O Gambito da Bahia: enxadrista Ruth Cardoso sobreviveu a Hitler e virou ícone do jogo

Baiana foi a 1ª jogadora do país a virar mestre internacional. Após escapar do holocausto, encarou machismo para representar o Brasil nas Olimpíadas de xadrez

Quando se coloca o preto no branco, a série mais vista em toda a história do canal streaming Netflix é o “Gambito da Rainha”, com enredo baseado no romance de Walter Trevis, de 1983. São mais de 62 milhões de espectadores atingidos em menos de um mês de estreia.

O enredo (alerta de spoiler e breguice) narra a trajetória fictícia de Beth Harmon, uma encantadora jogadora de xadrez que, desafiando convenções de um esporte machista, vícios em alucinógenos e traumas de infância, vence no tabuleiro da vida.

A Bahia, lógico, dá a ideia xeque neste quesito. Por aqui, existiu, de fato, uma Beth Harmon e muito antes da própria. De lambuja, ainda com a abissal diferença de ser de carne, raciocínio rápido, peças e ossos.

Ruth Volk Cardoso nasceu em Belmonte, no sul do estado. O pai era dono de extensas fazendas de cacau e a mãe, dona de casa alemã. Aos 35 anos, se tornou a primeira brasileira a ganhar o título de mestre internacional de xadrez feminino.

Bonita e charmosa, entre seu nariz afilado e olhar exultante, combinava classe e elegância. Representou o país cinco vezes nas Olimpíadas da categoria, conquistando a medalha de prata em 1972, em Escópia, na Macedônia.

Antes, foi heptacampeã brasileira (até hoje um recorde) e bi sul-americana. Além da trajetória como atleta, ajudou a disseminar a prática de xadrez no estado, sendo fundadora – com direito a assinatura na ata de criação –  da Federação Baiana de Xadrez (FBX), em 1960. Pouco tempo depois, contrariando o espírito de um tempo no qual mulheres não tinham tanta representatividade em cargos de direção, comandaria a própria entidade.

 Ruth Cardoso (à direita) enfrenta a paulista Dora de Castro no torneio Sul-Americano Feminino, em São Paulo, 1960 (Foto: Reprodução)

“Uma das coisas mais marcantes sobre Ruth é que ela não aprendeu a jogar naquela idade que os grandes prodígios aprendem, entre 4 e 5 anos. Ela só começou a jogar tardiamente, mais ou menos entre 15 a 17. Mesmo assim, era um fenômeno. Constantemente era convidada para jogar nos Estados Unidos, com tudo pago e ainda premiação caso conquistasse títulos, o que invariavelmente acontecia”, diz José Pinto de Paiva, 82 anos, bicampeão brasileiro de xadrez, em 1966 e 1971.

Poliglota, durante suas viagens em competição, Ruth trazia revistas internacionais para os enxadristas baianos, além de livros, tabuleiros e material de estudo.

“Numa época em que não existia internet, ela era o elo de ligação entre o xadrez disputado na Bahia e o de excelência dos grandes centros. Muitos jogadores baianos se aperfeiçoaram nas técnicas com o material trazido por ela”, reforça Paiva.

Tímida e exuberante
Deive Pacheco tinha apenas 15 anos quando se sentou numa mesa frente a frente com a lenda internacional. O atual vice-presidente da FBX não esquece da inteligência da oponente e muito menos da sua respiração marcante.

“Ela tinha uma capacidade de jogo fantástica. Conseguia reposicionar as peças rapidamente quando estava em um momento de aperto. Lembro também de como puxava o ar a cada jogada. Respirava com certa dificuldade”, pontua.

Ata da fundação da Federação Baiana de Xadrez (FBX), com assinatura de Ruth Cardoso (Foto: Acervo FBX)

Professor de matemática da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e estudioso de xadrez, Daniel Góes, 59, define Ruth como uma figura extremamente dedicada ao esporte, mas também “introspectiva e de pouca fala”.

“Já no tabuleiro, tinha uma característica diferente. Não era de ficar se defendendo. Pelo contrário! Era propositiva. Tinha um jogo muito vistoso e era aquilo que chamamos de jogadora tática posicional. Além de um estilo muito admirável, era a única mulher em um esporte dominado por homens. Isso nunca a intimidou. Ruth impunha respeito”, conta.

Sobrevivente da guerra
Quando Ruth Cardoso morreu, em fevereiro de 2000, uma história enigmática sobre sua infância veio à tona. Durante o velório, um alemão, parente próximo, revelou aos convidados as razões obscuras da enxadrista respirar com dificuldade durante as partidas.

Nascida em 1934, ainda na primeira infância, Ruth acompanhou os pais em mudança de mala e cuia para a Alemanha, na perspectiva de uma vida mais próspera. O erro de cálculo foi desastroso.

Pouco tempo depois, em 1939, seria deflagrada a Segunda Guerra Mundial, com os peões de Hitler invadindo o território da Polônia e, em sequência, deflagrando ataques simultâneos por toda Europa.

A família Volk, braço materno de Ruth, era de origem judia. Ela foi levada para o campo de concentração nazista, juntamente com a mãe. Lá, sofreria com as barbaridades do Holocausto, carregando sequelas definitivas que comprometeriam um dos seus pulmões. Por terem cidadania brasileira, contou o alemão, ela e a mãe teriam conseguido, com extremo esforço e uso de relações políticas, negociar a libertação e o retorno imediato aos trópicos.

Ao longo da vida, mesmo com capacidade respiratória reduzida, Ruth teve fôlego para uma vida motivada pelos embates em preto e branco e as paixões coloridas.

“Quando ela ia disputar os torneios internacionais, por ser muito bonita, era cortejada pelos grandes campeões da história do esporte. Bobby Fischer, Pal Benko, Kasparov. Todos tinham profunda admiração pela qualidade do jogo dela, pela pessoa que era, mas também pela beleza física”, diz Jorge Ferreira, 44, atual campeão baiano de xadrez.

Olímpiada Internacional de Xadrez, na França. Em 1972, Ruth foi medalha de prata na disputa (Foto: Reprodução)

Ferreira conta ainda que, nos anos derradeiros, conviveu muito perto como “dona Ruth”, como a chamava, em deferência.

“Ela me contava coisas sobre o fantástico Bobby Fischer, de quem era muito amiga. Eu ficava impressionado com aquela mulher, que era extremamente simples, mas dona de um jogo absurdamente fantástico e reverenciado em todo mundo. Ela foi namorada de um dos mais importantes jogadores de xadrez da história, Pal Benko”.

A rainha cortejada
Assim como a enxadrista baiana, Benko também sofreu com os horrores da Segunda Grande Guerra. Era húngaro e precisou servir, ainda muito jovem, ao exército nacional que resistiu ao cerco a Budapeste, em 1945.

Pal Benko, enxadrista húngaro que revolucionou o esporte e se apaixonou perdidamente pela baiana (Foto: Reprodução)

Ao fim dos conflitos, com os tratados de paz devidamente assinados, mudou-se para os Estados Unidos e passou a se dedicar exclusivamente ao esporte. Entre os tantos embates com o exímio Bobby Fischer, revolucionou o xadrez ao criar uma jogada de abertura que ficou batizada como o “Gambito Benko”. Um lance que consiste em abrir espaços para capturar rapidamente a dama do adversário.

Ao se apaixonar perdidamente por Ruth, levou o contragolpe. “Benko foi tão apaixonado por ela que vinha direto aqui na Bahia para vê-la. Ele chegou, inclusive, a fazer campeonatos aqui em Salvador, participou de torneios no shopping Barra e na própria Federação Baiana de Xadrez, orientando jovens jogadores. Tudo isso por ela. Dona Ruth também passava muito tempo nos Estados Unidos. Foi uma relação intensa entre os dois. Depois que terminaram o namoro, ainda ficaram grandes amigos”, conta Ferreira.

Ruth, já aposentada, faz participação especial num torneio (Foto: Site As Enxadristas/Reprodução)

Na qualidade de uma exímia jogadora, Ruth antecipou os últimos movimentos antes de sua definitiva capitulação. Deixou um espólio de livros, revistas, tabuleiros e peças para a Federação Baiana de Xadrez. Despediu-se de amigos, dos amores e dos tantos admiradores que acompanharam sua carreira.

Não deixou filhos e nem marido. Morreu aos 66 anos, rainha solo, em casa.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *