O esquecido Massacre de Zong, quando 132 escravizados foram lançados vivos ao mar

Tripulação de navio jogando escravos ao mar, ilustração do livro 'American Slave Trade', de Jesse Torrey, 1822
Para minimizar seu prejuízo, o capitão do Zong decidiu lançar os africanos mais debilitados ao mar e reivindicar o pagamento do seguro

Em 1781, 132 africanos escravizados foram lançados vivos ao mar de um navio negreiro britânico chamado Zong para morrerem afogados.

Eles estavam doentes e, na visão do capitão da embarcação, representavam uma ameaça à sua margem de lucro — ao passo que a perda do que ele considerava na época sua “mercadoria” poderia ser compensada com o pagamento do seguro.

Os responsáveis pela atrocidade, conhecida como Massacre de Zong, acabaram impunes, apesar dos esforços de ativistas do movimento abolicionista britânico para que fossem julgados por homicídio.

E o episódio, que teria sido imortalizado na pintura abaixo do artista britânico William Turner, é hoje um dos símbolos dos horrores do tráfico negreiro.

Pintura 'Navio Negreiro', de William Turner, em exposição no Museu de Belas Artes de Boston
A obra ‘Navio Negreiro’, de William Turner, é considerada por muitos como a interpretação do artista sobre o Massacre de Zong
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A ironia do nome

Entre o século 16 e o início do século 19, pelo menos 12 milhões de africanos foram capturados e levados para serem vendidos como escravos nas colônias do continente americano — cerca de um terço em navios britânicos.

Entre estas embarcações, estava o Zong, que originalmente era um navio negreiro holandês e ironicamente se chamava Zorg, que quer dizer algo como “zelo” ou “cuidado”.

A embarcação foi capturada pelos britânicos em 1781 na costa africana durante uma das guerras anglo-holandesas e vendida a uma conhecida família de traficantes de escravos de Liverpool, os Gregson, que administravam um sindicato na época.

“Eles rebatizaram o navio de Zong, instituíram um novo capitão, chamado Luke Collingwood, e o Zong passou então mais alguns meses ao longo da costa oeste africana negociando mais (africanos) capturados”, explica Jake Subryan Richards, professor de história da Universidade London School of Economics (LSE), no Reino Unido, em entrevista ao programa de rádio da BBC “In Our Time”.

Foi assim que, em setembro de 1781, o Zong zarpou de Acra, atual capital de Gana, com 442 africanos escravizados a bordo rumo à Jamaica — uma das colônias mais importantes e lucrativas do Império Britânico —, onde seriam vendidos e forçados a trabalhar nas plantações de cana de açúcar.

Ilustração de homens escravizados cortando cana de açúcar
As plantações de cana de açúcar faziam da Jamaica uma das colônias britânicas mais lucrativas

Condições desumanas

Naquela época, as viagens da África para as Américas duravam de seis semanas a vários meses, dependendo das condições meteorológicas. E estima-se que de 15% a 16% dos africanos capturados morriam nesse trajeto devido às condições deploráveis a bordo dos navios.

“As condições em qualquer navio negreiro eram muito difíceis e opressivas. Tipicamente os homens adultos eram mantidos acorrentados, deitados no porão, e levados ao convés talvez uma vez por dia para se exercitar”, diz Richards.

“Mulheres e crianças eram frequentemente mantidas no convés, não necessariamente acorrentadas, mas atrás de barricadas de madeira, uma grande cerca que atravessava horizontalmente o deque do navio (…), onde a tripulação poderia colocar armas de fogo para matá-las em caso de uma insurreição.”

Além disso, as doenças se espalhavam rapidamente a bordo desses navios — que costumavam transportar o maior número possível de cativos para aumentar sua margem de lucro, amontoando as pessoas no porão.

‘Banquete’ para tubarão

Quando alguém morria, o corpo poderia permanecer por horas acorrentado a outros escravizados vivos, antes de ser jogado ao mar.

Ilustração de navio negreiro de 1881
As condições nos navios negreiros, em geral superlotados, eram desumanas

“Em geral, os mortos eram lançados ao mar porque sob a perspectiva do empreendimento comercial, eles eram ‘cargas’ estragadas, haviam perdido seu valor”, explica à BBC Vincent Brown, professor de história da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.

Por isso, não são raros os relatos de tubarões que seguiam os navios negreiros.

“Eles sabiam que poderiam fazer um banquete com os corpos que eram jogados ao mar”, acrescenta o pesquisador.

No caso do Zong, no entanto, os africanos capturados foram lançados ao mar ainda vivos.

Superlotação

Mesmo para os padrões de um navio negreiro, o Zong estava superlotado. Havia 442 cativos a bordo, cerca de duas vezes a quantidade que um navio do seu porte era capaz de transportar.

“O Zong era particularmente opressor por vários motivos. Um deles é que tinha muito mais escravizados a bordo do que a média de um navio negreiro daquela época. Havia 2,26 escravizados por tonelada da embarcação, em comparação com a média de 1,6 por tonelada de um navio negreiro”, afirma Richards.

Além disso, o historiador lembra que a tripulação do Zong foi recrutada às pressas, sem muito critério, já que a original abandonou o navio quando o mesmo foi capturado — e não era compatível com a quantidade de cativos a bordo.

“Quando saíram da África, havia 23 pessoas capturadas para cada membro da tripulação que estava servindo a bordo do navio, quando a média era de cerca de nove ou 10 cativos para cada tripulante de navio negreiro.”

“Ou seja, a tripulação tinha essencialmente o dobro da carga de trabalho”, resume Richards.

O massacre

Condições meteorológicas desfavoráveis e erros de navegação resultaram em uma viagem que demorou meses, em vez de semanas.

E, a cada dia que passava, o capitão Luke Collingwood via sua margem de lucro diminuir à medida que doenças se espalhavam pelo convés e porões do navio.

Foi assim que, em 29 de novembro de 1781, ele tomou a decisão de lançar os africanos capturados mais debilitados ao mar para morrerem afogados — alguns deles ainda algemados.

Uma decisão de cunho comercial, com o objetivo de minimizar seu prejuízo.

Dado seu estado de saúde, os africanos lançados ao mar valiam mais para a tripulação do navio mortos do que vivos.

“Eles foram jogados no mar em parte porque o capitão Luke Collingwood disse à tripulação que eles estavam doentes, que iriam morrer de qualquer maneira, e era improvável que obtivessem um preço alto no mercado”, afirma Brown.

“Isso teria sido uma preocupação especial para os oficiais, que geralmente gozavam do que chamavam de privilégio de (receber o pagamento no valor de) dois africanos escravizados.”

E, de acordo com o historiador, esse cálculo era feito com base na média de preço da venda de toda a carga.

“Ao jogar ao mar africanos doentes e moribundos, que podiam ou não ter sobrevivido, mas certamente teriam baixado o preço médio da carga do navio, eles estavam ganhando no valor médio de seu privilégio”, explica.

Falta d’água

A tripulação da embarcação alegou, no entanto, que não havia mais água potável suficiente para todos a bordo e que não teve escolha a não ser lançar parte dos africanos capturados ao mar.

Mas esta versão é controversa, conforme explica Brown.

Segundo ele, registros históricos revelam que as vítimas foram jogadas ao mar ao longo de três dias consecutivos — e no terceiro dia, choveu, o que teria permitido à tripulação coletar água potável suficiente para abastecer o navio por três semanas antes de lançar a última leva de africanos ao mar.

“Nesses três dias, Collingwood e sua tripulação causaram a morte de 132 africanos, sendo que os últimos foram mortos depois de eles terem coletado água potável”, resume Brown.

Quando o Zong chegou à Jamaica, apenas três semanas depois, havia 420 galões de água a bordo.

Reivindicação do seguro

Ao lançar os africanos ao mar, alegando a escassez de água potável, o capitão esperava que a perda do que ele considerava na época sua “mercadoria” fosse ressarcida financeiramente com o pagamento do seguro.

Como era prática comum na época, os armadores haviam feito uma apólice de seguro para a “carga” humana do navio.

“O tráfico negreiro era um negócio muito arriscado, os riscos para os lucros eram vários, não apenas escravizados doentes, como também escravizados que se rebelavam contra o navio e eram muitas vezes atirados ao mar, então o papel do seguro era garantir alguma margem de lucro”, explica à BBC Bronwen Everill, professora de história da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.

“Algumas das viagens demoravam mais de um ano para serem concluídas, e erros de cálculo podiam custar caro, como no caso do Zong, que calculou mal a quantidade de água.”

Mas a seguradora não acreditou na versão da tripulação e se recusou a pagar a indenização, o que levou os proprietários do navio a reivindicar o pagamento na Justiça.

Em 1783, a disputa foi parar no tribunal de Londres, onde o júri decidiu inicialmente a favor dos traficantes de escravos, determinando o pagamento do seguro, como se os africanos assassinados fossem uma mera mercadoria.

“O que é surpreendente no caso do Zong é que, na verdade, não havia nenhuma norma específica que diferenciasse os escravizados de qualquer tipo de carga”, aponta Everill.

Movimento abolicionista

É justamente esse aspecto que acabou despertando a revolta de ativistas abolicionistas da época.

Dois personagens históricos na luta pelo abolicionismo britânico se empenharam em tornar pública a atrocidade do Zong: o nigeriano Olaudah Equiano e o inglês Granville Sharp.

“Juntos, Sharp e Equiano começam a divulgar o caso, levando ao conhecimento de vários parlamentares, com quem tinham influência, e para outras pessoas de quem já tinham ouvido falar, como ministros, que estavam começando a se agitar contra o tráfico de escravos”, conta Everill.

“Para mostrar que este era um exemplo perfeito dos problemas de ganância e excesso que o tráfico negreiro havia trazido para a costa britânica.”

Olaudah Equiano
Equiano foi sequestrado quando era criança, na Nigéria, e vendido como escravo — mais tarde, acabou conseguindo comprar sua liberdade e viajou para Londres, onde se juntou ao movimento abolicionista

Na visão deles, o que aconteceu no Zong foi “uma mercantilização e financeirização repugnante dos seres humanos com fins lucrativos”, explica a historiadora.

“Eles basicamente acusam (os proprietários do navio) de cometer fraude de seguro em algum nível, ao descobrir que não ganhariam o suficiente no mercado e jogar os africanos ao mar antes que baixassem o valor da carga do navio de maneira geral. E, assim, serem capazes de obter esse lucro por meio do prêmio do seguro, em vez do preço de mercado para os escravos que teriam sido afetados pela escassez de água.”

Acusação de homicídio

Acima de tudo, os ativistas protestaram contra o fato de que o caso estava sendo julgado meramente como uma questão de apólice de seguro — e não de homicídio.

“Sharp achou que era realmente repreensível que as vidas dos africanos estivessem sendo equiparadas a dinheiro e que a única questão ali era sobre a responsabilidade legal do pagamento do seguro como compensação”, diz Richards.

Para embasar seu protesto, o ativista, que era uma espécie de advogado autodidata, fez transcrições das audiências no tribunal — o que, de acordo com o historiador, é a principal fonte que temos hoje do caso Zong.

Granville Sharp defendendo a causa de um africano escravizado
O abolicionista Granville Sharp, uma espécie de advogado autodidata, defendendo a causa de um escravo

“Sharp disse que, na verdade, (o Zong) deveria ser julgado como um caso de assassinato, que a tripulação do navio negreiro deveria ser indiciada por homicídio.”

Ele escreve então uma longa carta ao Almirantado, pressionando para que a tripulação do navio fosse processada pelas mortes. Mas, de acordo com o historiador, nunca houve resposta.

‘Almas em perigo’

O esforço de Sharp e Equiano para condenar os responsáveis pela atrocidade pode ter sido em vão.

Mas o fato é que o Massacre de Zong reforçou o argumento abolicionista da época de que as almas de todos os britânicos estavam em perigo à medida que o caráter homicida de seu tráfico negreiro era tratado como uma mera transação comercial — e não um erro moral.

“Na década de 1780, principalmente Sharp, mas também Equiano, temiam que a escravidão fosse uma ameaça à própria alma do Império Britânico. Sharp não era evangélico, ele era um anglicano da Alta Igreja, mas compartilhava da crença evangélica na providência (divina) e no mundo regido pela moral”, diz Brown.

“Ele acreditava que esses pecados cometidos pela tripulação também eram pecados cometidos pela nação britânica. E que o julgamento divino poderia ser o resultado.”

O historiador cita uma série de incidentes que deixaram as pessoas preocupadas na época, como a independência dos EUA, em 1776, que marcou o fim da colonização inglesa sobre o território; e vários furacões que varreram o Caribe, destruindo plantações e causando muitas mortes.

Eventos como esses eram interpretados como julgamentos divinos.

“No momento em que esse movimento antiescravidão estava realmente esquentando, na década de 1780, as pessoas estavam preocupadas com uma ameaça imediata vinda de Deus em continuar essa prática”, contextualiza Brown.

“Evangélicos e dissidentes cristãos estavam entre os líderes desse movimento em parte porque temiam esse julgamento”.

Fim do tráfico negreiro

Mas, apesar dos esforços do movimento abolicionista, nas décadas seguintes ao Massacre de Zong, o tráfico negreiro continuou a expandir.

Somente em 1807, o tráfico de povos escravizados foi abolido pelo Parlamento britânico.

Já a exploração da mão de obra escravizada continuaria nas colônias britânicas por mais quase 30 anos.

O fim da escravidão só foi alcançado em 1833, com a aprovação da Lei da Abolição da Escravatura, que entrou em vigor em 1834.

“Não há nenhuma conexão direta entre o massacre de Zong e a abolição. Eu diria que a conexão mais importante é que ele incentivou aqueles atores-chave, ativistas como Sharp e Equiano, e chocou a consciência de quem veio a saber do ocorrido”, avalia Brown.

“O projeto de lei da abolição dependia dos interesses dos legisladores que o aprovaram.”

“Esses movimentos ativistas existem, mas só conseguem ter sucesso em oportunidades particulares, em contextos particulares. Os legisladores só ouvem os ativistas quando consideram que é do seu interesse político imediato ouvi-los”, completa o historiador.

Legado

Na opinião dele, o principal legado do massacre é que serve como um “exemplo impressionante da priorização da ganância em detrimento da vida humana”.

“Acho que isso conta muito. É algo que acontece na história, e as pessoas podem se horrorizar e se horrorizam diante da priorização da ganância em detrimento da humanidade”, diz Brown.

O historiador traça um paralelo com a pandemia de covid-19 no que se refere aos debates sobre a abertura da economia e os riscos para a saúde.

“Ainda se vê o argumento de que de alguma forma se pode escolher a vida econômica em vez da vida humana.”

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