‘Núcleo do demônio’: como era a 3ª bomba atômica que os EUA planejavam lançar contra o Japão
Carlos Serrano
Nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, os Estados Unidos lançaram as duas únicas bombas nucleares já usadas em uma guerra, nas cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão.
Juntas, elas causaram os ataques mais mortais que já ocorreram, nos quais cerca de 200 mil pessoas foram mortas.
Da perspectiva dos Estados Unidos, o objetivo era pressionar a rendição do Japão e encerrar a Segunda Guerra Mundial.
E, caso não bastassem, Washington praticamente tinha uma terceira bomba atômica pronta.
O apelido dela era Rufus, e consistia em um núcleo de plutônio, semelhante ao usado na bomba Fat Man — detonada sobre Nagasaki.
A Rufus nunca se converteu em uma bomba funcional, mas causou dois acidentes fatais, razão pela qual a bomba ficou marcada na história como “o núcleo do demônio”.
“Era essencialmente igual ao núcleo da Fat Man”, disse Alex Wellerstein, historiador especializado em armas nucleares e autor do blog Nuclear Secrecy, à BBC Mundo.
Isso significa que ela poderia ter se tornado uma bomba capaz de gerar uma explosão de cerca de 20 quilotons, como aconteceu em Nagasaki.
De acordo com as comunicações oficiais dos Estados Unidos, citadas em um artigo de Wellerstein, a bomba Rufus deveria estar pronta para ser lançada no dia 17 ou 18 de agosto de 1945.
Nos primeiros dias de agosto de 1945, não estava claro se duas bombas atômicas seriam suficientes para fazer o Japão se render, explica Wellerstein.
Só depois de sua rendição, no dia 15 de agosto, “ficou claro que duas bombas haviam sido ‘suficientes’, senão demais”, diz o especialista.
Portanto, no final, não foi necessário usar a Rufus.
“O que aconteceu entre os dias 15 e 21 de agosto? Não sei”, escreve Wellerstein. Mas o que está documentado é que, a partir de 21 de agosto, pesquisadores do Laboratório de Los Alamos, no Novo México, onde as bombas atômicas foram desenvolvidas, começaram a usar esse núcleo de plutônio para experimentos extremamente perigosos.
Cócegas em um dragão
Em 1945, os únicos núcleos de plutônio já feitos foram Rufus, Fat Man e o da bomba Gadget, que foi usada no teste Trinity, o primeiro de explosão nuclear conduzido pelos Estados Unidos.
Em Los Alamos, os pesquisadores queriam descobrir qual era o ponto limite no qual o plutônio se tornava supercrítico — isto é, eles queriam saber qual era o ponto em que uma reação em cadeia do plutônio desencadeava uma explosão mortal de radiação.
A ideia era encontrar maneiras mais eficientes de fazer um núcleo chegar ao estado supercrítico e otimizar a carga da bomba.
Manipular um núcleo de plutônio é uma manobra extremamente delicada. É por isso que os pesquisadores se referiram a esses exercícios como “fazer cócegas na cauda de um dragão”.
“Eles sabiam que, se tivessem o azar de acordar a besta furiosa, acabariam queimados”, escreveu o jornalista Peter Dockrill em um artigo no portal Science Alert.
Segundo Wellerstein, quem participou desses experimentos tinha consciência do risco, mas o fez porque era uma forma de obter dados valiosos.
Momentos letais
A primeira vítima do Rufus foi o físico americano Harry Daghlian, na época com 24 anos.
Daghlian tinha trabalhado no Projeto Manhattan, no qual os Estados Unidos desenvolveram suas primeiras bombas nucleares.
Em 21 de agosto de 1945, Daghlian começou a construir uma pilha de blocos de carboneto de tungstênio ao redor da Rufus.
A ideia dele era ver se ele poderia criar um “refletor de nêutrons” no qual os nêutrons lançados pelo núcleo ricocheteariam e, assim, o levariam com mais eficiência ao ponto crítico.
Era noite e Daghlian estava trabalhando sozinho, violando os protocolos de segurança, conforme documentado pelo portal da Atomic Heritage Foundation.
O jovem cientista já havia empilhado vários blocos, mas quando estava terminando de colocar o último, seu dispositivo de monitoramento lhe disse que isso poderia fazer com que o núcleo se tornasse supercrítico.
Era como arriscar a vida em uma jenga mortal.
Ele manobrou para remover o bloco, mas infelizmente o deixou cair no núcleo, que entrou em um estado supercrítico e gerou uma explosão de nêutrons.
Além disso, a reação dele foi destruir a torre de blocos, expondo-o a uma dose adicional de radiação gama.
Essas ações foram letais.
Durante 25 dias, Daghlian suportou o doloroso envenenamento radioativo até finalmente morrer no hospital. Estima-se que ele recebeu uma dose de 510 rem de radiação iônica.
O rem é a unidade de medida da radiação absorvida por uma pessoa. Em média, 500 rem são fatais para um ser humano.
“Isso é tudo”
Apenas nove meses depois, o dragão atacou novamente.
Em 21 de maio de 1946, o físico americano Louis Stolin estava testando um experimento que já havia feito várias vezes.
Na época, Stolin era o maior especialista mundial no manuseio de quantidades perigosas de plutônio, de acordo com Wellerstein.
Junto a um grupo de colegas, ele estava mostrando como levar um núcleo de plutônio — Rufus, neste caso — ao ponto supercrítico.
O exercício consistia em unir duas metades de uma esfera de berílio, formando uma cúpula na qual os nêutrons saltavam em direção ao núcleo.
A chave para não causar um desastre era evitar que as duas meias esferas cobrissem totalmente o núcleo.
Para fazer isso, Stolin usou uma chave de fenda como separador que servia como válvula de escape para os nêutrons. Dessa forma, ele poderia registrar como a fissão aumentava, sem que a reação em cadeia atingisse o ponto crítico.
Tudo estava indo bem, mas aconteceu a única coisa que não poderia ter acontecido.
A chave de fenda de Stolin escorregou e a cúpula se fechou completamente.
Foi apenas um instante, mas o suficiente para o núcleo atingir o ponto crítico e liberar uma corrente de nêutrons que produziu um intenso brilho azul.
“O flash azul foi claramente visível em toda a sala, embora ela fosse bem iluminada”, escreveu Raemer Schreiber, um dos físicos que assistiram ao experimento.
“O flash não durou mais do que alguns décimos de segundo.”
Stolin reagiu rapidamente e descobriu a cúpula, mas era tarde demais: ele havia recebido uma dose letal de radiação.
Nove meses antes, ele mesmo havia acompanhado seu colega Daghlian durante seus últimos dias de vida, e estava claro para ele que um destino semelhante o aguardava.
“Bem, isso é tudo”, foram as primeiras palavras que ele disse, completamente resignado, depois que sua chave de fenda escorregou, como Schreiber relembra em seu relatório, citado por Dockrill na Science Alert.
As estimativas indicam que Stolin recebeu 2.100 rem de nêutrons, raios gama e raios-x no corpo dele.
A agonia dele durou nove dias.
Durante esse período, ele sofreu náuseas, dores abdominais, perda de peso e “confusão mental”, conforme descrito por Wellerstein em uma reportagem na revista The New Yorker.
Ele morreu aos 35 anos, no mesmo quarto de hospital onde seu colega Daghlian tinha morrido.
Ironicamente, observa Wellerstein, Stolin estava fazendo o procedimento para que seus colegas aprendessem a técnica caso ele não estivesse presente.
O fim da maldição
Os acidentes de Daghlian e Stolin serviram para fortalecer as medidas de segurança em procedimentos envolvendo material radioativo.
A partir de então, esses tipos de exercícios passaram a ser manobrados remotamente, a uma distância de cerca de 200 metros entre as pessoas e o material radioativo.
“Essas mortes ajudaram a criar uma nova era de medidas de saúde e segurança”, diz o site da Atomic Heritage Foundation.
De acordo com os arquivos de Los Alamos, o “núcleo do demônio” foi derretido no verão de 1946 e usado para fazer uma nova arma.
“Na verdade, o núcleo do demônio não era demoníaco”, diz Dockrill.
“Se há uma presença do mal aqui, não é o núcleo, mas o fato de que os humanos correram para fabricar essas armas terríveis”, diz o jornalista.