O Senhor das Trevas

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Bolsonaro e o incêndio na Floresta Amazônica (Foto: Montagem)

Em muitos casos, para compreender o pensamento que conduz a política de Jair Bolsonaro, é preciso fazer um exercício quase que ficcional de retorno no tempo. Somos forçados a nos debruçar sobre as páginas amarelas dos arquivos que relatam períodos distantes. Alguns já fizeram um paralelo entre as paisagens pré-feudais com a maneira como o presidente trata a coisa pública.

Mas o governo Bolsonaro só tem um objetivo: conservar a maneira pela qual o Brasil se inseriu no mercado mundial capitalista. Mas não precisamos voltar ao período colonial. Primeiro porque quando éramos América portuguesa havia um capitalismo ainda muito rudimentar. Segundo porque as elites que proclamaram a Independência tornaram-se colonizadoras da sua própria nação. Nada foi alterado. Portanto, não devemos culpabilizar os portugueses pelos nossos problemas. O inferno não são os outros, somos nós mesmos.

A entrada do Brasil no mercado mundial se deu exatamente pelo processo que Karl Marx descreve no primeiro volume de O Capital ao tratar da consolidação do capitalismo. “E todo progresso da agricultura capitalista significa progresso na arte de despojar não só o trabalhador, mas também o solo; e todo aumento da fertilidade da terra num tempo dado significa esgotamento mais rápido das fontes duradouras dessa fertilidade […], mais rápido é esse progresso de destruição. A produção capitalista, portanto, só desenvolve a técnica e a combinação do processo social de produção, exaurido as fontes originais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador”.[1]

Após a Independência a inserção do Brasil no mercado mundial se deu justamente por meio da exaustão da terra e do trabalhador, isto é, na destruição do meio ambiente para a implantação da grande lavoura e na destruição da mão de obra, por meio da intensificação da escravidão, aumentando vertiginosamente o tráfico por conta da pressão inglesa.

Mas a diferença é que até mesmo os políticos mais conservadores possuíam uma sensibilidade em relação à natureza que não pode ser encontrada no presidente atual. Talvez se perguntássemos para Jair Bolsonaro onde está sua sensibilidade pela natureza ele daria uma resposta no seu maior estilo troglodita: “sensibilidade é coisa de viado!”

Durante a Alta Idade Média havia uma visão mágica sobre a natureza. Acreditava-se nas florestas viviam monstros, emboscadas, ladrões e as mais variadas espécies de perigos. Mas a partir do século XII, as florestas “constituem um elemento essencial da vida econômica”.[2] O desmatamento é promovido pelos servos em nome dos seus senhores.

Foi somente na era moderna que estas duas visões predatórias (a que via a floresta como um lugar maligno e a outra que a concebia como um lugar de exploração em potencial) recebe críticas contundentes.

Isso ocorreu, de acordo com Keith Thomas, devido ao desenvolvimento científico, estudos dedicados ao conhecimento da natureza, e a grande aversão que se criou à cidade.

A poluição era entendida tanto em sentido denotativo quanto em sentido conotativo. O carvão possuía o dobro de enxofre que o produto usado hoje. Praticamente tudo ficava enegrecido. As estátuas londrinas, os rostos das pessoas, etc.. Os gases gerados pela fermentação da cerveja, pela tintura de roupas etc., também contribuía para a poluição denotativa da cidade.

Já a poluição conotativa estava relacionada ao comportamento. A cidade passou a ser o lugar onde os lucros adquiridos a partir da exploração do campo eram gastos. O dinheiro atraía os vícios. Além disso, na cidade é muito mais fácil de se esconder. Logo a possibilidade de se fazer algo considerado de má índole nas sombras dos centros urbanos, envolver-se com drogas, prostituição etc., sem ser percebido, era bem maior que no campo, onde havia uma carência de anonimato.[3]

O Brasil se tornou independente justamente em meio a essa mudança de sensibilidade. Logo, a natureza passou a ser administrada politicamente. Contudo, em meio à exaltação romântica da natureza, sua exploração era vista como a única forma de manter o Brasil no mercado mundial.

Mas ela não era tão desprezada como vemos no projeto de poder do presidente atual. Enquanto Bolsonaro vê no desmatamento “a locomotiva da economia [que] fará eco no mundo e novas fronteiras se abrirão em nosso país”, isto é, o “preço do progresso”, a devastação ambiental era vista por membros do alto escalão do Império como um “preço do atraso”.[4] Lamentava-se a falta de tecnologia para uma exploração mais racional.

Não havia uma posição radical que defendesse o fim do desmatamento, mas também não havia prazer na destruição da selva, como parecem ter os membros do governo bolsonarista.

José Bonifácio dizia que “destruir matos virgens […] é crime horrendo e grande insulto feito à mesma natureza”. Ainda reconhecia que a solução para a devastação seria o fim da mão de obra escrava e a valorização do pequeno agricultor familiar.

O médico Emílio da Silva Maia, erudito que fazia parte da elite cultural do Império, criticava “o costume de queimar os nossos bosques a torto e a direito” e alertava para as consequências sanitárias podendo “aparecer entre nós graves moléstias”.[5]

Nesta época, reconhecia-se a devastação das florestas. Hoje, mesmo com a prova empírica imediata fornecida pelas imagens de satélites, o desmatamento e seu aumento abrupto é negado pelo alto escalão do governo Bolsonaro.

Algumas autoridades científicas vem alertando que se o Brasil continuar investindo na destruição das matas poderá se tornar o epicentro de uma nova pandemia. Mas o pensamento do governo é mais retrógrado que dos seus companheiros conservadores do século XIX.

Bolsonaro e sua corja querem se aproximar de um modelo tão retrógrado, em termos de meio ambiente, quanto o empregado pela ditadura civil-militar. Em 2009, em pleno auge do governo Lula, a antropóloga e consultora em desenvolvimento sustentável, Mary Allegretti, destacava que “até o momento, 17% da Amazônia já foi desmatada. O número impressiona, mas se o projeto militar tivesse prevalecido, certamente a devastação teria atingido 40% ou mais da região”.[6] Em 2018, isto é, 9 anos depois, chegamos a 20%[7]. Em abril deste ano, o total da área desmatada já alcançava o tamanho da cidade de São Paulo.[8] Com o aumento contínuo dos focos de incêndios, somado à rejeição, em 2019, pela Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 8672/17, do deputado Carlos Henrique Gaguim (DEM-TO), que limitaria o desmatamento da Floresta Amazônica a 30% da área total do bioma, a meta dos 40% pode ser alcançada pelo governo atual e mais um de seus sonhos genocidas será concretizado.

Raphael Silva Fagundes: Doutor em História Política na UERJ. Professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

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