Nova lei de combate ao assédio nos estádios do Rio foi elaborada com participação de torcedoras

Por Jamille Bullé*

Quem frequenta partidas de futebol sabe: o assédio ao público feminino ainda é uma triste realidade nos estádios brasileiros. As mulheres, por sua vez, estão lutando para que esse comportamento não seja mais naturalizado nos jogos. No Rio de Janeiro, agora é lei a campanha permanente de combate ao assédio e a violência sexual nas arenas fluminenses. E o melhor: com a ajuda de torcedoras que contribuíram com casos, referências e sugestões para a elaboração do projeto.

O projeto de lei número 984/2019, de autoria da deputada estadual Dani Monteiro (PSOL-RJ), sancionado na última quinta pelo governador Wilson Witzel, prevê a realização de campanhas educativas que serão divulgadas no telão e nos alto falantes nos intervalos.

Aprovada, a lei 8743 também prevê a divulgação de políticas públicas voltadas para o atendimento das vítimas, treinamento de funcionários sobre o tema e a disponibilização das câmeras das arenas para reconhecimento e identificação de infratores, contribuindo para a efetivação da denúncia junto aos órgãos de segurança.

Torcedoras distribuem adesivos que incentivam a presença feminina nos estádios — Foto: Emanuelle RibeiroTorcedoras distribuem adesivos que incentivam a presença feminina nos estádios — Foto: Emanuelle Ribeiro

Torcedoras distribuem adesivos que incentivam a presença feminina nos estádios — Foto: Emanuelle Ribeiro

A elaboração do projeto contou com mulheres de arquibancada, que foram convocadas para ajudarem com a experiência que têm dentro dos estádios. Integrante do coletivo Vascaínas contra o assédio, que contribuiu com o PL, Júlia Moreira destaca a importância do envolvimento de torcedoras no debate – afinal de contas, são elas que vivenciam essa realidade.

– Demos o nosso ponto de vista, discutimos a eficácia do projeto. Nós da arquibancada temos mais vivência, então era preciso que a equipe e a deputada entendessem o que passamos, como é o nosso dia a dia, para que o projeto seja realmente acolhedor para as mulheres que frequentam esses espaços – afirmou ao GloboEsporte.com.

Torcedoras de Flamengo e Fluminense  — Foto: André DurãoTorcedoras de Flamengo e Fluminense  — Foto: André Durão

Torcedoras de Flamengo e Fluminense — Foto: André Durão

Torcedora do Botafogo, Karollayne Campos também participou das discussões para a elaboração do projeto. Ela conta que já esteve em diversas situações de machismo e assédio que classificou como “veladas”.

– Aquele que é por baixo do pano, aquele sussurro, de forma indireta ou na “brincadeira”. E dessa forma é mais difícil de sinalizar, porque muitas vezes é banalizado e minimizado até mesmo por mulheres, que obviamente não têm culpa, já que o machismo está instalado na nossa sociedade de forma que um “gostosa” se tornou um elogio e não uma falta de respeito – conta.

Assim como destacou Karollayne, a definição de assédio ainda não é clara para todas as pessoas, mas há punições previstas na lei.

Toques sem autorização, cantadas ofensivas e “passada” de mão são considerados contravenção penal, sem previsão de prisão, apenas pagamento de multa. Quando há violência envolvida, passa a ser enquadrado como estupro, com pena de seis a 10 anos de prisão, caso não haja o chamado agravante. Os xingamentos entram na categoria da injúria, por ofender a honra, a dignidade e humilhar a vítima, podendo haver prisão ou pagamento de multa.

Torcedora do Flamengo concentrada na partida — Foto: Divulgação/FlamengoTorcedora do Flamengo concentrada na partida — Foto: Divulgação/Flamengo

Torcedora do Flamengo concentrada na partida — Foto: Divulgação/Flamengo

Outra participante dos debates para a elaboração do projeto foi Amanda Marques. A rubro-negra diz que as torcedoras ainda sofrem muito pela condição de ser mulher e frequentar lugares que ainda são vistos socialmente como masculinos, mas destaca a importância da presença de mulheres empoderadas e que lutem pelo seu espaço dentro das torcidas e nas arquibancadas.

– Elas seguem sendo um exemplo de resistência, e essa uma forma de trazer cada vez mais mulheres para dentro dos estádios. Antes, acredito que muitas mulheres tinham medo de tirar suas blusas, de torcer da maneira que queriam, e esse movimento trouxe a coragem e a liberdade de ser o que somos de verdade. Ter outras mulheres ao lado nos traz uma sensação de segurança, visto que todas estão ali em prol do mesmo objetivo, que é apoiar, torcer e cantar pelo seu time.

Júlia conta que muitas torcedoras passaram a procurar o grupo para ir aos jogos e se sentiram mais seguras com a companhia das vascaínas do coletivo. Para a jovem de 22 anos, acolhimento promovido por essas mulheres faz com que a presença de torcedoras nos estádios esteja em uma crescente.

– Vejo relatos de meninas que se sentem mais seguras indo aos jogos, mulheres que nos procuram querendo ir ao jogo, procurando companhia, porque antes não tinham coragem de ir, mas agora querem por se sentirem acolhidas.

“Assim como em todas as esferas da sociedade, eu vejo um avanço. As mulheres ocupando mais esses espaços dos estádios. Elas têm se imposto mais, dizendo ‘aqui é o nosso lugar e é onde vamos ficar’, e não tolerado mais certos tipos de comportamento. O assédio sempre existiu, mas muitas mulheres acabavam aceitando para não entrar em conflito ou para evitar confusão. Hoje estamos mais conscientes e ativas.”

Torcedora-mirim do Fluminense na partida contra o Goiás — Foto: Nelson Perez / DivulgaçãoTorcedora-mirim do Fluminense na partida contra o Goiás — Foto: Nelson Perez / Divulgação

Torcedora-mirim do Fluminense na partida contra o Goiás — Foto: Nelson Perez / Divulgação

Em contato com o GloboEsporte.com, a Secretaria de Esporte, Lazer e Juventude do Rio de Janeiro afirmou que a campanha ainda não seria implementada na rodada deste fim de semana do Campeonato Carioca porque está em desenvolvimento. O órgão não deu um prazo para que ela entre em vigor.

No entanto, o duelo entre Flamengo e Botafogo, no último sábado, no Maracanã, contou com ações de combate ao assédio promovidas pelo Rubro-Negro. Antes de a bola rolar, uma mensagem educativa foi exibida no telão do estádio, pedindo um minuto de silêncio pelas vítimas do feminicídio.

Além disso, foram exibidos avisos para que torcedoras vítimas de assédio no Maracanã procurem policiais, seguranças ou brigadistas e peçam para serem levadas ao espaço de acolhimento da mulher – a ação tem caráter permanente.

AÇÕES DE INICIATIVA DAS TORCEDORAS

A onda de empoderamento feminino também no universo futebolístico não se restringe apenas ao campo das ideias. O grupo “Vascaínas contra o assédio”reuniões para planejamento de campanhas presenciais, além de rodas de conversa. A primeira ação do coletivo foi o “machistômetro”, uma espécie de termômetro do machismo (entenda melhor na imagem abaixo).

Veja o "machistômetro" que foi divulgada pelo "Vascaínas contra o Assédio" no ano passado — Foto: ReproduçãoVeja o "machistômetro" que foi divulgada pelo "Vascaínas contra o Assédio" no ano passado — Foto: Reprodução

Veja o “machistômetro” que foi divulgada pelo “Vascaínas contra o Assédio” no ano passado — Foto: Reprodução

Na última quinta, o grupo levou uma faixa para a partida entre Vasco e ABC, pela Copa do Brasil, escrito “#deixaelatorcer”, além de um manifesto publicado nas redes sociais.

“Deixa ela torcer. Mas não só hoje. Não só porque há uma faixa no jogo. Deixa ela torcer todos os dias. Não só no mês do Dia Internacional da Mulher. Deixa ela torcer quando quiser. Quando o time estiver mal e ela quiser xingar… Sem repressões. Quando sai um gol e ela quer comemorar… Sem que lhe beijem ou agarrem forçadamente. Deixa ela torcer sem duvidar do amor dela pelo futebol. Sem tentar diminuir a presença dela nos estádios. Deixa ela livre. Deixa ela sair de casa com a roupa que quiser, ir para o jogo, beber sua cerveja, assistir seu time e voltar pra casa em paz… Sem medo. É pelo direito de torcer – e de viver.”

Outra ação recente veio de um grupo de torcedoras do Flamengo e Botafogo, que se uniram para a distribuição de adesivos de incentivo à presença feminina nos estádios antes do clássico do último sábado.

Torcedoras distribuíram adesivos no clássico carioca — Foto: Emanuelle RibeiroTorcedoras distribuíram adesivos no clássico carioca — Foto: Emanuelle Ribeiro

Torcedoras distribuíram adesivos no clássico carioca — Foto: Emanuelle Ribeiro

– A partir do momento que a gente começa a ver movimentos se organizando na arquibancada para falar sobre os direitos das mulheres de torcer ou de trabalhar nos estádios, a gente começa a ver mulheres mais conscientes, porque os assédios sempre existiram, mas a partir do momento que não toleramos e aceitamos mais, aí é que começa a mudança, porque começamos a falar, cobrar. Esses movimentos contribuem para que as mulheres continuem buscando mais os seus direitos – finaliza a vascaína Júlia.

A Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência – telefone 180 – recebe denúncias de assédio e violência contra a mulher. A central funciona 24h e garante o anonimato. Além disso, também é possível usar o canal para fazer reclamações sobre os serviços da rede de atendimento à mulher e receber orientações sobre seus direitos da população feminina e sobre a legislação.

*Colaborou Emanuelle Ribeiro.

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