O anjo bom que a Bahia apagou da memória: conheça Maria de Lima das Mercês
Maria de Lima das Mercês, a protetora dos órfãos, viveu em Salvador entre 1800 e 1864 (Foto: Acervo Hermann Kummler/Reprodução) |
O Dia Internacional da Mulher está chegando, e muitas delas — da minha mãe à sua amiga falsiane — serão justa e dignamente homenageadas daqui a pouco. Apesar disso, aposto que ninguém vai se incomodar se eu queimar a largada para apresentar (e saudar) uma verdadeira heroína da Bahia, que no século 19 antecipava facetas de outra baiana que seria reconhecida santa, no século 21.
E pior que usar o termo “apresentar” nem é força de expressão, porque tenho quase certeza que você nunca ouviu falar de Maria de Lima das Mercês. Ao menos não até este mês, quando começou a viralizar, no dia 3, um texto que traz breve perfil da professora, ex-escravizada, que dedicou sua vida para acolher e educar crianças que viviam nas ruas da velha São Salvador, entre 1820 a 1864. As obras sociais desse anjo bom são, simplesmente, ignoradas — embora nos anos corridos de sua graça, até gente da Família Real tenha reconhecido os serviços prestados.
No post intitulado “Uma Esquecida Protetora dos Órfãos de Salvador”, que aparece em perfis gerenciados por Daniel Jorge Marques Filho, professor e mestre em História pela UFRJ, surge a descrição da “mulher negra alforriada, de origem humilde, (que) dedicou sua vida à proteção e educação das crianças de rua da Capital da Bahia”.
Conta o professor, com quem tentei contato (sem sucesso), que ela era conhecida pelo povo como a “Virtuosa Maria de Lima das Mercês”, pois “sacrificou sua vida humilde pela caridade de quem era ainda mais miserável.” Ele cita ainda uma publicação que a descrevia (em português antigo) dessa forma:
“Maria recebia inúmeras crianças, aquellas, a rir, a brincar despreoccupadas, olhar limpido como a sua consciencia, ou languido pela febre, das urgentes necessidades, que conduzem a mais das vezes á podridão do vicio e do vicio á cadeia e de lá aos prezidios”.
Trata-se de trecho do livro ‘Mulheres Illustres do Brazil’, lançado em 1899, e que tem como autora a também baiana Ignez Sabino. Na obra, ela perfila várias personagens importantes da história do país até então — inclusive outras conterrâneas que tiveram merecidos reconhecimentos, como Maria Quitéria e Ana Nery.
Ignez Sabino quase não fora contemporânea de Maria de Lima das Mercês [que nasceu e morreu dentro do período da escravidão no país, só abolida em 1888], mas não fosse a luta dessa poetisa e biógrafa pelos direitos das mulheres, a história da filantropa ignorada estaria completamente apagada.
Parceiros
No livro de Ignez, Maria das Mercês é descrita ainda como uma educadora de mão cheia e mãe postiça muitíssimo bem quista. “Os pequeninos achavam nella os melindres do amor materno. Pois não era ella mulher. Desse punhado de orphãas que gratas a sua protectora, cobriam de affagos a quem soube educar homens para o trabalho e mulheres honestas para o exercicio util da vida pratica”.
Capa do (único?) livro que registra feitos de Maria das Mercês. No Repositório da Ufba não há nenhuma menção ao nome dela. Sobre Irmã Dulce, há citações em 6,8 mil trabalhos (Foto: Reprodução) |
Assim como a Santa Dulce dos Pobres, que buscou um espaço para abrigar os desvalidos — no caso, o galinheiro do Convento Santo Antônio, onde praticamente nasceu a OSID —, Maria das Mercês também brigou por um espaço para receber os desamparados. “Os magníficos predios, os terrenos devolutos, alguns dos quaes pertenciam ao Mosteiro de S. Bento, tão rico, com fazendas e propriedades, em quanto ella invejava um cantinho d’aquellas terras para nellas fundar um modesto asylo em proveito da infancia desvalida”.
O desejo se realizaria com a providencial ajuda do padre Francisco Gomes de Souza, de quem ficou amiga. “Ambos principiaram a agir. Á final, á custa de muitos sacrificios. (…) Foi um dia de festa para o seu espirito, o da inauguração da Casa dos Desprotegidos da Sorte, cuja direcçào inteira, era sua, somente sua”.
Além do padre bróder, Maria também lutou e conseguiu apoios — assim como Dulce — das mais altas instâncias governamentais. Em 1859, por exemplo, recebeu o tão esperado auxílio financeiro da imperatriz Teresa Cristina, durante uma sua visita a Salvador. Maria ganharia um ordenado até a morte, em 1864 — dinheiro esse que era também usado para a filantropia.
Correção
O texto do professor da UFRJ, que viralizou, tem um erro em relação a esse ‘cargo’ que Maria das Mercês ocupou. Consta lá que ela “dirigiu entre 1827 até o ano de sua morte o Colégio Sagrado Coração de Jesus, nas dependências da Santa Casa de Misericórdia”, o que foi corrigido pela assessoria da Santa Casa.
Segundo Rosana Souza, coordenadora do Centro de Memória Jorge Calmon, arquivo histórico da Santa Casa da Bahia, não há o conhecimento de nenhum abrigo para crianças administrado por Maria das Mercês na instituição. “Antes da compra da Pupileira, a Santa Casa mantinha as crianças nas dependências do Hospital de Caridade, do Recolhimento de Mulheres ou em educação externa, não havendo condições e nem espaço físico para abrigar outro tipo de asilo fundado por terceiros”.
A confusão deve ter ocorrido porque a Associação São Vicente de Paula foi quem vendeu o prédio da Pupileira para a Santa Casa, em 1852. Com a morte de Maria das Mercês, o abrigo ficou aos cuidados, justamente, daquela que é hoje chamada de Congregação Filhas da Caridade de São Vicente de Paula. Não consegui o contato de ninguém da congregação para tratar do assunto.
Apagamento e violência
O texto de Ignez termina citando a “ingratidão humana” que tornou Maria das Mercês “esquecida”. “Nem ao menos o seu retrato ficou, para que a posteridade venerasse-lhe a memoria. Ella era uma alma ignorada, dessas que se encontram semeando os beneficios, porem recebendo os espinhos cruentos do olvido [esquecimento]”, finaliza a autora sobre a conterrânea.
Na verdade, essa parte do retrato também acabou sendo corrigida depois. No livro ‘Ethnographic portraits of Indigenous women of Pernambuco and Bahia 1861-1862’, o suíço Hermann Kummler publicou um registro de Maria das Mercês, em 1862, ao lado de uma aluna. Há um ar de santidade quase natural na imagem.
Natural não é, no entanto, o que aconteceu com sua memória, segundo a professora Denise Santos, mestra em História e especialista em História da Cultura Africana e Afro-brasileira.
“A narrativa dominante, umas das características da colonialidade, tem suas raízes em atingir, nos âmbitos físico e mental, violentamente as populações negras. Essa narrativa invisibiliza, ridiculariza, despreza e desumaniza a história de mulheres e homens que tiveram contribuições significativas ao nosso país”, pontua.
“Infelizmente é o que aconteceu com Maria de Lima das Mercês que teve a sua história massacrada pela visão colonizadora eurocêntrica, racista, misógina e patriarcal”, reforça a especialista, ao defender a necessidade de “ouvir, pesquisar e ler sobre as histórias das populações negras, sobretudo das mulheres, já que além de enfrentar o racismo, historicamente enfrentam também a barreira de gênero, inferiorizando-as.”