O enigma de Aspásia, a mulher mais famosa da época de ouro da Grécia, e que conquistou Péricles e Sócrates

Dalia Ventura

'Aspásia no Pnyx', obra de Henry Holiday, 1888
‘Aspásia no Pnyx’, obra de Henry Holiday, 1888

“… Que arte ou poder de encantamento tão grande esta mulher tinha, que lhe permitia cativar, como fez com os maiores estadistas, e brindar os filósofos com a oportunidade de falar tanto dela em termos tão exaltados…”

… se perguntou Plutarco em Vidas Paralelas, coleção biográfica que escreveu no fim do século 1 e início do século 2, sem grandes esperanças de encontrar a resposta, já que tinham se passado séculos desde a morte dessa mulher.

O historiador grego tampouco poderia antecipar que milênios depois continuaríamos a fazer perguntas, ainda mais simples, sobre a mesma personagem, e que ela seria objeto de debate entre seus colegas modernos.

Aspásia de Mileto é um verdadeiro enigma: apesar de ser a mulher mais famosa da Idade de Ouro de Atenas, pouco se pode dizer sobre ela com certeza de que seja verdade.

Não sabemos com precisão quando ela nasceu ou morreu, como se tornou o que era ou quem foi exatamente.

Ainda assim, ao ler o que foi escrito sobre ela, é difícil não chegar à conclusão de que ela era um ser fora do comum, que, mesmo sendo bela, se destacava principalmente por seu intelecto no mesmo ambiente em que personagens como Sócrates e Péricles.

Uma questão difícil de resolver

Sabemos que ela vinha de Mileto, a maior cidade grega da Anatólia até 500 a.C., que se distinguia por suas personalidades literárias e científico-filosóficas como Tales, um dos Sete Sábios da Grécia.

Na época em que Aspásia nasceu, por volta de 470 a.C., Mileto havia se juntado à Liga de Delos dominada pelos atenienses, após confrontos com os persas.

Autorretrato da pintora francesa Marie-Geneviève Bouliard vestida de Aspásia, 1794
Autorretrato da pintora francesa Marie-Geneviève Bouliard vestida de Aspásia, 1794

Tudo parece indicar que Aspásia alcançou um nível de educação atípico para as mulheres da época e que, ao migrar para Atenas em meados do século, abriu uma escola para jovens, que alguns dizem que era um salão intelectual e outros, um bordel.

Talvez fossem ambos, se o que ela estava fazendo era formar outras jovens para se dedicarem ao que alguns estudiosos acreditam que ela própria era: uma hetera.

As heteras eram uma classe de cortesãs profissionais independentes da Grécia antiga que, além de cultivar a beleza física, desenvolveram suas mentes e talentos em um grau muito mais elevado do que era permitido às mulheres em geral.

Aprendiam “as artes da dança, da música, assim como a oratória” ​​e podiam “manter conversas com os principais políticos e aristocratas sobre filosofia, política e assuntos da atualidade”, como explica Sarah Pomeroy, autora do livro Goddesses, Whores, Wives, and Slaves (“Deusas, prostitutas, esposas e escravas”, em tradução livre).

“Tinham acesso à vida intelectual de Atenas, e uma cortesã popular que não era escrava tinha a liberdade de estar com quem ela quisesse.”

E quem chamou sua atenção foi nada menos que Péricles.

A Idade de Péricles

Quando se apaixonaram, Péricles (495-429 a.C.) já dominava a política de Atenas, algo que fez por 30 anos, quando a vida cultural da cidade prosperou, sua democracia se fortaleceu, seu império cresceu, e a Acrópole foi adornada com o Partenon.

Ilustração de Atenas no século 5 da enciclopédia infantil
Péricles foi quem coordenou a construção do Partenon, do Propileu e do Templo de Atena

Mais uma vez, não sabemos se Aspásia foi sua esposa, concubina ou amante, o que parece certo é que ele “a amava ao extremo”.

Foi o que afirmou Plutarco que, embora às vezes retocasse a história porque sua intenção não era ser exato, mas sim exemplificar as virtudes e os vícios dos poderosos, neste caso não tinha razão para fazer isso.

Duas vezes por dia“, contou o historiador, “ao entrar e sair da praça do mercado, ele a cumprimentava com um beijo afetuoso.”

Pode não parecer muito apaixonado, mas essa descrição de afeto é incomum; o amor romântico de Aspásia e Péricles é um dos poucos registrados entre um homem e uma mulher na Atenas clássica.

Fama

Sua relação com o grande estadista teria sido suficiente para torná-la conhecida, mas um indício de que não foi apenas sua beleza ou o amor que a tornou tão famosa é que Aspásia foi alvo de ataques e piadas em peças teatrais por sua suposta influência sobre Péricles.

Os comediantes da Grécia clássica eram críticos da sociedade e — então, como sempre — estar na mira deles era uma honra duvidosa concedida apenas a pessoas relevantes.

Aspásia rodeada por filósofos gregos, como Michel Corneille II a imaginou por volta de 1680
Aspásia rodeada por filósofos gregos, como Michel Corneille II a imaginou por volta de 1680

Em Os Acarnânios, o dramaturgo Aristófanes, por exemplo, culpa Aspásia pela Guerra do Peloponeso, uma reverberação de obras anteriores que a responsabilizavam pelo papel de Atenas na guerra entre Samos e Mileto.

Embora as acusações não fossem justas — em muitos casos, nem pretendiam ser —, elas evidenciam a percepção de que Péricles respeitava a sabedoria e os pontos de vista políticos de Aspásia.

Sua reputação, para o bem e para o mal, era tal que se chegou a dizer que foi ela quem ensinou o grande estadista a discursar e quem escreveu os grandes discursos que ele proferiu, incluindo a famosa oração fúnebre registrada na História da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), de Tucídides.

É impossível provar, mas se foi isso que aconteceu, é tentador imaginar um sorriso nos lábios de Aspásia naquele dia em Atenas durante a cerimônia em homenagem aos mortos, quando seu amante declamou a passagem que dizia…

“Se tenho de falar também das virtudes femininas, dirigindo-me às mulheres agora viúvas, resumirei tudo num breve conselho: será grande a vossa glória se vos mantiverdes fiéis à vossa própria natureza, e grande também será a glória daquelas de quem menos se falar, seja pelas virtudes, seja pelos defeitos.

Péricles proferindo a oração fúnebre
A oração fúnebre proferida por Péricles em 431 a.C. é considerada como um dos maiores discursos de todos os tempos

‘Me refiro a ela’

Entre os que atribuíram a autoria do discurso a Aspásia, estava ninguém menos que Platão, no que foi interpretado como um sinal do repúdio do filósofo à veneração de Péricles por seus contemporâneos.

Num diálogo irônico, ele imagina um encontro entre Menêxeno (que dá nome à obra) e Sócrates, em que este último afirma ser capaz de proferir um grande discurso fúnebre.

Sócrates – … tenho como mestre uma mulher bem entendida em matéria de oratória, a mesma que formou muitos outros excelentes oradores, entre os quais há um que se destaca entre todos da Grécia — Péricles, filho de Xantipa.

Menêxeno – Quem é ela? É evidente que se refere a Aspásia…

Sócrates – Me refiro a ela.

Na peça, Sócrates faz um discurso em que afirma ter aprendido com Aspásia e, embora seja uma paródia, é provável que contenha mais do que um grão de verdade, pois várias fontes indicam que o fundador da filosofia ocidental admirava a dama de Mileto.

Dois desconhecidos

Mas seguimos no campo da conjectura porque Sócrates também é um enigma.

'Sócrates e Alcibíades em Aspásia', 1801. Artista: Nicolas Andre Monsiau
Sócrates é geralmente imaginado como um homem velho por causa dos escritos de Platão, mas ele tinha a mesma idade de Aspásia, que aparece nesta pintura de Nicolau André Monsiau, assim como Alcibíades

Como no caso de Aspásia, não temos nada escrito por ele; tudo é de segunda mão, e a maior parte é fortemente contestada.

O que sabemos do filósofo é um conjunto de interpretações, cada uma das quais representa um Sócrates “teoricamente possível”, como bem disse a historiadora de filosofia Cornelia de Vogel.

No entanto, de acordo com vários autores antigos, Sócrates respeitava as opiniões de Aspásia.

Além de ser a única mulher a quem Platão concedeu um discurso em toda a sua obra, Xenofonte — um dos principais biógrafos de Sócrates — a menciona duas vezes em seus escritos socráticos: Memorabilia e Oeconomicus.

Em ambos os casos, o filósofo recomenda seguir os conselhos dela.

E tanto Ésquines de Esfeto quanto Antístenes, discípulos de Sócrates, escreveram diálogos socráticos intitulados Aspásia, dos quais restam apenas fragmentos.

Em uma parte do diálogo de Ésquines preservada por Cícero em latim, Aspásia figura como a “Sócrates mulher”, e é apresentada como mestra e inspiração de excelência.

Amor?

Pela interpretação destes e outros escritos, foi dito que Sócrates e Aspásia se conheceram quando ambos estavam na faixa dos 20 anos e tiveram um longo relacionamento. Alguns acreditam que em algum momento foi uma relação amorosa, ou que ele pelo menos a amou, mas é improvável que algum dia se saiba a verdade.

Estudo Michel Corneille II
Estudo para a pintura de Michel Corneille II, em que Aspásia aparece rodeada por filósofos, para o teto do aposento da rainha no Palácio de Versalhes

Como “não há boas evidências de sua vida interior ou intelectual” devido à falta de fontes primárias que a descrevam — Madeleine M. Henry sentenciou em seu livro Prisoner of History (“Prisioneira da História”, em tradução literal) — nunca poderemos conhecer Aspásia.

Mas isso não significa que os historiadores vão parar de tentar.

Uma das hipóteses mais recentes foi a apresentada por Armand D’Angour, que argumenta em seu livro Socrates in Love (“Sócrates Apaixonado”, em tradução literal) que sua pesquisa mostra que Sócrates obteve a inspiração para suas ideias originais sobre a verdade, o amor, a justiça, a coragem e o conhecimento em Aspásia de Mileto.

“Se a evidência desta tese for aceita, a história da filosofia terá uma reviravolta monumental: uma mulher que quase foi apagada da história deve ser reconhecida como aquela que estabeleceu as bases de nossa tradição filosófica de 2,5 mil anos”, destaca D’Angour, professor de Clássicos da Universidade de Oxford, no Reino Unido.

Enquanto isso, Aspásia seguirá sendo “uma figura chave na história intelectual do século 5 em Atenas… (assim como) a mulher mais importante daquela época”, como admitiu Henry.

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