O livro de receitas que os nazistas roubaram
Obra de cozinheira judia foi best-seller na década de 1930. Autora conseguiu fugir dos nazistas, mas eles republicaram seu livro sob um nome ariano.
Kaiserschmarrn, strudel de maçã com massa aberta à mão e faschingskrapfen, os “donuts do carnaval”: receitas para esses e outros típicos pratos austríacos podem ser encontradas nas mais de 500 páginas do livro de culinária So kocht man in Wien (Assim se cozinha em Viena), de Alice Urbach. Na década de 1930, praticamentete toda família tinha um exemplar dele na prateleira. O livro se tornou um best-seller, e Urbach, uma autora de sucesso. Mas a fama não durou muito.
Quem foi Alice Urbach?
Alice Urbach nasceu em Viena em 1886, filha de pais judeus, de olhos azuis e cabelos claros. Seus pais tinham grandes planos para os filhos: queriam que se tornassem médicos ou advogados da classe alta vienense. Mas a pequena Alice não era a criança prodígio que eles desejavam e, desde cedo, interessou-se pela cozinha. Com petits fours, ela tentava causar impressão e atrair a atenção do pai severo – em vão.
Pelo menos ela acabou se casando com um médico, embora ele se interessasse mais por cassinos do que por ela. O marido morreu oito anos após o matrimônio, deixando-a sozinha com dois filhos pequenos, completamente desamparada. E agora, o que fazer? Ela arregaçou as mangas, fundou uma escola de culinária, deu palestras sobre a cozinha vienense moderna com títulos como “A cozinha rápida da mulher trabalhadora”, organizou exposições de arte culinária e inventou o primeiro serviço de entrega de pratos quentes da capital austríaca. Dessa forma, a viúva garantiu o sustento para si e seus dois filhos no período entre guerras. Ao mesmo tempo, pôde perseguir sua verdadeira paixão: cozinhar.
“O Livro de Alice”: Karina Urbach conta a história de sua avó
“Alice era uma mulher pequena, doce e rotunda, parecendo um bolinho”, descreve a neta Karina Urbach em entrevista à DW. Recentemente, a historiadora publicou pela editora Propyläen Das Buch Alice: Wie die Nazis das Kochbuch meiner Großmutter raubten (O Livro de Alice: como os nazistas roubaram o livro de receitas de minha avó).
Sua avó era divertida e bem-humorada, amorosa e generosa, e sempre perfeitamente bem-vestida, conta a neta. Mas ao contrário de Alice, Karina não sabe cozinhar. “Por isso nunca me interessei pelo fato de termos em casa dois livros de receitas na prateleira com o título Assim se cozinha em Viena“, conta a pesquisadora.
O texto e as fotos em cores eram idênticos em ambos, apenas os nomes dos autores nas capas eram diferentes: “Na edição de 1938, ‘Alice Urbach’ foi dada como autora; já na edição de 1939, é um homem chamado ‘Rudolf Rösch’, revela a neta logo no início do livro. O que ela viria a descobrir no decorrer de suas pesquisas é surpreendente.
Em 12 de março de 1938, a Wehrmacht alemã invadiu e anexou a Áustria, forçando Alice a fugir. Na mala, não podia faltar o essencial: seu livro de receitas. Inicialmente, ela se estabeleceu na Inglaterra, onde trabalhou como cozinheira e manteve acomodações para órfãos judeus que conseguiam chegar ao Reino Unido nos transportes infantis.
Após a guerra, Alice, então com 60 anos, foi atrás de seus filhos nos Estados Unidos. Sossegar, porém, não fazia parte do seu temperamento. Também no exterior ela se tornou uma celebridade, cozinhando até os 90 anos em programas de TV. Era considerada a cozinheira mais idosa dos EUA, encantando o público com suas receitas austríacas e um delicioso sotaque.
Roubo de direitos autorais pelo regime nazista
Mas um de seus desejos não pôde ser alcançado antes da morte, em 1983: os direitos autorais de sua obra. Como acabou descobrindo por acaso durante uma visita a uma livraria, o conjunto de receitas havia sido republicado em 1938 como uma obra de “Rudolf Rösch”. O livro fora “arianizado” pelos nazistas.
“Até hoje não tínhamos um termo para expressar o que aconteceu com Alice e outros autores judeus de não ficção”, explica Karina Urbach. “Quando falamos da arianização de livros, cientificamente nos referimos a livros oriundos de bibliotecas judaicas que foram roubados e agora estão sendo restituídos. Ninguém jamais havia pesquisado o roubo da propriedade intelectual. Quando eu pesquisei sobre Alice, pensei que ela era uma vítima isolada, mas não.”
Apenas alguns casos são conhecidos até o momento. Por exemplo, o de Ludwig Reiners, que copiou o escritor judeu Eduard Engels para seu best-seller Stilkunst. Ninguém sabe ao certo, porém, quantos autores judeus foram afetados.
Fato é: “Esse método foi usado várias vezes por editoras científicas”, afirma Urbach. No caso de Alice, o prefácio foi reescrito, alguns capítulos parafraseados, mas a maioria foi simplesmente transcrita. Pior: até fotos em que suas mãos apareciam foram impressas. “Isso mostra a loucura da doutrina racial. Na época, dizia-se que os livros judeus eram inferiores, e apesar disso, a editora ainda exibiu essas mãos judias.”
A arianização de livros é um capítulo da história alemã ainda por esclarecer. Até porque os documentos pertinentes ficaram retidos pelos arquivos por muito tempo, e as editoras evitam olhar para o próprio passado. Mas Urbach vê avanços: “Recebi notícias muito boas da editora: eles se ofereceram para publicar o livro de Alice no formato e-book”, conta a historiadora.
Hoje, 85 anos após a publicação do título original, os direitos autorais de Alice Urbach deverão enfim ser restituídos. Um grande sucesso para Karina Urbach – e um possível primeiro passo para lidar com esse capítulo pouco conhecido da história alemã.