O chocante caso de canibalismo ‘profetizado’ por livro de Edgar Allan Poe
Um dos primeiros escritores americanos de contos, Edgar Allan Poe é considerado o inventor do gênero ficção policial. Também foi pioneiro em tentar ganhar a vida exclusivamente por meio da escrita e, por isso, passou por sérias dificuldades financeiras.
Suas histórias versam sobre o mistério e o macabro, mas existem poucos capítulos tão arrepiantes quanto os de A Narrativa de Arthur Gordon Pym, seu único romance completo.
Publicado em 1838, o livro traz inúmeras referências marítimas, como naufrágios, motins e navios-fantasmas repletos de cadáveres. A obra também fala sobre o canibalismo — e é isso que a torna especial.
O personagem central da história de Poe é um homem que, 50 anos depois na vida real, acabaria se tornando um náufrago e — exatamente como havia sido descrito no livro — comido por seus companheiros que sobreviveram.
O romance se parece a um livro de memórias, no qual o narrador homônimo Pym descreve uma viagem perigosa. Tudo começa quando, ainda em sua época de estudante, ele se torna amigo de Augustus Barnard, filho do capitão de um navio. As histórias de Augustus sobre o alto mar criam em Pym um desejo irresistível de zarpar.
Augustus ajuda, então, Pym a esconder-se no baleeiro de seu pai, o Grampus. Depois de um motim e uma tempestade monstruosa, Augustus e Pym veem-se no comando do que sobrou da embarcação, acompanhados por apenas dois outros sobreviventes, Dirk Peters e Richard Parker.
Ainda na metade da narrativa, os sobreviventes — que passaram dias se alimentando de restos racionados de uma tartaruga e se tornam quase delirantes de sede — se veem forçados a contemplar o inimaginável: sacrificar um deles para garantir a sobrevivência dos outros.
Segundo reza a tradição do mar, eles fazem um sorteio para determinar a vítima: sobram Pym e Parker e, no final, é Parker quem perde a vida.
Fracasso do livro
Poe ansiava pelo pagamento da obra. Recém-casado com sua noiva menor de idade (que também era sua prima em primeiro grau) e desesperado, ele havia recebido a certeza de sua editora de que seus leitores preferiam obras mais longas.
No entanto, a resposta inicial a seu romance não foi favorável. Alguns críticos se opuseram às passagens de extrema violência, outros às imprecisões náuticas. O próprio Poe finalmente ecoou os críticos, chamando sua obra de “um livro muito bobo”.
Mas, nas décadas que se seguiram, a opinião pública começou a mudar. Júlio Verne, convencionalmente considerado o pai da ficção científica, gostou tanto que publicou uma sequência em 1897, intitulada Mistério Antártico.
Diz-se também que o livro de Poe inspirou Moby Dick e também autores de Henry James a Arthur Conan Doyle. Baudelaire traduziu a obra e o grande escritor argentino de contos Jorge Luis Borges declarou que é simplesmente a maior obra de Poe. E Yann Martel batizou de Richard Parker o tigre de A Vida de Pi.
Paralelo macabro
Isso passou aparentemente despercebido até que um descendente em carne e osso de um homem chamado Richard Parker o trouxe à luz.
Nigel Parker escreveu sobre as notáveis semelhanças entre o trabalho de Poe e o destino de um antepassado seu, morto pelos companheiros após ter sobrevivido a um naufrágio ocorrido após o lançamento do livro.
Nigel contou como seu antepassado foi um dos quatro sobreviventes do naufrágio do barco Mignonette, que comeram uma tartaruga antes de recorrer ao canibalismo – sendo Parker a vítima.
Tudo isso foi relatado em uma carta ao autor e fã de parapsicologia Arthur Koestler, que havia pedido ao público que enviasse histórias de “coincidências impressionantes”. Koestler ficou tão deslumbrado com o paralelo que publicou a carta no jornal The Sunday Times em 1974.
Racionalmente, sabemos que foi apenas uma coincidência assustadora, mas que, ainda assim, captura a imaginação de uma maneira particular.
Há uma nostalgia humana por um tempo em que os contadores de histórias também eram “oráculos”. Além disso, Poe teve outro momento “profético”. Por exemplo, seu conto de 1840, O Homem de Negócios, apresenta um narrador que sobreviveu a um traumatismo craniano na infância e leva uma vida obsessiva interrompida por explosões de violência.
Oito anos depois, o funcionário ferroviário Phineas Gage virou notícia ao aparecer com um grande pedaço de ferro enfiado em seu crânio. Ele sobreviveu, mas sua personalidade mudou radicalmente, dando aos médicos o primeiro vislumbre do papel que o lobo frontal desempenha na cognição social.
O diagnóstico da síndrome do lobo frontal era muito semelhante ao imaginário de Poe. Da mesma forma, seu trabalho final, Eureka, um delirante poema de não ficção dedicado a Alexander von Humboldt, conseguiu antecipar várias teorias e descobertas científicas do século XX, incluindo o Big Bang.
Profecias
Em termos de antecipar o que aconteceria nas próximas décadas, Poe predisse a moderna história de terror, desvendando castelos e masmorras da ficção gótica e deixando seus terrores psicológicos percorrerem o mundo de seus leitores.
É por uma boa razão que Stephen King chama seus colegas de gênero de ” filhos de Poe”, creditando ao autor a escrita do primeiro conto de terror com um sociopata, O Coração Revelador. Poe também avançou no gênero emergente da ficção científica, “enviando” um homem à Lua mais de 30 anos antes de Júlio Verne, e mais de meio século antes de HG Wells.
Em 1926, quando o pioneiro excêntrico Hugo Gernsback tentou definir ficção científica — ou “cientificação”, como ele a apelidou —, citou apenas três escritores: Verne, Wells e Poe. E, é claro, Poe inventou a história de detetive, uma conquista que deu grande fomento à literatura e à televisão.
Em última análise, é a natureza de sua celebridade que parece tão preditiva do mundo em que vivemos hoje. Por ter ficado órfão aos três anos de idade e levado uma existência adulta abreviada e desoladora de pobreza, vício e relativa obscuridade, Poe alcançou fama pós-morte.
O escritor se tornou uma marca enorme. Afinal, que outro autor tem um time de futebol da NFL — o Baltimore Ravens — em homenagem a seu trabalho? Suas obras não apenas continuam a inspirar séries de TV no horário nobre e romances best sellers, mas muitas delas apresentam o próprio autor como personagem. Isso sem falar na série de produtos em sua homenagem, como canecas ou camisetas.
“Previsão é assunto de profetas, clarividentes e futurólogos. Não é da conta de romancistas. O negócio de um romancista é mentir”, escreveu Ursula K. Le Guin. Poe era certamente um narrador talentoso de mentiras na vida e na literatura, mas, como mostra a terrível sina de Richard Parker, ele também tinha um quê de profeta, clarividente e futurólogo.