O que diz a lei inédita da Califórnia que abre caminho para indenizações pela escravidão

Alessandra Corrêa

Foto mostra um homem negro não identificado trabalhando em uma mina de ouro em 1852
Muitas pessoas negras escravizadas eram forçadas a trabalhar em minas durante a corrida do ouro na Califórnia, a partir de 1848

Apesar de ter ingressado na União, em 1850, como um “Estado livre”, a Califórnia tem um doloroso passado ligado à escravidão de pessoas negras em seu território. Mesmo não sendo sancionada pelo governo estadual, a prática era tolerada e facilitada por leis que abriam uma série de exceções à proibição.

Esse histórico pouco conhecido contrasta com a imagem do Estado, considerado um dos mais liberais dos Estados Unidos e com papel importante na luta por direitos civis. Foi com o objetivo de confrontar esse passado que, nesta semana, a Califórnia se tornou o primeiro Estado americano a sancionar uma lei que abre caminho para reparações pela escravidão.

A lei, de autoria da deputada estadual Shirley Weber, determina que seja criada uma força-tarefa com nove integrantes para “estudar e desenvolver propostas de reparação para afro-americanos, com especial consideração àqueles descendentes de pessoas escravizadas nos Estados Unidos”.

Caberá ao grupo fazer recomendações sobre que tipo de reparações poderiam ser oferecidas e quem seriam os beneficiados, entre outros detalhes, e também sobre como o Estado pode oferecer um pedido de desculpas formal “pela perpetração de graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade cometidos contra escravos africanos e seus descendentes”.

A força-tarefa terá prazo de um ano para apresentar um relatório. As recomendações não serão obrigatórias. Além de estudar o impacto que a escravidão teve na população negra do Estado, também deverá sugerir “maneiras de educar o público da Califórnia” sobre suas descobertas.

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“O nosso doloroso passado de escravidão evoluiu para o racismo estrutural e preconceito permeando nossas instituições democráticas e econômicas”, disse o governador Gavin Newsom ao sancionar a lei, na quarta-feira (30/09).

“A Califórnia historicamente liderou o país em (questões relacionadas a) direitos civis, mas nós ainda não nos reconciliamos com o passado feio do nosso Estado, que permitiu a posse de escravos dentro de suas fronteiras e devolveu escravizados fugitivos a seus senhores”, complementou Weber.

Corrida do ouro

Não há dados precisos sobre o número de pessoas negras escravizadas na Califórnia, mas historiadores calculam que tenham sido várias centenas.

Ao se tornar Estado e ingressar na União, a Califórnia tinha uma Constituição que proclamava que “nem escravidão nem servidão involuntária, a não ser quando for punição por um crime, serão jamais toleradas”.

Mas essa proibição foi enfraquecida por uma série de outras regras, fazendo com que a escravidão fosse praticada abertamente no Estado até a abolição em nível nacional, com o fim da Guerra Civil, em 1865.

“Em 1848, quando a corrida do ouro começou, moradores brancos dos Estados do Sul invadiram a Califórnia com centenas de pessoas negras escravizadas”, diz a historiadora Susan Anderson em artigo publicado pela Sociedade Histórica da Califórnia.

Segundo Anderson, essas pessoas eram forçadas a trabalhar nas minas de ouro, além de serem oferecidas para cozinhar, servir e fazer outros serviços, como escravas.

“No entanto, o lugar da Califórnia na história nacional da escravidão está ausente da maior parte dos relatos históricos, e muitos se surpreendem ao aprender sobre essa prática no Golden State (Estado Dourado, o apelido da Califórnia)”, observa.

Uma das leis estaduais que facilitavam a escravidão era a chamada “Lei do Escravo Fugitivo”, aprovada em 1852, segundo a qual pessoas negras escravizadas que tivessem entrado na Califórnia quando ainda era um território não tinham direito legal à liberdade.

Já existia uma lei nacional de mesmo nome, aprovada dois anos antes, que dizia que autoridades e cidadãos brancos em qualquer lugar do país deveriam ajudar a recapturar pessoas escravizadas que haviam fugido de Estados onde a prática era permitida. Mas a legislação da Califórnia afetava também pessoas negras escravizadas que não haviam necessariamente fugido de Estados escravistas.

A Califórnia também permitia que senhores entrassem em seu território com seus escravos, desde que estivessem de passagem e não pretendessem se estabelecer no Estado de forma permanente.

Anderson salienta que a escravidão era enfrentada com atos de resistência pelos moradores negros do Estado. A Califórnia abrigava cerca de 2 mil pessoas negras livres na época, a maioria vinda de outras partes do país durante a corrida do ouro, e estas costumavam ajudar os escravizados a conquistarem a liberdade.

Interesse renovado

Placa de rua em Los Angeles
Lei criada por deputada estadual Shirley determina criação de força-tarefa para “estudar e desenvolver propostas de reparação para afro-americanos, com especial consideração àqueles descendentes de pessoas escravizadas nos EUA”

O tema das reparações é polêmico e antigo, sendo discutido desde o fim da Guerra Civil, em 1865, quando o general da União William Sherman prometeu que as famílias negras que haviam sido escravizadas receberiam “40 acres e uma mula”, a partir de terras confiscadas dos confederados.

Essa promessa nunca foi cumprida, mas, desde então, a ideia de que o governo deveria pagar compensação financeira pelos dois séculos e meio de escravidão – e, posteriormente, pelas décadas de segregação e terror racial que se seguiram – sempre esteve presente, em alguns períodos com maior intensidade do que em outros.

A lei sancionada nesta semana teve apoio tanto de políticos democratas quanto de republicanos, em um momento em que o debate sobre reparações pela escravidão volta a gerar interesse nos Estados Unidos, em meio aos protestos contra injustiça racial desencadeados pela morte de George Floyd, um homem negro morto sob custódia de um policial branco em maio.

Mas Weber ressalta que sua proposta foi elaborada no ano passado, antes da morte de Floyd e da comoção nacional que se seguiu e antes da pandemia de covid-19 e da crise econômica, que afetaram desproporcionalmente a população negra e chamaram atenção para as disparidades raciais no país.

Neste ano de eleições, vários candidatos ao Senado, à Câmara e a outros cargos públicos incluíram o tema em suas plataformas. O candidato democrata à Presidência, Joe Biden, disse que apoiaria a realização de estudos sobre o assunto.

No ano passado, pela primeira vez, a Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) realizou uma audiência para discutir reparações. A audiência ocorreu depois de uma proposta sobre o tema ter sido apresentada todos os anos ao Congresso desde 1989, sem nunca ter ido adiante.

Governos estaduais e municipais e instituições privadas também passaram a discutir o assunto recentemente. Em julho, a cidade de Asheville, na Carolina do Norte, aprovou uma resolução sobre reparações, que prevê investimentos em áreas onde a população negra enfrenta disparidades e inclui um pedido formal de desculpas, mas não oferece pagamento direto em dinheiro a descendentes de escravos.

Sem consenso

Os detalhes sobre a melhor forma de oferecer reparações, quanto e como pagar e como decidir quem teria direito costumam provocar divisões mesmo entre os que apoiam a ideia.

Em reação à proposta da Califórnia, um dos maiores especialistas dos Estados Unidos no assunto, o economista William Darity, professor da Duke University, na Carolina do Norte, disse ter reservas sobre o uso do termo “reparações” nesta lei.

Em entrevista à organização jornalística sem fins lucrativos Cal Matters, dedicada à cobertura da política californiana, Darity disse que medidas adotadas em nível local e estadual não constituem um plano amplo e verdadeiro de reparações.

Darity acredita que, para acabar com a desigualdade de riqueza entre a população negra e branca nos Estados Unidos, seriam necessários no mínimo US$ 10 trilhões (cerca de R$ 53 trilhões), distribuídos pelo governo federal em forma de pagamentos diretos de US$ 250 mil (cerca de R$ 1,3 milhão) a cada americano negro que seja descendente de pessoas escravizadas no país.

Sua teoria é uma entre várias propostas discutidas por especialistas sobre como compensar a população negra pelos efeitos cumulativos de séculos de desigualdade. Mas pesquisas indicam que, apesar de vir despertando interesse recentemente, o tema permanece polêmico.

Pesquisa Gallup do ano passado indica que 67% dos americanos são contra a ideia de que o governo deveria fazer pagamentos em dinheiro a americanos negros descendentes de escravos. Mesmo entre a população negra, 25% são contra.

Os autores da lei da Califórnia deixam claro que ela não substitui medidas em nível nacional. Mas dizem esperar que possa servir de modelo e inspiração para outras partes do país.

A Califórnia é considerado o Estado americano mais rico, com um Produto Interno Bruto (PIB) de cerca de US$ 3 trilhões e uma renda per capita em torno de US$ 80 mil.

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