicadas pelo escândalo.
A transformação
Em 2006, Ortega fez um retorno inesperado para a campanha presidencial das eleições daquele ano ao se afastar de suas fortes raízes comunistas, dizendo que buscaria investimentos estrangeiros para aliviar a pobreza generalizada — a Forbes classifica a Nicarágua como o segundo país mais pobre do hemisfério ocidental.
Em uma campanha planejada por sua esposa, as bandeiras sandinistas pretas e vermelhas foram amplamente substituídas por cartazes de campanha cor-de-rosa; o uniforme militar verde-oliva foi trocado por camisas brancas sem gola, e os slogans marxistas foram trocados por um vago compromisso com “cristianismo, socialismo e solidariedade”.
“Jesus Cristo é meu herói agora”, disse ele, em uma tentativa de diálogo com a população mais religiosa.
Dias antes de ser eleito, ele provocou ainda mais controvérsia ao indicar que não seria contra uma proibição total do aborto. A atitude recebeu elogios de líderes católicos e evangélicos, mas enfureceu eleitores liberais e grupos de direitos humanos.
Avanços antidemocráticos
Em 2009, a Suprema Corte da Nicarágua removeu os obstáculos constitucionais para permitir que Ortega concorresse a mais um mandato — uma medida que a oposição condenou como ilegal.
Outras mudanças constitucionais foram feitas para permitir que ele concorresse a um terceiro mandato consecutivo em 2016.
Muitos boicotaram a votação, dizendo que era injusta, já que a oposição havia sido anulada. No entanto, Ortega insistiu que as mudanças eram necessárias para a estabilidade do país.
Ele escolheu sua esposa como sua companheira de chapa em 2016. Como vice-presidente, Murillo é a mais eloquente do casal, muitas vezes fazendo longos discursos na televisão.
A revolta de 2018
Em abril de 2018, grupos pró-governo reprimiram violentamente uma pequena manifestação contra as reformas do sistema previdenciário da Nicarágua.
O clamor entre os críticos de Ortega fez com que o movimento se transformasse em um pedido popular por sua renúncia.
À medida que a violência continuava, um estudante universitário ganhou destaque por chamar Ortega de assassino em um debate televisionado.
Em julho, grupos de direitos humanos disseram que o número de pessoas mortas na violência relacionada aos protestos ultrapassou 300.
Ortega resistiu aos apelos para renunciar ou convocar eleições. Murillo atribuiu a crise a “uma invasão de espíritos malignos que querem que o mal reine na Nicarágua”.
Perseguição religiosa
Mais recentemente, multiplicaram-se as acusações de perseguição contra a Igreja Católica no país.
A tensão entre o governo de Daniel Ortega e a instituição cresceu desde que o clero forneceu abrigo a estudantes envolvidos nos protestos de 2018.
Segundo uma pesquisa enviada à Ajuda à Igreja que Sofre (ACN, na sigla em inglês) e publicada em julho, a Igreja Católica na Nicarágua sofreu mais de 190 ataques e profanações em menos de quatro anos.
Em 2019, o bispo auxiliar de Manágua, Silvio Báez, deixou o país após receber várias ameaças de morte.
Em março deste ano, o governo expulsou o Núncio Apostólico — o equivalente da Igreja Católica a um embaixador — em um movimento que o Vaticano classificou como uma “medida unilateral injustificada”.
Em julho, freiras Missionárias da Caridade de Santa Teresa, uma ordem fundada pela Madre Teresa de Calcutá, foram obrigadas a deixar o país depois que sua organização foi considerada ilegal.
Além disso, segundo a agência de notícias oficial do Vaticano, o bispo da Diocese de Matagalpa (norte do país), Dom Álvarez, e seis sacerdotes, estão desde 4 de agosto impedidos de deixar o bispado onde vivem, que está cercado por forças especiais da polícia.
O próprio presidente Ortega acusou o clero católico de ser “golpista” e os chamou de “demônios de batina”.
A presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirmou ter enviado uma carta ao presidente da Conferência Episcopal de Nicarágua, dom Carlos Enrique Herrera Gutiérrez, para expressar sua solidariedade com a atual situação da Igreja Católica no país.