No fim de um beco sem saída tranquilo no nordeste de Berlim, Michael Friedrichs-Friedländer me leva rapidamente para sua garagem. Ele lança um olhar para a rua, como se estivesse checando se eu estava sozinha.
“Peço que você não mencione a localização exata”, disse ele. “Todos os vizinhos sabem o que faço, mas não quero problemas.”
Lá dentro, a garagem cheira a cimento fresco, café e cigarros. Há uma porta dos fundos aberta para um jardim que deixa entrar o sol do fim da tarde. Um grande mapa da Alemanha está preso à parede oposta. No canto, há uma bancada de trabalho simples, onde Friedrichs-Friedländer deixou um martelo, um conjunto de carimbos de metal e uma folha de papel com uma série de nomes, datas e a palavra “Auschwitz”.
Nos últimos 14 anos, Friedrichs-Friedländer gravou, à mão, os destinos de vítimas do Holocausto em pequenas placas conhecidas como Stolpersteine, ou “pedras de tropeço”. Cada placa é formada por um quadrado de latão de 10 cm fixado sobre um cubo de concreto, que é instalado diretamente na calçada diante da última residência conhecida da pessoa.
Atualmente, existem mais de 70 mil destas homenagens em todo o mundo, abrangendo 20 idiomas diferentes. Elas podem ser encontradas em mais de 2 mil cidades em 24 países, incluindo Argentina, Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Hungria, Holanda, Rússia, Eslovênia e Ucrânia. Juntas, estas pedras constituem o maior memorial descentralizado do Holocausto no mundo.
‘Uma vítima, uma pedra’
Mesmo com todo este escopo internacional, as stolpersteine são altamente individualizadas. O lema do projeto é “uma vítima, uma pedra”, referindo-se a um ensinamento no Talmud, o livro da lei judaica, que “uma pessoa só é esquecida quando seu nome é esquecido”.
A inscrição de cada placa começa com “aqui viveu” no idioma local, seguida pelo nome da pessoa, sua data de nascimento e destino. Para alguns, isso significou o exílio em outro país. Para outros, o suicídio. Para a grande maioria, a deportação e a morte.
O projeto começou em 1992, quando o artista Gunter Demnig, da cidade alemã de Colônia, colocou pela primeira vez placas neste formato para ciganos vítimas do Holocausto. Ele chamou as placas de “pedra de tropeço” como uma metáfora. “Você não vai cair”, disse ele recentemente à emissora americana CNN. “Mas, se você tropeçar, você deve se curvar com sua cabeça e seu coração.”
Para Demnig, o local escolhido para as pedras – diretamente em frente à última casa conhecida da vítima – é fundamental para o impacto do memorial. “Quando as pessoas veem que o horror começou em sua cidade, seu bairro, talvez até mesmo na casa em que estão vivendo, tudo se torna bem real”, disse ele em uma entrevista à emissora alemã Deutsche Welle.
Em 2005, o projeto Stolpersteine havia se expandido tanto que Demnig não podia mais fabricar e instalar cada placa. Foi quando ele pediu a Friedrichs-Friedländer para assumir a produção.
“Eu soube em questão de minutos que poderíamos trabalhar juntos”, disse Friedrichs-Friedländer. “Para mim, é a forma mais impactante de um memorial do Holocausto que se pode ter. Você resgata estes nomes.”
Confecção das placas é um trabalho traumático
Friedrichs-Friedländer é um homem corpulento e de fala mansa que se move tranquilamente, com propósito e de forma metódica em sua garagem, que não é aberta ao público.
Ele trabalha sozinho, em silêncio, seis dias e pelo menos 50 horas por semana. Enquanto se senta para um rápido intervalo para o café, ele esfrega os olhos vermelhos. São quase 16h e ele ainda não almoçou. “Preciso do sangue no meu cérebro”, disse ele, “não no meu estômago.”
Friedrichs-Friedländer grava cada placa à mão – carimbo por carimbo, letra por letra, destino após destino. Embora haja agora uma lista de espera de nove meses pelas stolpersteine, ele rejeita veementemente a mecanização do processo. “Assim que você traz um elemento mecanizado, o processo se torna anônimo”, disse ele.
Até hoje, Friedrichs-Friedländer gravou mais de 63 mil stolpersteine em mais de 20 idiomas. O trabalho é frequentemente traumático.
Seus olhos lacrimejam enquanto ele descreve um conjunto de 34 pedras para um antigo orfanato judeu em Hamburgo, na Alemanha. As crianças tinham entre 1 e 6 anos de idade. “Com os mais novos, isso é particularmente difícil”, disse ele.
Por mais que as placas sirvam para celebrar vidas, as stolpersteine também revelam a mecânica maligna da deportação. Múltiplas pedras em frente ao mesmo edifício mostra como a Gestapo, a polícia secreta do regime nazista, retornou à mesma casa várias vezes, separando vizinhos e familiares, enviados para locais diferentes.
“Fiz pedras para famílias com 20 membros”, disse Friedrichs-Friedländer, “todos enviados em direções diferentes, deportados em dias diferentes”.
Mas quando as stolpersteine são colocadas diante de um prédio, “as famílias são reunidas novamente”, explicou ele, em frente à casa que compartilhavam.
Cerimônias de instalação reaproximam vizinhos e familiares das vítimas
O projeto Stolpersteine também promove relações entre os moradores atuais de um prédio ou uma rua. A maioria das pedras são pesquisadas e financiadas por iniciativa de uma vizinhança.
Dietmar Schewe, diretor de escola aposentado de Berlim, coordenou recentemente a instalação de um conjunto de pedras com seus vizinhos. “Foi realmente a primeira vez que nosso prédio parecia ser uma comunidade”, disse ele.
Da mesma forma, as pedras podem reunir os membros sobreviventes da família da vítima. Aqueles que realizam a pesquisa necessária para produzir as stolpersteine devem entrar em contato com o maior número possível de parentes da vítima – tanto para assegurar sua aprovação quanto para convidá-los para a cerimônia de instalação das pedras.
Schewe recebeu 25 visitantes de Israel na cerimônia de stolpersteine em frente a seu prédio.
“Foi muito harmonioso e emocionante”, disse ele. “Conseguimos mostrar aos nossos visitantes exatamente em qual apartamento os membros da família deles viveram. Foi um encontro breve e importante com o lugar em que seus parentes viveram.”
Friedrichs-Friedländer me conta sobre outra cerimônia de instalação em Colônia, onde 34 parentes se reuniram vindos de diferentes países. “As pessoas descobriram parentes que nunca souberam que tinham”, disse ele.
Escolas incorporaram projeto ao currículo
Tal é o poder do Stolpersteine que várias escolas no mundo de língua alemã incorporaram o projeto em seu currículo, com os alunos se reunindo em grupos para pesquisar as vítimas locais do Holocausto.
É outra motivação importante para Friedrichs-Friedländer, que descreve sua própria juventude na Alemanha como uma série de perguntas não respondidas. “Professores, pais… Ninguém queria falar nada. Era como se o Terceiro Reich nunca tivesse acontecido.”
Quando a noite cai do lado de fora, Friedrichs-Friedländer acende a luz da garagem, lançando um brilho suave sobre uma pilha de pedras prontas para serem entregues em bairros de Berlim. Suas inscrições recém-estampadas são como telegramas intocados, cada um contendo detalhes de uma vida roubada ou desfeita.
Em breve, o Friedrichs-Friedländer trancará a garagem para passear e comprar mantimentos e jantar com a família. Ele se esforça para não levar seu trabalho para casa, mas isso pode ser difícil.
“Há dias terríveis, quando tudo o que consigo fazer é chorar”, disse ele. Mas o objetivo das stolpersteine é a humanidade por trás delas – a conexão emocional que eles exigem com a vida e o destino de cada vítima.
“É preciso estar presente. É preciso sofrer”, continuou Friedrichs-Friedländer. “Se eu me acostumar com o trabalho, se algum dia se tornar rotineiro, vou parar.”