POR FILIPPO PITANGA*
“Este momento que estamos passando é um roteiro clichê e ruim. Tudo já foi feito várias vezes. São péssimos vilões. São caricatos. Porque é tanto ódio e sem justificativa, e tantas pessoas com atitudes ridículas, que se você coloca num roteiro que alguém faria um protesto para não usar máscara, ou que não quer vacina, o roteirista seria esculhambado”
A edição corrente de aniversário do 10º CineFantasy – International Fantasy Film Festival, que está acontecendo de 07 a 20 de setembro na plataforma online do Petra Belas Artes à La Carte, trouxe uma retrospectiva completa dos longas-metragens do casal de maior representatividade no cinema de gênero e de terror: o cineasta Rodrigo Aragão e a atriz e produtora executiva Mayra Alarcón. Para celebrar a homenagem e a reprise do novo filme na plataforma este domingo, trouxemos uma entrevista completa e exclusiva com a dupla.
Como foi ver a estreia do filme “O Cemitério das Almas Perdidas” no 10º CineFantasy tão aclamada, tanto no drive-in quanto no online, que ocorreu justo no dia 07 de setembro?
Rodrigo Aragão: Depois de tantos anos sonhando com este filme, pensando em poder assistir isso com o público numa grande tela de cinema, eu acho que é o meu filme mais bem acabado, foi feito para uma sala de cinema, e é um filme de 2020 em que o mundo está de cabeça para baixo e temos outro momento que as pessoas não vão ver na sala de cinema e ao mesmo tempo é um momento que leva a gente pra internet e abre o leque de poder ver no país inteiro. Uma experiência nova, diferente, e no dia 07 de setembro, em que este filme fecha um ciclo na minha filmografia, e acho que este é um momento muito necessário. Eu faço cinema pelos filmes que eu vi na minha juventude, e eu faço cinema fantástico para as pessoas poderem sair um pouquinho da nossa realidade. E eu acho que neste momento poder ver um filme fantástico brasileiro, com cenas de ação, e principalmente de ver um povo nativo, indígenas, negros, mestiços, artistas dando porrada em colonizadores que são falsos profetas também, eu acho que é algo divertido e que as pessoas estão precisando dessa catarse.
Mayra Alarcón: Combina bem com o dia da independência, né?
Como foi viabilizar esse projeto, desde a concepção até o financiamento? E as parcerias capixabas?
MA: Até chegar no Cemitério teve 5 longas antes… E “O Cemitério das Almas Perdidas” é um sonho que está escrito desde 2002. Lançamos os quatro primeiros longas sem nenhum tipo de incentivo (“Mangue Negro”; “A Noite dos Chupacabras”; “Mar Negro”; “As Fábulas Negras”), com ajuda do nosso produtor executivo Hermann Pidner, e depois disso a gente começou na época de “As Fábulas Negras”, ou um pouco antes, a flertar com as leis de incentivo do nosso estado, da Secretaria de Cultura, a gente ganhou dois editais para fazer um Festival de Cinema, uma Mostra de terror na praia. E aí nos sentimos mais seguros de apresentar um longa, o “Fábulas Negras”, que não passou. Mas uma outra produtora capixaba, Finórdia, se apaixonou também pelo projeto, se tornou coprodutora e nos ensinou o caminho das pedras do Fundo Setorial Audiovisual. E aí conseguimos na época o Prodecine 5 e produzimos “A Mata Negra”. Com “O Cemitério das Almas Perdidas” a gente apresentou também um projeto na Secretaria de Audiovisual aqui do Espírito Santo de desenvolvimento de roteiro, e desenvolvemos o projeto para apresentar à Ancine, ao Fundo Setorial e à Secretaria de Cultura. Acabou que ganhamos os dois editais: o de Secretaria do Estado em conjunto com os Arranjos Regionais e o Prodecine 1 do Fundo Setorial. Foi a primeira vez que um filme capixaba ganhou o Prodecine 1. Ficamos muito felizes, conseguimos os 2 milhões de reais e fizemos este filme.
RA: Uma coisa que acho importante acrescentar é que no Brasil não se costuma fazer esse tipo de filme. O cinema do Espírito Santo ainda não é uma grande indústria como o de Rio e São Paulo. E pra fazer um filme tão diferente, nós começamos do princípio, na formação de profissionais. Então, a gente deu oficinas de efeitos especiais e maquiagem, pegamos pessoas da construção civil e demos oficinas de cenografia, ensinamos a trabalhar com isopor, pintura de envelhecimento… Então, um filme que deixa um legado, além de ter movimentado a economia da cidade, foram quase 200 profissionais que trabalharam neste filme ao longo desses anos… Acho que se alguém for fazer um filme nessa linha hoje, o Espírito Santo é um bom lugar por ter um leque de profissionais preparados.
Vocês respiram história, tanto do povo, de diversidade, mas também uma história de cinema. Mas temos certa ingratidão de políticas públicas em relação à memória, vide a Cinemateca brasileira. O quanto está presente no projeto que vocês concebem essa história de cinema?
RA: Meu alicerce cinematográfico está ali nos anos 80… Como todo cineasta que faz cinema fantástico contém uma criança interna que sobreviveu. Eu pude ver todos estes filmes que me impressionaram muito, como “Caça-Fantasmas”, “Star Wars”, “Um Lobisomem Americano em Londres”, “A Noite do Arrepio”… E, além disso, eu tive a referência de ser um cara que mora no interior do Brasil, numa aldeia de pescadores, conhecendo muitas histórias interessantes. E sempre me incomodou essas duas pontas nunca se encontrarem, que é a terra onde eu vivo e o tipo de cinema que eu gosto, porque o cinema que eu gosto sempre acontecia nos EUA ou na Europa, locais que as casas são diferentes, e a cara das pessoas também… Eu sempre brinco que todas as coisas divertidas acontecem em NY: Cai meteoro, vem alienígena, monstro gigante ataca… Nada divertido vem pro lado de cá. Meu alicerce de fazer cinema é isso: fazer um tipo de cinema que eu amo com o cenário que eu conheço com esse Brasil. E eu penso…tem uma coisa muito bacana que o Sergio Leone fala de cinema de gênero que o western dele no caso é o envelope muito bonito, e ele coloca as mensagens ali dentro. Se o cinema for só a mensagem pela mensagem muitas vezes você não consegue chegar na população que acha o filme chato. Então, é muito importante você divertir as pessoas e fazer se reconhecer no filme e ao seu imaginário popular, e ali dentro tem uma sementinha pra ligar pontinhos e divertir um pouquinho. Não é por ser fantasia que é vazio.
Como é criar os seus efeitos especiais caseiros/artesanais, que vão desde criaturas fantásticas a transformar o folclore local em fantástico?
RA: No fundo, eu faço filme para fazer esses efeitos. Eu me lembro de “A Mata Negra” que a gente tinha colocado que ia fazer um filme sério, mais mercadológico (“eu me lembro desta parte”, acrescenta Mayra, brincando). E o dia que eu cheguei com o pinto demônio de silicone no set… “Mas não era sério, Rodrigo?”… “Poxa, mas é tão legal, vamos testar”. É legal também esse lado infantil. E em relação aos artistas em cena, sempre damos prioridade a atores capixabas, mas acho o intercâmbio incrível. E pra mim é muito importante que todos numa equipe de um filme fantástico comprem a ideia. Precisa ter uma cumplicidade/afinidade com o gênero, porque trabalhar com efeito especial é muito difícil, é longo, demorado. E tanto o Francisco Gaspar quanto a Clarissa Pinheiro são bons exemplos de artistas que tive a oportunidade de conhecer em eventos fora do Espírito Santo, e eles verbalizarem isso “Se tiver uma oportunidade, eu quero fazer um filme de terror”. E eu sempre falo: é roubada, você vai passar frio, vai receber mal e vai morrer no final do filme. Mas eles dizem que querem, então digo: vem aí.
Por falar em grandes artistas, para além de contar com uma retrospectiva de seus longas anteriores, o 10º CineFantasy está homenageando uma das maiores atrizes do gênero, Gilda Nomacce, e soubemos que houve uma parceria dela contigo recentemente. Como foi?
RA: Bem, eu fui convidado para dirigir um dos contos do episódio da série “Noturnos”, que é capitaneada pelo Marco Dutra, um ícone do terror brasileiro, pro Canal Brasil, e pelo Caetano Gotardo. Um trabalho muito interessante pra mim, a primeira direção no mercado de SP, e tive a grata surpresa de Gilda estar no elenco. Ela é a grande dama do cinema fantástico brasileiro, uma mulher que trabalha tanto em super produções quanto em filmes independentes, de diretores estreantes, uma militante, e uma pessoa extremamente fácil de trabalhar tanto pelo seu talento quanto pelo seu coração. Ela é uma pessoa muito bacana. Eu já era fã dela e passei a ser mais fá ainda depois de ter trabalhado com ela, e espero realmente poder fazer outras produções com ela, pois a mulher é incrível. Merecida essa homenagem.
Voltando a falar do cinema de gênero, vocês começaram abrasileirando o cinema de zumbi, um tema político. Como foi adaptá-lo para o mangue, algo tão brasileiro, e como esse primeiro contato ditou uma assinatura como linguagem na carreira?
RA: Eu sempre fui fã de zumbi, principalmente o dos anos 80 e 90. “Fome Animal” e “A Volta dos Mortos-Vivos” são meus favoritos. Hoje é um gênero muito desgastado. Para fazer algum sentido hoje tem que ter algo diferente. E o que eu posso oferecer de mais original, é ser o mais brasileiro e regional possível, porque isso ninguém fez. O manguezal sempre foi um cenário que me encantou desde a minha infância, sempre pensei em fazer um filme de terror lá, e sempre me intrigou por que as pessoas não faziam mais filmes lá se ele é tão grandioso. Quando você vai filmar lá você descobre por que as pessoas não filmam mais… É terrível filmar lá. É um lugar muito inóspito, principalmente para o equipamento. Mas eu gostaria de um dia poder voltar ao Manguezal e mostrar aquilo em ultra HD, já que o “Mangue Negro” foi um filme muito precário… E gostaria de mostrar aquilo para que as pessoas tivessem uma noção de o quão grandioso e lindo aquilo é.
MA: Ampliando a fala de Rodrigo, aproveitando que os zumbis podem ser políticos, no “Mangue Negro” tem uma fala muito importante do protagonista que ele observa que tudo ao redor está apodrecendo… E a partir deste filme fomos apelidados por um tempo de “terror ecológico”, porque seria a partir da degradação do manguezal que surgiriam os zumbis. O eco-terror. O cenário que a gente filmou não existem mais. Pra mim foi uma grande descoberta porque quando comecei a trabalhar no filme, e conheci o Rodrigo, eu morava no Brasil há apenas uns 6 meses, e eu não sabia o que era manguezal ou que sequer existia. Eu fui conhecer cheio de zumbi (“tratamento de choque”), e eu era a única mulher no set na produção. Meu trabalho era ser produtora do set e era tudo cheio de água e lama até a cintura literalmente e não tinha banheiro nem nada. (“Por isso que eu casei”, acrescentou Rodrigo). E foi aí que conheci o mangue e fui entender por que o Rodrigo quis fazer um filme de zumbis ali contando essa história “feia”, digamos, pois fora a grandiosidade do mangue, você vê o esgoto jogado, ou até mesmo sofá que as pessoas não querem mais também jogavam ali… Então, você vê um cenário lindo com esta poluição ridícula.
Num país onde os recursos são escassos ou cassados, limitação é criatividade. Então, como a comunicação entre a direção e a produção já conseguiu gerar novas ideias?
MA: Aqui o diálogo flui fácil. Na verdade, eu sou produtora para facilitar os nossos filmes. O Rodrigo tem sempre uma ideia louca inicial que eu me empolgo e começamos a viajar na maionese juntos. Quando vê, a ideia que era desse tamanho já virou bola gigante e depois disso temos de pegar esse monte de massa de modelar e tornar numa coisa viável. A gente começa com o Rodrigo escrevendo o roteiro e eu vou junto vendo a forma como pode ser viabilizado. Na verdade, como produtora e muito apaixonada pelo cinema que a gente faz, eu sempre falo que o Rodrigo pode escrever tudo o que ele gostaria de ver na tela, e depois, quando chega a hora de ver o quanto esse filme vai custar é que a gente começa a podar. Há produtores que começam a podar antes de o roteiro ser escrito, mas eu acredito que seja melhor deixar a criatividade fluir, porque o trabalho do produtor não é cortar recursos e sim viabilizar um filme, independente “do recurso”. Se você consegue imaginar o filme, imagina como aquilo é possível de ser feito dentro de um orçamento que você tem às vezes 10 mil reais, 100 reais… Você tem que ver do orçamento o que você consegue fazer do roteiro. Às vezes têm cenas que caem. Às vezes tem coisas que são modificadas. O Rodrigo já quis explodir uma represa (“não deu certo”, brinca ele)…
RA: Mas tem uma coisa interessante aí… Sempre que dou oficina de produção falo disso: eu sempre me concentrei muito no que é possível, desde adolescente sempre quis muito fazer. Sempre projetei minha criatividade pra algo possível, menos no “O Cemitério…”, porque foi escrito numa época difícil da minha vida, aquele Teatro Mausoléu que tínhamos estava fechando, uma época complicada, e eu escrevi essa história como uma válvula, um sonho. Algo como uma terapia pra mim naquela época, e ficou na gaveta por muito tempo. Mas eu sempre tive o acordo de fazer este filme, tanto que o último plano do “Mangue Negro” tem o cemiteriozinho lá em cima, feito com argila e palito de fósforo. Quando entramos no projeto de desenvolvimento que tiro o roteiro da gaveta e aí começou essa coisa de dizer: o que era possível no mundo real de fazer? Aí começamos a peneirar quais cenas eram possíveis. Foi um processo de descoberta também, pois sempre achava esse roteiro impossível de ser feito.
MA: E foi muito legal, porque as primeiras ideias a gente ia viajar e chegou a procurar cemitérios e igrejas pensando em locações, até ter uma ideia de alugar um galpão e construir os cenários. E isso fez possível muitas cenas antes impossíveis, porque ia ser preciso estar no cemitério, entrar numa catacumba, cena de luta… e pensávamos antes “será que alguém vai deixar a gente filmar dentro de um cemitério? Até que no “A Mata Negra” a gente construiu um cemitério e isso mostrou ao Rodrigo a necessidade de construir um pro novo filme e quando viu que precisava de um estúdio, nossa vida mudou totalmente.
O quanto o seu processo criativo vem do sonho enquanto escreve?
RA: Engraçado, porque esta semana me veio um curta-metragem através de um sonho. (“E eu estou doida pra fazer”, diz Mayra, “já até coloquei título”). Eu sonho acordado e dormindo. Você vira uma máquina ali e às ceninhas vêm ou não. Uma cena aqui, uma imagem ali…eu uso bastante. Essa pesquisa em cima do Cemitério eu passei mais de uma década visitando em toda cidade que eu ia, e deviam pensar que esse cara é meio doido… (“A primeira vez que viajamos para apresenta-lo aos meus pais a gente foi ao Cemitério”, Mayra se diverte). Era a vontade de ver ângulos etc… O Cemitério de Buenos Aires a gente foi várias vezes. E chegamos à conclusão de que não seria nenhum, que eu deveria pegar um pouquinho de nada e construir esta fantasia. A gente começou a pesquisar aldeias e povos indígenas, momentos históricos, toda uma pesquisa pra descobrir que o mais legal que podíamos fazer era a fantasia. Descobrir que é um Brasil com um link na realidade, mas era um mundo imaginário, e isso dava uma liberdade muito interessante.
Por falar nisso, se puder nos deslumbrar dando exemplos de criatividade que já usou e até chegou a lhe surpreender?
RA: Eu já dei mais de 100 oficinas pelo país de efeitos especiais. Muito orgulhoso de passar por muitos profissionais que foram meus alunos, outros que foram alunos de alunos. Eu sempre falo isso: o brasileiro lida com o nível hard, o mercado é mais difícil, a gente não tem acesso ao material correto, quando sim, o material é 20 vezes mais caro pra gente e recebemos 30 vezes menos que um profissional do exterior. Trabalhamos com o modo difícil. Nas minhas oficinas eu ensino isso aí: fazer maquiagem com trigo, gelatina, algodão e cola… Se você aprende com isso, quando seu cachê melhorar você vai poder comprar o mais caro e vai tirar de letra. O que você não pode fazer é aprender com o caro e achar que só se faz desta maneira. Tem várias alternativas. E acho que na criação de histórias, de cinema é uma coisa parecida. Muita gente me manda roteiro, me manda sinopse, fala que tem interesse… Eu digo pra tentar direcionar a sua criatividade, olha o que você tem à sua volta. Se vai usar amigos como atores, tenta criar personagens que tenha características e conhecimentos parecidos. Veja o que tem de bonito no seu bairro, na sua cidade. Saia do quarto…não faça o filme com a parede branca no fundo. Isso tudo vai deixar o filme muito maior do que ele é, mais interessante e bonito. Utilizar o que se tem.
Como foi trabalhar em “Fábulas Negras” com o Zé do Caixão, que se foi logo neste ano cataclísmico de 2020? O filme com a famosa cena do vaso sanitário…
RA: Vou lhe dizer que aquele é o banheiro da minha casa…(risos)
MA: Aquele dia foi inesquecível de muitas maneiras. Dois motivos: tinha gosma até no teto, nas frestinhas que não consegue enxergar, e era pra ser um filme sério (risos). Ele mais uma vez driblou essa diretora dizendo que ia ser um filme comercial…até chegar o dia daquela cena. Mas isso foi em 2014, já nem sofro mais. Quando fala que o filme vai ser comercial eu falo: “tudo bem, pode botar aquela cena cheia de sangue, vai ser divertido”.
RA: Sobre Mojica (Zé do Caixão), eu tive muita sorte. Meu primeiro filme foi lançado em 2008, mesmo ano que Mojica lançou seu último longa, “A Encarnação do Demônio”, então o primeiro Festival que a gente foi, ele já estava lá, e ele sempre foi uma aula de humildade, acessibilidade, cordial, extremamente generoso. Nos encontramos em vários Festivais, e confesso que “Fábulas Negras” era um projeto muito barato, precário, e eu não tinha coragem de chamar ele pra dirigir, mas eu queria que ele fizesse alguma participação, ou apresentar talvez… Mas quando falei pra ele que tinha um projeto sobre o Saci, ele falou que adorava e sempre quis fazer um filme sobre o Saci, e aí ofereci a ele o episódio que eu ia dirigir e foi uma aula! Uma das coisas que mais me orgulho na vida é isso, ter colocado ele na cadeira de diretor uma última vez. Porém, ao mesmo tempo que é um pouco triste pensar que essa lenda viva do cinema estava pela última vez fazendo um filme tão precário, ele se divertiu horrores, adorou o set pequenino. Diz ele que lembrou muito o começo de carreira dele, apesar de a tecnologia ser diferente. Era nítido o quanto a energia do set alimentava ele e acho que ele saiu mais jovem. Ele chegou e eu entendi o que era um mestre. Eu entendi que Mojica dirigia no tom da “Ação!”. Quando era uma cena mais de suspense, pro ator andar mais devargazinho, ele recitava baixinho: “Atenção, câmera e….açãoooooo” (bem suave). E o ator vai no ritmo do “Ação!” dele. Quando era uma cena de mais impacto, ele falava um “Ação!” mais urgente, e o ator já ia no embalo… Ele era um maestro mesmo, ele regia. Foi muito empolgante pra gente, nunca vi uma equipe tão feliz. Tem uma cena em que eu, Joel Caetano e Marcelo Castanheira (diretor de fotografia) estavam diante do cenário que fizeram, uma casa bem pequena, com vários problemas, e fizeram debate de 15 minutos (Mayra diz que foram uns 30 minutos) e acharam um enquadramento perfeito. Aí vem Mojica com o cafezinho dele, todo tranquilo, e aponta que a câmera tinha de estar justamente no lugar que eles demoraram tanto pra deliberar (eles quase choraram de emoção).
MA: Eu era total assistente do Mojica. O Joel era assistente de direção e eu era assistente do próprio. Tinha que cuidar de tudo que precisasse, e ele me chamava de “princesa”. E, por exemplo, pro set ficar calado não era o Joel quem tinha de fazer isso, era eu, inclusive conversar com os atores, as atrizes principalmente, que ele tinha mais cuidado.
Como muitas coisas no terror, muitas vezes o antagonismo está por trás da vilania, então, como mostrar aquilo que não se vê? E os novos tempos de corona invisível, vão inspirar novas histórias?
RA: Cada filme é um desafio diferente. No caso do Mojica, do Saci, ele assumiu isso pra ele, e estava super aberto às novas possibilidades. Foi raro na carreira dele criaturas. Ele teve ótimos trabalhos de maquiagem, especialmente nos primeiros trabalhos. Mas ter tido um boneco pra trabalhar, no caso do Saci, foi uma experiência diferente pra ele também. Já no caso da pandemia, eu falo que é um roteiro ruim. Este momento que estamos passando é um roteiro clichê e ruim. Tudo já foi feito várias vezes. (“E as pessoas do governo são péssimos vilões”). São caricatos. Se você coloca isso em qualquer roteiro, é um roteiro ruim, porque é tanto ódio e sem justificativa, e tantas pessoas com atitudes ridículas, que se você coloca num roteiro que alguém faria um protesto para não usar máscara, ou que não quer vacina, o roteirista seria esculhambado…
MA: Ou um filme de pandemia onde a única coisa que você não pode fazer é ir pra rua e está todo mundo na rua.
RA: Estou louco para que esse momento acabe e não quero escrever sobre ele. Quero que isso passe e acho que as pessoas não vão querer ouvir falar disso mais… Quero fazer outros monstros de mentira. É a minha vontade.
Qual seria a mensagem para quem está fazendo ou consumindo cinema sobre a linguagem de gênero e a criatividade que a precariedade pode trazer?
RA: Pro cinema de um país ser importante tem que ter todos os gêneros, e o cinema fantástico e de terror não são gêneros menores, não são gêneros de bordas. Ele é a grande coisa do cinema, de poder extrapolar a nossa realidade. Essa é pra mim a grande beleza do cinema. Das 10 maiores bilheterias do mundo, 8 são de cinema fantástico e é muito interessante podermos trabalhar com o que temos na mão. A gente fala: George Lucas em “Star Wars” já usou cotonetes pra fazer multidões ou barbeador para fazer comunicadores espaciais, isso tendo centenas de milhões de dólares disponíveis. A criatividade, o reciclar não é algo menor, ele te engrandece. Então, pegue sua câmera, pegue suas ideias, e faça um filme divertido, porque estamos precisando de filmes divertidos.
MA: Se abrace, abrace aquilo que você ame, que você gosta, que você não gosta, e abrace a sua precariedade também para poder a partir dela criar.
Assista à entrevista na íntegra em vídeo aqui.
*Filippo Pitanga é jornalista e advogado, crítico, curador e professor de cinema