O fascismo então e agora?
Que não seja precisa uma nova Stalingrado para marcar a derrota do autoritarismo obscurantista é o que a Humanidade deseja e merece
Há 75 anos, com a derrota do Reich, a II Guerra Mundial chegava ao fim na Europa, deixando no seu rastro, milhões e milhões de mortos. A propósito, escrevi, para uma publicação comemorativa, Honrando a Vitória, editada pela Câmara Cívica da Federação Russa. O texto. escrito antes da eclosão do Covid19, está transcrito abaixo.
“As cidades podem vencer, Stalingrado! Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga. Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo. Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres, a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem”.
Com esses versos, o grande poeta brasileiro, Carlos Drummond de Andrade, encerra sua “Carta a Stalingrado”, escrita em 1943 e destinada a celebrar a vitória das forças soviéticas sobre as tropas da Alemanha nazista, depois do prolongado cerco que emocionou o mundo. O chileno Pablo Neruda expressou poeticamente a solidariedade, de profundo sentido humano, com a cidade, hoje Volgogrado, vítima de uma das mais cruéis batalhas da Segunda Guerra Mundial:
!…para que saibam, se há alguma dúvida,
que morri amando-te e que me tens amado,
e se não estive combatendo em tua cintura
deixo em tua honra esta granada escura,
este canto de amor a Stalingrado.
O destino heroico da cidade à beira do Volga despertou emoções do outro lado do mundo em função do drama humano causado pela guerra, mas também porque todos ali já intuíam que os rumos do conflito, até então favoráveis às forças do Eixo, começariam a mudar. Em Stalingrado deu-se a primeira derrota do nazismo na guerra. O estímulo desse feito às forças de resistência em outros países não pode ser subestimado. O próprio Neruda reconhece em seu poema este impacto:
Agora americanos combatentes
brancos e escuros como a romã,
matam no deserto a serpente.
Já não estás a sós, Stalingrado.
França volta às velhas barricadas
com pavilhão de fúria hasteado
sobre as lágrimas recém derramadas.
Já não estás a sós, Stalingrado.
E os grandes leões da Inglaterra
voando sobre o mar de furacões
cravam as garras na parda terra.
Já não estás a sós, Stalingrado.
Esses testemunhos poéticos escritos à época são confirmados por todas as análises históricas minimamente sérias. Mesmo sem desmerecer a enorme contribuição dada pela decisão norte-americana de participar da guerra ou o valor da resistência britânica e de forças de libertação em outros países, não há como ignorar o papel decisivo da coragem demonstrada pelo povo da União Soviética, simbolizada por Stalingrado, nem sua importância para a vitória final sobre o nazismo.
O mundo que emergiu da Segunda Guerra Mundial, a despeito das tensões da Guerra Fria, parecia haver enterrado de uma vez por todas a serpente do nazismo e do fascismo. A queda do muro de Berlim, por sua vez, representou para muitos a prevalência da economia de mercado e da democracia representativa. Esta era a visão que inspirava teóricos como Francis Fukuyama, célebre por seu ensaio sobre o “Fim da História”. Logo o simplismo contido nessa visão seria desmentido por conflitos étnicos e religiosos, pelas ações militares unilaterais dos Estados Unidos, pelo drama dos refugiados, pelas ameaças do aquecimento global e pelo já famoso “retorno da geopolítica”. De forma dramática, a crise financeira, desencadeada em 2008, com efeitos que se prolongam até os dias de hoje, pôs fim às ilusões de que um capitalismo cordial e de face humana prevaleceria, com as benesses dos avanços tecnológicos se espraiando para os milhões de pobres e miseráveis do terceiro mundo. Ao contrário, o que se tem visto é o aumento da desigualdade e do desencanto, mesmo nos países mais ricos. As vitórias no combate à fome e à pobreza em alguns países foram, até aqui, transitórias, com o desemprego crescente, a perda de direitos sociais e ataques ao estado do bem-estar.
Wikicommons/Mil.ru
Que não seja precisa uma nova Stalingrado para marcar a derrota do autoritarismo obscurantista é o que a Humanidade deseja e merece
A percepção das injustiças do novo sistema econômico globalizado nem sempre teve efeitos positivos. Ideologias de extrema-direita ou neofascistas se espalharam pelo planeta, com efeitos dramáticos em países subdesenvolvidos. Repetindo, até certo ponto, o que ocorrera na Europa de entreguerras, setores da “direita liberal” prepararam o terreno para a ascensão de políticos e ideologias extremistas, que exaltam o misticismo e a violência. Isso tem sido especialmente verdadeiro em certos países da América Latina, depois de duas ou três décadas de progressos políticos e sociais. Inspirados, em parte, pela figura histriônica de Donald Trump, que, entre outras coisas, governa país onde as condições socioeconômicas são muito diversas, líderes políticos não só se têm atacado as conquistas sociais dos últimos anos (ou até de décadas), mas também buscado destruir os alicerces civilizatórios em que repousa a democracia.
Aparentemente, alguns setores ligados ao grande capital e das classes médias começam a perceber que podem ter cometido um grande erro ao abrir espaço para os extremistas. Valores como a liberdade de imprensa, o apreço pela ciência e preocupações com a sobrevivência do planeta estão sendo agredidos, despertando temores naqueles que, movidos por um interesse estreito e de curto prazo, permitiram que o neofascismo vicejasse, principalmente em países em desenvolvimento, com estruturas políticas frágeis e grande potencial de conflito social, gerado pela desigualdade e a pobreza.
Não sabemos ainda qual será o resultado desse embate, que inevitavelmente se travará. Olhando para o conjunto da região latino-americana, vemos exemplos animadores como as vitórias eleitorais de forças progressistas na Argentina e no México. A revolta popular contra o neoliberalismo em países como Chile, Equador e Colômbia (de formas diversas) apontariam talvez na mesma direção, embora o desfecho desses processos seja ainda incerto. O violento golpe de estado na Bolívia, entretanto, é um alerta de que as forças da reação, tanto internas quanto internacionais, continuam atuantes.
A derrota do nazifascismo, na qual o povo soviético teve uma participação decisiva, não foi, como pensávamos, definitiva. Em um momento como este, a defesa do “discurso racional” e dos valores civilizatórios, como a solidariedade, a tolerância e a busca da igualdade, volta a ser uma tarefa de todos. Que não seja precisa uma nova Stalingrado para marcar a derrota do autoritarismo obscurantista é o que a Humanidade deseja e merece.
*Celso Amorim atuou como Ministro das Relações Exteriores do Brasil por duas vezes (1993-1994, 2003-2010). Também foi Ministro da Defesa (2011-2014).