O Nobel que um baiano tirou do Brasil, e o gringo que impediu um Nobel baiano
Quando o Vitória chegou à final do Brasileiro de 1993, um quinhão considerável da torcida do rival adotou uma postura improvável/impossível atualmente: “vamos torcer pelo Vitória por estar representando o futebol da Bahia”. Meu pai, tricolor, era um desses, e quase ninguém estranhava o curioso apoio – aliás, algo que aconteceu também em situação oposta nos românticos 90’s. Meu time perdeu o título e segue donzelo de nacionais, assim como o Brasil em relação a prêmios Nobel.
Nos últimos dias, as instituições suecas responsáveis pela premiação anunciaram os ganhadores do ano, e mais uma vez os BR passaram em branco, e tudo bem, é sobre isso. Nada novo debaixo do sol, mas talvez te surpreenda a informação que boa parte da culpa para o país perder um Nobel de Medicina, na primeira metade do século XX, é de um médico baiano que torceu contra a própria pátria, personificada num colega de profissão. E mais: na metade seguinte do século, consta que um sueco sacana manobrou para tirar o Nobel de Literatura do baiano Jorge Amado, por anos um dos favoritos ao prêmio.
O Nobel que tiramos
Antes de contar o b.o. envolvendo o pai de Gabriela e Dona Flor, te convido a dar uma volta ligeira na Avenida Suburbana. O importante corredor viário, que corta alguns dos bairros mais populosos – e de maioria negra – da capital baiana, foi batizado em homenagem a Afrânio Peixoto, médico que defendeu a não imigração de pessoas pretas para o Brasil.
Bom, a escrotidão de doutor Peixoto também vitimou o cientista mineiro Carlos Chagas, de quem era reconhecido rival. CC foi indicado ao Nobel de Medicina e Fisiologia em quatro ocasiões, e naquela em que estava mais próximo de entrar com bola e tudo, em 1921, foi boicotado pelo baiano de Lençóis.
Carlos Chagas foi indicado quatro vezes ao prêmio. Quando era favorito, Afrânio Peixoto e outros desafetos o contraindicaram (Foto: Acervo Fiocruz) |
Reportagem da Folha de 1999 relata a descoberta, com 85 anos de atraso, dessa intriga nos bastidores. Anos antes das indicações ao panteão da Medicina, Chagas apresentou à comunidade científica um combo de novidades: um novo parasita (o protozoário Trypanosoma cruzi) transmitido por um inseto que se alimenta de sangue (hematófago). Descobriu que o bichinho, além de chupar o sangue, literalmente cagava na ferida de diferentes vertebrados, incluindo humanos, e explicou como se dava todo o processo da doença infecciosa.
O cientista, portanto, acabava de descobrir e descrever (de ponta a ponta, algo inédito) uma nova doença tropical, a tripanossomíase americana, hoje conhecida como doença de Chagas. Reiterando agora com palavras da Wikipédia: “é o único cientista na história da Medicina a descrever completamente uma doença infecciosa.”
Pelo feito, ganharia o Nobel de Medicina em 1921 sem concorrentes, não fosse a interferência de Afrânio e outros recalcados.
Em 1925, Chagas foi um dos anfitriões da visita de Albert Einstein ao Instituto Oswaldo Cruz, no Rio (Foto: J. Pinto/Acervo Fiocruz) |
Quem fez esse relato da torcida contrária ao rival (‘mal aê, Brasil!’) foi o historiador Sierra Iglesias, segundo o qual o instituto sueco se dirigiu a organismos brasileiros (incluindo desafetos de Chagas e seu bróder, Oswaldo Cruz), e essa galera do mal desaconselhou a premiação.
“El Instituto sueco se había dirigido a organismos científicos del Brasil recabando datos sobre su personalidad, sobre su obra, pero algunos de sus próprios compatriotas (increíblemente, entre ellos algunos no médicos, por lo tanto primariamente inhabilitados para juzgar el descubrimiento de la tripanosomiasis), lo desaconsejaron”, comenta Sierra em espanhol entendible. Resultado: o Nobel de Medicina deu deserto, ficou sem vencedor naquele ano. Es muele?
O Nobel que nos tiraram
Outro puxão de tapete conhecido, que também custaria um Nobel ao Brasil, teve como ‘vítima’ o escritor Jorge Amado, que durante anos aguardou na fila do pão enquanto via amigos receberem o tão desejado laurel, a exemplo de Pablo Neruda (1971), Gabriel García Márquez (1982) e Jean-Paul Sartre.
Jorge Amado foi durante anos candidato e até favorito ao Nobel de Literatura, mas não ganhou (Foto: Acervo Biblioteca Nacional) |
Tinha passado um ano de quando Sartre, vencedor do Nobel de 1964, tinha recusado o prêmio – o mesmo Sartre que veio ao lado da esposa, a filósofa Simone de Beauvoir, conhecer Feira de Santana a convite de Jorge, em 60 –, e finalmente chegava a vez do grapiúna. Só que não.
Em ‘Jorge Amado: Uma Biografia’, a escritora Joselia Aguiar conta que em 65 deu-se início ao burburinho para levantar a candidatura do autor de ‘Capitães da Areia’. Naquele ano, entusiastas enviavam cartas à Embaixada da Suécia no Brasil e diretamente a Estocolmo, pedindo atenção ao distinto candidato.
Chegou a ser criada a campanha “Um Nobel para Jorge Amado”, que seguiu de 66 em diante, com apoios de todo canto. As indicações ao prêmio, no entanto, só podiam ser feitas por instituições ligadas à literatura, ou por outros autores de relevo e autoridades.
E logo em 1967, Jorge fazia parte de uma lista final de possíveis laureados. A indicação veio da União Brasileira de Escritores, da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais e de professores das universidades americanas de Columbia, Texas e Vanderbilt.
Naquele ano, venceu outro amigo, também pertencente aos quadros do comunismo internacional, o guatemalteco Miguel Ángel Asturias. “A láurea nunca chegaria, e Jorge desconfiava que talvez um dos mais resistentes a sua vitória fosse alguém de dentro do júri de Estocolmo, Artur Lundkvist”, explica Joselia.
A fofoca chegou aos ouvidos do baiano através do próprio Asturias e do chileno Neruda. A oposição do sueco ao nome de Jorge Amado seria uma espécie de vingança, depois da recusa do escritor ao compositor finlandês Jean Sibelius numa votação do Prêmio Lênin. Sibelius era o candidato indicado por Lundkvist, também um dos jurados, e Jorge, como secretário do júri na ocasião, dispunha de “certo poder de manobra e decisão”.
Lundkvist não deixou barato e, ao frustrar os anseios de Jorge, alugou um apartamento na cabeça do escritor, que volta e meia comentava a alegada vendetta. “Levei a culpa, alguma tive, não fui contudo o autor do crime, não passei de mero cúmplice”, comentou numa ocasião, a primeira de muitas com esse teor que se seguiram ao longo dos anos, e que passaram a chateá-lo cada vez mais, a cada nova frustração: “não escrevo para prêmios cargos, postos, títulos”, “não faço vida literária”, “considero que meu prêmio é meu público”.
Fonte: Correio