O estilo muito especial de Fernando Pessoa 

Por: *José Paulo Cavalcanti Filho

“Se, depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.”

Fernando Pessoa

Poemas inconjuntos, Alberto Caeiro

Escrever biografias é, de alguma forma, viver a vida que se quer contar. Diferente dos versos de Caeiro, descrever, ou adivinhar, o que se passa entre as datas de nascença e morte das pessoas. Nesta série de textos do Jornal de Letras, sobre o tema, vênia para enfrentar uma questão concreta. É que, ao escrever a biografia de Fernando Pessoa, percebi haver muitas passagens de sua vida que não estavam claras. Só que, no caso, tudo restou facilitado pelo fato de que, mais que qualquer outro escritor nesse vasto mundo, ele apenas escrevia sobre ele mesmo e sua circunstância. Isso percebi, em um momento mágico, depois de caminhar juntos por anos.

Tanto que ao ler seus papéis, depois, era fácil saber (quase) sempre quando foi escrito, para quem, por quê. E, ao fazer essa leitura do que escreveupoder completar sua biografia. Aproveito para ilustrar o que digo a partir de Tabacaria. Cinco personagens são referidos nesse poema. Além de Pessoa, que tem sua própria vida marcada em quase todos os versos – o gosto pela bebida, o medo de enlouquecer, cigarro, sonhos, angústias, esperanças vãs, ilusões perdidas.

O primeiro dos cinco personagens está nesses versos, entre parênteses:

“(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates…)”.

O leitor desatento, aqui, poderia ser enganado. Tida então, essa pequena que comia chocolates, como uma especulação filosófica sobre o sem sentido da vida. Mas se trata de sua sobrinha Manuela Nogueira. Como ela própria me confessou, a leiteria onde comprava chocolates com moedas dadas pelo tio Fernando era aproximadamente dois prédios a seguir ao nº 16 da Rua Coelho da Rocha, talvez nº 10 ou 12. O proprietário era o senhor Trindade, de que me lembro como se fosse hoje. O endereço era Rua Coelho da Rocha 2/4, esquina com Rua Silva Carvalho 13/15, a cerca de 50 metros do edifício de Pessoa. Júlio Trindade não era proprietário, mas simples empregado. E o estabelecimento não era A Morgadinha, como é comum se dizer em Portugal. Por ter sido criada só em 01/01/1938. Quando Pessoa estava já morto.

Seguem-se dois personagens, novamente entre parênteses:

 

“(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz)”.

Para muitos, essa filha da lavadeira poderia ser uma metáfora. Significando o desejo, do poeta, em ter uma vida mais simples. Em que pudesse vir a ser feliz. Mas não é assim. Sempre houve interesse em saber se Pessoa teve alguma namorada, além de seu implausível amor Ophélia Queiroz. Um companheiro de tertúlias, Peixoto Bourbon, chegou a insinuar que teria tido amante no prostíbulo de madame Carriço, na Rua do Ferragial de Baixo – já na descida para o Cais do Sodré. Para proteger das maledicências, na sociedade conservadora daquele tempo, um amigo que deu seu primeiro beijo só com 32 anos. Em A educação do estóico, escrito no mesmo ano de Tabacaria (1928),

Pessoa confessa: “Tive um dia a ocasião de casar, porventura ser feliz, com uma rapariga muito simples, mas entre mim e ela ergueram-se-me na indecisão da alma quatorze gerações de barões”. Explicando-se, essa referência à nobreza, pelo fato de ser o texto assinado pelo heterônimo Barão de Teive. A confissão se completa indicando que “data dessa hora suave e triste o princípio do meu suicídio”. Duas referências no mesmo sentido. Antes, em 1916, os espíritos dos heterônimos More e Wardour haviam já sugerido que a mulher por quem se apaixonaria seria uma governanta – descrição muito mais próxima de uma filha da lavadeira que de Ophélia.

A lavadeira de agora, nos versos de Tabacaria, se chamava Irene. E, sua filha, Guiomar. Para confirmar os versos, bom lembrar o poeta e amigo Thomas d’Almeida. Quando pede, a Pessoa, que registre sua filha — indicando, como nome que deveria ter, Múcia Leonor. Sendo o registro feito, por Pessoa, com o nome de Múcia Guiomar d’Almeida. Mesmo nome daquela tardia Guiomar que quase mudara sua vida. Sem mais registros do fato. Nem no seu diário, nem em algum papel perdido na Arca. Houve mesmo esse amor?, no coração de Pessoa. Para quem andou sempre ao lado dele, e o conhecendo bem, não há dúvida. Pessoa pensou mesmo em casar com Guiomar, filha de sua lavadeira, entre as duas fases da relação com Ophélia. Teriam sido felizes? Não sei. Mas quem é que pode saber?

Os dois derradeiros personagens estão nesses versos:

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Estêves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à Porta)
Como por um instinto divino o Estêves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Estêves!…

Estêves, no caso, seria só um apelido aleatório. Isso, fosse Pessoa um escritor como os outros. Só que não é. Longe disso. Por partes. A tabacaria da Tabacaria era a Havaneza dos Retrozeiros, que ficava bem em frente à Casa Moitinho – na esquina da então Rua dos Retrozeiros (hoje da Conceição) 63/65 com a hoje Rua da Prata (então Bela da Rainha). Longe das “janelas do meu quarto”, que nem janelas tinham. E esse Estêves não é citado em nenhum outro escrito. Única referência possível está no fragmento 481 do Desassossego, que fala num encontro de “velhote redondo e corado, de charuto, à porta da Tabacaria”. Completando, como Soares, “o que é feito de todos eles que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte de minha vida?” Talvez fosse ele. A hipótese não é desarrazoada; que nesse fragmento, logo após referir dito “velhote”, imediatamente lembra “o dono pálido da Tabacaria”. Esse dono pálido era Manuel Alves Rodrigues. Morto pouco depois, era mesmo previsível. Tanto que, em Cruz na porta da Tabacaria (de 1930)Pessoa pergunta: “Quem morreu, o próprio Alves?”. Dois personagens que estão coincidentemente juntos, em duas linhas seguidas, no Desassossego e no poema – “o dono da Tabacaria” e “o Estêves sem metafísica”. No caso, trata-se de Joaquim Estêves, vizinho que frequentava a casa da família na Rua Coelho da Rocha – e que morava bem próximo, na Rua Saraiva de Carvalho 200. Um anônimo desses tantos que passam pela vida e não deixam maiores registros. “Sem metafísica”, dizem os versos. Mas tão íntimo da família que, a seu pedido, foi declarante do Assento de Óbito do próprio Pessoa – número 1.609, hoje na 7ª Conservatória do Registro Civil de Lisboa. E que acabou eternizado pelo amigo poeta.

Claro que Pessoa fez essas especulações todas, aqui sugeridas. Só que a partir de pessoas e fatos que estavam em sua volta. Por isso é que sua arte foi especial. E ele foi tão superior, como escritor. Viva Pessoa. Graças às biografias, podemos então ressuscitar fantasmas do passado. Para que deem brilho renovado à língua em que escreveram. E voltem a conviver, por um momento breve, com seu povo. Até porque, assim escreveu em uma Ode de Reis (30/7/1914), “Acima dos Deuses o Destino/ É calmo e inexorável”.

*José Paulo Cavalcanti Filho é advogado.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *