O lado desconhecido de ‘A Noviça Rebelde’: história da família Von Trapp envolve falência, prisão e incêndio
A atriz e cantora Malu Rodrigues, de 30 anos, é daquelas cinéfilas que, quando cai de amores por um filme, gosta de assisti-lo repetidas vezes. Quando o filme em questão é A Noviça Rebelde (1965), então, nem se fala.
Na primeira vez que assistiu, ainda pequena, ficou encantada com as crianças do filme e quis ser uma delas.
Anos depois, já adolescente, se apaixonou pela atriz Julie Andrews, uma de suas referências como atriz de musical.
Não faz muito tempo, antes da estreia da nova montagem em junho de 2024 no Rio de Janeiro, assistiu mais uma ou duas vezes.
“O filme é apaixonante. Fala de amor, fé, união… Parece mágico, de outro planeta”, derrete-se Malu, que já atuou no espetáculo três vezes: em 2008, como Louisa von Trapp e, em 2018 e 2024, como fräulein Maria.
“O que mais me encanta, além da história, são as músicas. Não é à toa que está na memória afetiva de tanta gente.”
Após uma temporada em São Paulo, a montagem de A Noviça Rebelde com Malu no elenco, voltará ao Rio, na Cidade das Artes, a partir de 5 de setembro.
O espetáculo conta com uma orquestra de nove músicos, regidos pelo maestro Marcelo Castro, e um elenco de 43 atores, sendo 18 crianças que se apresentam em dias alternados. No palco, um telão gigante de LED de três toneladas e 112 metros quadrados reproduz as paisagens de Salzburgo, na Áustria.
Sucesso de bilheteria
Tanto o clássico de Robert Wise (1914-2005) quanto o musical da Broadway e a adaptação brasileira de Charles Möeller & Cláudio Botelho são baseados no livro A Família Trapp (“The Story of the Trapp Family Singers”, no original), escrito por Maria Augusta Trapp (1905-1987) em 1949.
Sete anos depois, ela aceitou vender a história de sua família por módicos US$ 9 mil para uma produtora alemã — mal podia imaginar o sucesso que faria. O cineasta alemão Wolfgang Liebeneiner transformou sua biografia em dois filmes: A Família Trapp (1956) e A Família Trapp na América (1958), ambos falados em alemão.
Não demorou muito e os direitos do livro foram vendidos para Broadway e Hollywood. A peça, batizada de The Sound of the Music, estreou em 1959 e o filme, homônimo, em 1965.
Antes de Julie Andrews aceitar o convite de Wise para interpretar a personagem-título, a 20th Century Fox cogitou outros nomes, como Audrey Hepburn (1929-1993), Doris Day (1922-2019) e Grace Kelly (1929-1982).
“É inacreditável. Se alguém dissesse, em 1965, que eu estaria dando entrevista no aniversário de 50 anos do filme, acharia uma loucura”, espantou-se a atriz, em 2015. “Mas aqui estou. E muito feliz de estar fazendo isso”.
Só de Oscar, A Noviça Rebelde arrebatou cinco estatuetas, incluindo os de melhor filme, diretor e trilha sonora original para a dupla Rodgers e Hammerstein.
O outro lado
A história dos von Trapp deu origem a outro livro: A Noviça Rebelde — Memórias de Antes e Depois do Grande Sucesso do Cinema (“Memories Before and After the Sound of Music”), de Agathe von Trapp (1913-2010). Agathe é uma das filhas do capitão Georg von Trapp (1880-1947), imortalizado pelo ator Christopher Plummer (1929-2021).
Na ficção, a primogênita é Liesl, inspirada na própria Agathe e interpretada, no filme, pela atriz Charmian Carr (1942-2016). Mas, na realidade, o mais velho dos sete filhos é Rupert (1911-1992).
Os nomes das crianças também foram mudados. No filme, Rupert, Agathe, Maria (1914-2014), Werner (1915-2007), Hedwig (1917-1972), Johanna (1919-1994) e Martina (1921-1951) ganharam novos nomes. Foram “rebatizadas” de Friedrich, Liesl, Louisa, Kurt, Brigitta, Marta e Gretl.
No livro, Agathe se queixa do modo “severo”, “distante” e “inflexível” como seu pai foi retratado no filme. “Era gentil, amável e sensível”, revela. “Mamá não poderia ter encontrado um pai melhor para nós.”
Durante as filmagens de A Noviça Rebelde, Maria von Trapp chegou a comparecer ao set. Queria convencer o diretor a mudar um pouco o perfil do capitão. De nada adiantou.
Como prêmio de consolação, ganhou uma rápida aparição, quase imperceptível, durante a música I Have Confidence, interpretada por Julie Andrews.
Georg e Agathe Whitehead (1890-1922) se conheceram em 1909, em uma festa após o lançamento do submarino austríaco U-5. Ele era um alto oficial da Marinha austro-húngara e ela, a neta do inventor do torpedo, o britânico Robert Whitehead (1823-1905).
Os dois se casaram em 14 de janeiro de 1911 e, como todos sabem, tiveram sete filhos.
Em 1922, um surto de escarlatina, doença contagiosa que ataca a garganta, matou Agathe e adoeceu Martina, a caçula da família.
A matriarca chegou a ser levada para um sanatório de Viena, onde permaneceu internada por oito meses, mas não resistiu à infecção. Morreu no dia 3 de setembro de 1922.
O apito da discórdia
Com a morte da mulher, Georg ficou sozinho para cuidar dos sete filhos — a mais velha, de 10 anos, e a mais nova, com menos de dois. Foi quando decidiu contratar babás para tomar conta delas. Não deu muito certo. Uma delas foi “carinhosamente” apelidada de “O Dragão” pelas crianças.
A família se mudou para Salzburgo, a 298 quilômetros de Viena. Martina melhorou da escarlatina. Maria, em compensação, caiu doente. O pai, então, conversou com o diretor do colégio onde os filhos estudavam e pediu a indicação de uma aluna mais velha para ajudar Maria com o dever de casa.
Como não havia estudantes disponíveis, ele sugeriu uma noviça da abadia de Nonnberg, Maria Augusta Kutschera, ou simplesmente Gustl, então com 21 anos. A urgência era tanta que Georg contratou a noviça sem fazer entrevista ou pedir referência.
No dia seguinte, Maria apareceu para trabalhar na casa do capitão. Em uma das mãos, carregava um estojo de violão. Logo na entrada, a candidata a freira confundiu o mordomo com o anfitrião.
No livro, Agathe relata uma cena reproduzida no clássico de Robert Wise: a do capitão chamando os filhos com um apito de contramestre de barco. Se fosse chamar os filhos pelos nomes, pondera a autora, eles provavelmente não ouviriam o chamado — seus quartos ficavam no segundo andar.
“Cada um de nós tinha um determinado sinal, e Papá tinha um sinal especial para chamar todos juntos. Adorávamos nossos sinais. Talvez alguns de nós tenhamos até imaginado que éramos tripulantes de um navio comandado por ele”, recorda Agathe. “No entanto, ele nunca usou o assobio para chamar os empregados ou para nos colocar em posição de sentido”.
Amigas de infância
Maria e Agathe logo viraram confidentes. A diferença de idade entre as duas era de apenas oito anos.
Maria contou que nasceu em um trem que saiu do Tirol em direção a Viena. Sua mãe morreu dois anos depois e o pai tratou logo de confiar o bebê aos cuidados de uma mãe adotiva.
Antes de ingressar na vida religiosa, Maria gostava de escalar montanhas, andar de bicicleta e jogar vôlei. No convento, não perdeu o jeito irreverente de ser. Deslizava pelo corrimão das escadas, assobiava alto pelos corredores e chegava atrasada às orações.
“Não era tão boazinha quanto aparento no filme”, declarou, certa vez, em entrevista. “No convento, fui travessa. Assim que puderam, se livraram de mim”, ri.
Quando viu que Maria gostava de seus filhos, e eles dela, Georg resolveu pedir sua mão em casamento. Os dois se casaram no dia 27 de novembro de 1927. Na ocasião, Maria tinha 22 anos e George, 47. Casados, tiveram três filhos: Rosmarie (1929-2022), Eleonore (1931-2021) e Johannes, o único ainda vivo, aos 85 anos.
Unidos venceremos
Quando a família von Trapp ainda morava em Salzburgo, Agathe lembra da noite em que o pai reuniu os filhos na frente da lareira. Ele, então, pegou um graveto seco e indagou: “Vocês acham que consigo quebrar esse graveto em dois?” “Sim, consegue”, responderam. Dito e feito.
Dali a pouco, pegou vários gravetos e perguntou novamente: “E agora, consigo?” Os filhos se entreolharam e, relutantes, responderam: “Não sabemos”. Ele tentou e, de fato, não conseguiu.
“Se vamos em direções diferentes, cada um de nós pode se perder ou ter problemas, mas, se permanecemos todos juntos, seremos fortes”, ensinou o pai.
Agathe von Trapp descreve uma das cenas mais românticas de A Noviça Rebelde, a da canção Sixteen Going On Seventeen, como uma “criação puramente hollywoodiana”. “Um telegrama importante não foi entregue em nossa casa por um adolescente numa bicicleta”, revela.
A exemplo de Do-Re-Mi, My Favorite Things e So Long, Farewell, Sixteen Going On Seventeen tinha letra de Oscar Hammerstein II (1895-1960) e música de Richards Rodgers (1902-1979). A canção Edelweiss foi a última parceria da dupla. Hammerstein II morreu pouco depois, de câncer no estômago.
Próxima parada: liberdade
A família von Trapp fugiu da Áustria em 1938, ano em que o país foi anexado pela Alemanha nazista. Mas, a rota de fuga é diferente daquela mostrada no filme. Em vez de seguir pelas montanhas rumo à Suíça, pegou um trem com destino à Itália: “Tudo o que precisamos fazer foi sair por um pequeno portão no fim do jardim, atravessar os trilhos da estrada de ferro e entrar na estação”.
Em algo, porém, ficção e realidade falam a mesma língua. A aversão do capitão à figura de Adolf Hitler (1889-1945). Entre outras coisas, Georg se recusou a hastear a bandeira nazista em sua casa em Salzburgo e, por ocasião do aniversário do Führer, se negou a se apresentar com sua família em uma rádio de Munique.
“Meu pai era um homem de princípios e não desejava ter qualquer contato com Hitler”, garante Agathe. “Se tivéssemos permanecido na Áustria, teríamos desaparecido em campos de concentração”.
Cai o pano
Da Itália, a família seguiu para Inglaterra. No porto de Southampton, embarcou no navio American Farmer rumo a Nova York. Dez dias depois, avistou a América. Do outro lado do Atlântico, um empresário chamado Charlie Wagner agendou uma série de apresentações. O repertório ia de músicas religiosas a canções folclóricas.
A bordo de um ônibus fretado, o coral se apresentou em diversos Estados americanos, como Pensilvânia, Michigan e Virgínia. Entre uma apresentação e outra, conhecia igrejas, visitava museus e tirava fotos. Entre 1936 e 1956, Agathe calcula ter se apresentado, ao lado dos irmãos, em mais de 30 países, como França, Inglaterra, Suécia, Dinamarca, Austrália e Nova Zelândia. Por muito pouco, não foram até o Japão. Desistiram antes.
Aos poucos, os integrantes da formação original começaram a se despedir do coral. Rupert, por exemplo, saiu do grupo vocal em 1945, porque se formou médico, e Johanna, em 1948, porque se casou. Dos sete filhos do capitão, Martina foi a primeira a morrer, em 1951, aos 30 anos, e Maria, a última, em 2014, aos 99.
Em 1950, o coral veio à América do Sul para uma série de concertos no Brasil, Uruguai e Argentina. No Rio de Janeiro, se apresentou no Theatro Municipal e na extinta Rádio Mayrink Veiga. Além de Rupert e Johanna, o coral já não contava mais com Georg von Trapp, que morrera três anos antes, de câncer no pulmão.
No Brasil, o sobrenome da família batizou “uma das comédias mais bem-sucedidas da TV brasileira”, lembrou o jornalista Artur Xexéo (1951-2021) em crônica publicada no jornal O Globo de 13 de outubro de 2019, referindo-se ao seriado A Família Trapo, da TV Record. Exibido entre 1967 e 1971, o humorístico foi protagonizado, entre outros, por Jô Soares (1938-2022) e Ronald Golias (1929-2005).
A última apresentação da família cantora austríaca ocorreu no dia 26 de janeiro de 1956, em New Hampshire, nos EUA.
A grande família
Ao longo das décadas, a família von Trapp passou por incontáveis apuros. Em 1933, perdeu tudo o que tinha depois que o banco que administrava sua fortuna foi à falência; em 1939, foi detida por três dias quando Maria deixou escapar a um oficial da Imigração em Nova York que, se pudesse, nunca mais sairia dos EUA; em 1980, teve sua fazenda, a Trapp Family Lodge, em Stowe, no Vermont, completamente destruída por um incêndio.
Hoje em dia, o resort da família é administrado por Sam e Kristina von Trapp, filhos de Johannes. Sam, inclusive, fala português fluentemente. Ele conta que trabalhou como professor de esqui em Portillo, a 164 quilômetros de Santiago do Chile, onde conheceu muitos brasileiros.
“Aprendi a pegar onda em Ubatuba, em São Paulo, e em Itacaré, na Bahia”, gaba-se o americano de 52 anos. “Infelizmente, dois dos meus tios já tinham morrido quando nasci. Mas, convivi bastante com os demais. Nos almoços de domingo, gostavam de cantar depois da refeição.”
Sam tinha 15 anos quando Maria, sua avó, morreu, em 1987. “Era uma pessoa muito legal e generosa. Mesmo assim, se você fizesse algo errado, ela não pensava duas vezes antes de chamar sua atenção”, puxa pela memória. “Ela me ensinou muitas coisas. Mas, acho que a principal delas foi amar o que você faz”.