O francês que ‘descobriu’ a Bahia antes de Verger

Em guia escrito sobre o estado em 1957, sociólogo Roger Bastide fala de festas mortas, dos burros cinzentos nas ruas e do candomblé

A aposta era mais em um passeio suave do que em um efetivo mergulho. Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, os guias franceses Odé tiveram pertinente e longevo sucesso editorial por mais de duas décadas, traduzidos em vários idiomas.

Coloridos e pequenos — fáceis de serem guardados em paletós ou bolsas — foram cicerones agradáveis em viagens, tornando-se, anos depois, objeto de fetiche para colecionadores.

A primeira edição saiu em 1943, com o título de ‘Paris como amamos’. À época, a capital francesa iniciava seu processo de libertação do julgo nazista, ainda durante a Segunda Grande Guerra (1939-1945).

Roger Bastide viveu no Brasil por um tempo e fez um amplo estudo imersivo sobre o candomblé da Bahia

(Foto: Reprodução)

Desde o princípio, o organizador Doré Ogrizek entendeu que precisava equilibrar textos relativamente curtos, bem escritos e profundos. Para tanto, buscou colaboradores de renome, tanto entre os imortais da Academia Francesa, quanto entre professores das universidades de Sorbonne e Paris.

Numa flagrante farsa geográfica, depois de ter lançado edições únicas sobre países de menor extensão territorial (Portugal, Bélgica e Suíça), em 1957, a América do Sul — na visão eurocêntrica — era novamente ‘descoberta’.

Nesta primeira publicação, Venezuela, Colômbia e Equador se espremiam para caber nas 414 páginas, das quais o Brasil ocupava a maior parte do compêndio.

Em 1958, um volume II fez a ginástica de apinhar ainda mais nações no guia: Argentina, Uruguai, Paraguai, Peru, Bolívia e Chile.

A BAHIA DO NORDESTE

Mesmo com as generalizações e espaço reduzido, a versão sobre o Brasil traça um panorama histórico da Colônia ao governo JK, presidente à época. A rivalidade entre Rio (ainda capital do país) e São Paulo não escapa do registro, bem como citações a Villa-Lobos, Di Cavalcanti, Machado de Assis e Castro Alves — chamado de o ‘Victor Hugo brasileiro’.

A Bahia tem um capítulo especial, assinado por Roger Bastide, sociólogo que, em 1938, a convite da recém-criada Universidade de São Paulo (USP), veio morar no Brasil.

Por aqui, o francês estudou as religiões afro-brasileiras. Envolveu-se tanto no assunto que, mesmo sendo presbiteriano, se iniciou no candomblé, filho de Xangô.

Como fruto do seu trabalho de doutorado na Sorbonne, publicou o clássico ‘O Candomblé da Bahia’, em 1958. A obra, relançada pela Companhia das Letras em 2001, fala do transe, dos ritos, das danças e da relação sofisticada entre o homem e o cosmos na religião. Bastide foi fonte de pesquisa e inspiração do seu compatriota e contemporâneo Pierre Verger (1902-1996).

Quando contribuiu com o Guia Odé, Roger Bastide já não morava mais no país. Em 54, voltou para a França para lecionar na Universidade de Paris. Em seu texto há inúmeras preciosidades sobre a capital e também o interior do estado.

Na abertura, uma polêmica. O francês diz que a Baía de Todos-os-Santos não é “tão imponente como a do Rio (Guanabara)”, mas não “fica devendo em beleza”.

Guia francês sobre o Brasil

(Foto: Reprodução)

Ele desmistifica a lenda de Salvador ter tantas igrejas quanto os dias do ano, enaltece a Rua Chile (então principal via da cidade) e se espanta pelo fato de muitas vias ainda serem mais ocupadas por “burros cinzentos” do que automóveis.

O sociólogo se impressiona com a quantidade de manifestações sagradas e profanas do calendário, listando Conceição da Praia, Bom Jesus dos Navegantes, Bonfim, Iemanjá e Cosme e Damião como as principais.

“A cidade da Bahia é de todos os santos e de todos os pecados. Não sei se há mais pecadores aqui do que em outras partes do mundo. Mas, para todos os santos venerados nas igrejas barrocas, ainda tem que adicionar os deuses da África do candomblé…”, brinca.

“O carnaval oferece também à Bahia suas particularidades, como os afoxés, que são a descida dos reis africanos do candomblé, com seus tambores e insígnias, para a festa das ruas”, completa.

Texto de Bastide sobre a Bahia com descrições de Salvador, do interior e sertão

(Foto: Reprodução)

Em seu relato, constam ainda duas procissões que existiam na cidade e perderam força ao longo do tempo. O Pastoral de Natal, em dezembro, e o Canto da Verônica, na Sexta-Feira da Paixão, com os fiéis caminhando com panos brancos em alusão às lágrimas de Cristo que precisam ser secadas.

Esticando a viagem para o interior, Bastide cita Cachoeira, Santo Amaro, Feira de Santana, Canudos e Bom Jesus da Lapa, dando destaque à igreja construída dentro da gruta e a peregrinação dos romeiros.

Sobre o sertão, faz críticas aos governantes, fala da fome e como uma viagem às margens do São Francisco é uma “volta ao passado, ao longo de séculos, como se remontasse ao Brasil colonial”.

O tom, no entanto, é quase sempre de encanto. Nas últimas linhas, o francês se derrete, por completo.

“Esse é um país que o batuque dos negros tem rítmica com a dança do desejo e com a possessão mística. Mas, não muito distante deste primeiro Nordeste, há outro Nordeste mais secreto, com o céu azul implacável, com as plantas que são mais que espinhos, dos homens rudes feitos à imagem da natureza que os circunda. Quem conhece esses dois deseja se encantar por eles”.

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