Nikolai Fyodorov, ‘o Sócrates de Moscou’ que promoveu a corrida espacial soviética
Benjamin Ramm
Em 28 de dezembro de 1903, durante um inverno russo particularmente rigoroso, um homem pobre morreu de pneumonia dentro de um baú que havia alugado em um quarto abarrotado de moradores de rua.
Nikolai Fyodorov (1829-1903) perdeu a vida ali, no escuro, e mais de um século depois permanece quase desconhecido no Ocidente.
Ainda assim, ele foi celebrado por escritores famosos como Léon Tolstói (1828-1910) e Fiodor Dostoiévski (1821-1881), e por um dedicado grupo de discípulos, alguns dos quais fomentaram a corrida espacial da União Soviética.
Agora, assim como o próprio profetizou, Fyodorov vive um reconhecimento após a morte.
Ele se tornou um ícone para os transumanistas ao redor do mundo e um guia espiritual para a exploração interplanetária.
A pobreza de Fyodorov se devia mais a uma escolha religiosa do que a uma necessidade material.
Era filho ilegítimo do príncipe Pavel Gagarin e passou a primeira infância na propriedade da família, até a morte de seu pai e do avô, príncipe Ivan Gagarin.
Enquanto a família de Fyodorov não tinha ligação com o primeiro cosmonauta russo Yuri Gagarin, uma porta-voz do Museu-Biblioteca de Fyodorov em Moscou, Anastasia Gacheva, diz que há “uma coincidência simbólica importante: entre o Gagarin que previu o voo espacial de forma filosófica, e o Yuri Gagarin que se tornou o primeiro cosmonauta do mundo.”
Uma vida ascética
Fyodorov vivia um estilo de vida ascético, sustentado apenas por pão, chá e água, mas em um ambiente intelectual estimulante.
Como bibliotecário do Museu Rumyantsev, localizado em frente ao Kremlin, foi anfitrião de um salão intelectual informal e era conhecido pelos devotos como “o Sócrates de Moscou”.
Dostoiévski ficou maravilhado com “aquele grande pensador”.
“Suas ideias me cativaram: quando as leio e entendo o que significam, sinto que são completamente parte de mim, que estão perto do meu coração, que poderiam ser minhas”, escreveu ele.
O escritor passou horas discutindo as teorias de Fyodorov com o filósofo Vladimir Solovyov, que via Fyodorov como uma figura semelhante a Cristo.
Já o também escritor Tolstói descreveu a visão de mundo de Fyodorov em uma carta a um amigo:
“Ele elaborou um plano para uma tarefa comum para a humanidade, cujo objetivo é a ressurreição corporal de todos os humanos”, escreveu ele.
“Em primeiro lugar, não é tão louco quanto parece (não se preocupe, eu não compartilho e nunca compartilhei suas opiniões, mas eu as entendi bem o suficiente para me sentir capaz de defendê-las contra quaisquer outras crenças de natureza material semelhante).”
“Em segundo lugar, e mais importante, devido a essas crenças, ele leva a vida cristã mais pura… Ele tem 60 anos, é pobre, dá tudo o que tem, está sempre alegre e calmo”, acrescentou.
Resistência à guerra
Tolstoi e Fyodorov compartilhavam um credo semelhante, impulsionado pela feroz resistência à guerra.
Fyodorov lamentou que, enquanto os pobres permaneciam à mercê de secas e inundações, as universidades não passavam de “quintais de fábricas e quartéis do exército, isto é, a serviço do industrialismo e do militarismo”.
Os dois homens desejavam desviar as energias destrutivas da guerra para a renovação ecológica (“Uma civilização que explode, mas não se restaura, não pode ter outro resultado senão a aproximação de seu próprio fim”, escreveu Fyodorov).
Como Tolstói, ele se opôs à ideia dos livros como propriedade privada.
Quando suas poucas obras escritas foram compiladas para publicação póstuma, elas foram acompanhadas por um adesivo que dizia: “Não está à venda”.
Formação
A filosofia de Fyodorov surgiu a partir de um momento decisivo em sua vida: a morte de seu pai e do avô paterno e a subsequente partida de sua família de seu idílio rural.
Todos os seus esforços intelectuais podem ser entendidos como uma tentativa de reparar essa ruptura, de restaurar e recuperar um Éden perdido.
Sua filosofia da Tarefa Comum (também conhecida como filosofia da Ressureição Física) prevê um mundo em que cada geração ressuscitará seus ancestrais mortos (devemos dar à luz a pais, escreveu ele, em vez de filhos).
Mas isso logo superpovoaria o mundo, por isso é imperativo que alcancemos o espaço para nos estabelecermos em novas estrelas, onde os ressuscitados possam viver em harmonia.
Porém, quanto mais nos aventuramos, mais precisaremos reviver (“Toda matéria é o pó dos ancestrais”, dizia ele), então a única solução é o prolongamento radical da vida: a morte da própria morte.
O discípulo
Apesar de seu foco nos ancestrais perdidos, o legado de Fyodorov inspirou novas gerações.
Seu discípulo mais brilhante, Konstantin Tsiolkovsky, também foi definido por um evento traumático na infância.
Aos 10 anos, Tsiolkovsky contraiu escarlatina e ficou quase completamente surdo: foi proibido de entrar nas escolas, então por três anos estudou em Rumyantsev sob a orientação de Fyodorov.
Lá, ficou fascinado com a colonização do espaço. Passou a acreditar que isso libertaria a humanidade e levaria ao aperfeiçoamento da espécie.
Isolado pela natureza, Tsiolkovsky passou a maior parte de sua vida em uma cabana de madeira remota, onde se dedicou ao “eterno bem-estar de cada átomo”.
Seu trabalho mais importante, Exploração do espaço sideral por meio de dispositivos de foguete (1903), foi pioneiro na teoria astronáutica, demonstrando pela primeira vez que o voo espacial poderia ser movido por motores.
Ele esboçou projetos para foguetes, estações espaciais e eclusas de ar para evacuação e sistemas biológicos de circuito fechado para fornecer alimento e oxigênio às colônias espaciais, tudo o que mais tarde inspiraria os engenheiros soviéticos.
“A humanidade não permanecerá na Terra para sempre”, previu. “A busca por luz e espaço a levará a penetrar nos limites da atmosfera, primeiro timidamente, depois conquistando todo o Sistema Solar.”
O “cosmismo”
Os seguidores de Fyodorov, incluindo Tsiolkovsky e Solovyov, estão associados a um movimento intelectual chamado “Cosmismo”, que teve um impacto significativo na filosofia, teologia, ciência e artes visuais, tanto na Rússia pré-revolucionária quanto no período soviético.
Embora relutantes com o cristianismo ortodoxo de Fyodorov, os soviéticos de alto escalão admiravam sua crítica ao consumismo – os “brinquedos” que desviam nossa atenção e imaginação – e sua ênfase na salvação coletiva (“não para si ou para os outros, mas com todos e para todos”, escreveu Fyodorov).
Cem anos atrás, no auge da Guerra Civil Russa (1917-1922), um grupo levou as ambições de Fyodorov a níveis estratosféricos.
Os biocosmo-imortalistas, anunciando sua separação dos anarquistas-universalistas, denunciaram a morte como “logicamente absurda, eticamente inaceitável e esteticamente feia”.
Eles defenderam a liberação galáctica do Estado, pediram o estabelecimento urgente da comunicação cósmica e fizeram duas demandas “básicas”: liberdade de movimento no espaço interplanetário; e o direito de viver para sempre.
O autor do Manifiesto Biocosmista de 1921, Alexander Svyatogor, acompanhou Fyodorov para definir dois tipos de morte: decadência corporal e morte espiritual, que ele chamou de “morte em vida”.
Fyodorov identificou isso com a perda de personalidade e identidade distintas, enquanto Svyatogor aplicou-o ao capitalismo, argumentando que a morte está na “monstruosa propriedade privada”, que não pode ser eliminada em um mundo mortal.
Svyatogor também adotou a ideia de Fyodorov de transformar o planeta em uma “nave terrestre” gigante, de modo que, em vez de continuarmos como passageiros ociosos ao redor da órbita do Sol, nos tornemos “a tripulação de nossa nave celestial”. Para os cosmistas, a questão não é entender a natureza, mas mudá-la.
O legado
Em 1922, o fundador do capítulo de Biocosmistas em Petrogrado, Alexander Yaroslavsky, escreveu um poema de 14 páginas em louvor à “anabiose”, o processo de suspensão criogênica usado dois anos depois para preservar o corpo de Lenin (quando a refrigeração não teve sucesso, seu cadáver foi embalsamado).
Durante os primeiros anos da União Soviética, Lenin tolerou os cosmistas, mas eles logo foram censurados por seu sucessor.
Stalin era hostil às raízes religiosas de sua perspectiva científica, e muitos haviam apoiado publicamente seu rival, Trotsky.
A grande maioria dos cosmistas foi presa ou enviada para campos de trabalho (como Svyatogor, que desapareceu na Sibéria), e todas as suas obras foram suprimidas.
Após a morte de Stalin, os soviéticos voltaram ao espaço, bem a tempo de conter os esforços americanos para colocar os satélites em órbita.
Sergei Korolev, o projetista-chefe dos foguetes Sputnik 1 e Vostok 1 de Gagarin, foi profundamente influenciado por Tsiolkovsky.
Após o encontro, um jovem Korolev escreveu: “Saí de casa com um único pensamento: construir foguetes e voar neles. De agora em diante, tenho um objetivo na vida: chegar às estrelas.”
Korolev supervisionou o design e a construção do Sputnik 1 em apenas um mês – ele foi lançado em 4 de outubro de 1957.
Renascimento
Com a queda da União Soviética, os cosmistas foram capazes de restabelecer a ligação entre religião e ciência.
Anya Bernstein, professora de Antropologia da Universidade de Harvard (Estados Unidos) e autora de O Futuro da Imortalidade: Refazendo a Vida e a Morte na Rússia Contemporânea, diz que os cosmistas do século 21 “adoram” Gagarin por seu papel em tornar a visão “profética” de Fyodorov.
Ao deixar este corpo mortal, cumprimos a missão de Deus, escreveu Fyodorov, e “a palavra divina torna-se nossa ação divina”.
Com o tempo, nos tornamos a mente cósmica do próprio universo, um conceito chamado “noosfera” desenvolvido por Vladimir Vernadsky, um contemporâneo de Tsiolkovsky.
Com a queda da União Soviética, os cosmistas conseguiram restabelecer a ligação entre religião e ciência.
Hoje, a Rússia fica atrás apenas dos Estados Unidos na adoção de procedimentos criogênicos, diz Bernstein.
No entanto, o movimento imortalista russo faz uma distinção clara do transumanismo americano, cuja ênfase é secular e geralmente mais libertária.
(Alguns de seus proponentes mais radicais, longe de imaginar o fim do capitalismo, sonham em estender infinitamente a produtividade de seus trabalhadores.)
Na Rússia, em contraste, os criogênicos começaram preservando seus pais e avós, refletindo a ênfase de Fyodorov no parentesco.
Alguns seguidores de Fyodorov até se opõem inteiramente a esse processo, alegando que é seletivo: a visão de Fyodorov era de salvação universal (“uma união de seres imortais”), não uma divisão entre os ricos escolhidos e os pobres condenados.
No entanto, um retrato de Fyodorov é encontrado ao lado de um de Arthur C Clarke na Igreja da Vida Perpétua em Hollywood, Flórida.
Agora, muitos pensadores futuristas americanos reconhecem sua dívida para com Fyodorov.