O símbolo de sociedade secreta religiosa escondido em obra-prima de Caravaggio
Kelly Grovier
Às vezes, uma imperfeição não é uma imperfeição, mas um floreio — um golpe de mestre.
Vejamos, por exemplo, as hastes soltas que saem da trama da cesta de vime retratada na obra-prima A Ceia em Emaús, pintura do início do século 17 de autoria de Michelangelo Merisi, mais conhecido como Caravaggio — um dos maiores tesouros do acervo da National Gallery em Londres.
Embora inúmeros olhos tenham se maravilhado com o misterioso drama que se desenrola no interior sombrio da taverna em que Cristo recém-ressuscitado acaba de revelar sua verdadeira identidade a um par de discípulos estupefatos, o significado de uma imperfeição quase imperceptível passou despercebida nos quatro séculos desde que a pintura foi encomendada pelo nobre italiano Ciriaco Mattei em 1601.
Duas hastes soltas, saindo do trançado da fruteira, são um defeito delicado a partir do qual o verdadeiro significado da obra pode ser desvendado.
Sozinho entre os incontáveis símbolos que pontuam a pintura religiosa, este detalhe delicadamente definido — metade na sombra, metade na luz — transforma a célebre tela de Caravaggio de uma mera ilustração da cena bíblica em algo ativo e ousado — um desafio espiritual cujas apostas não poderiam ser maiores .
Para apreciar todas as implicações desse detalhe facilmente ignorado, vale a pena lembrar do panorama geral que Caravaggio está evocando.
A origem de A Ceia em Emaús — tema que inspirou de Rembrandt a Velásquez, Pontormo a Cavarozzi — é o Evangelho segundo Lucas do Novo Testamento, que conta a história da refeição de Cristo com dois de seus discípulos, Lucas e Cléofas, que não conseguiram reconhecê-lo após voltar dos mortos.
Como o pão já foi partido e abençoado, é chegado o momento, segundo o relato do evangelho, de Cristo “abrir” os olhos de seus seguidores e desaparecer “de sua vista”.
A pintura, em outras palavras, captura um limiar místico, um milésimo de segundo antes de Cristo, que está assustadoramente com uma auréola projetada pela sombra de um estranho na parede atrás dele, desaparecer do mundo.
Naquele instante imensurável entre a revelação e a evaporação, Caravaggio faz nascer um mundo suspenso, sobrenatural.
À esquerda da cesta, o tio paterno de Cristo, Cléofas, está prestes a se levantar da cadeira em pânico e espanto diante da revelação — seu cotovelo acentuado se sobressai na manga puída do seu casaco.
Do outro lado da cesta de vime, à nossa direita, Lucas abre os braços, espelhando a mesma posição na qual os membros de Cristo foram pregados na cruz no momento de sua dolorosa morte.
Enquanto isso, o taverneiro inabalável, que está ao lado de Cristo, olha sem entender — escutando as mesmas palavras que Cristo proferiu a seus discípulos estupefatos, mas incapaz de compreender seu significado.
Caravaggio devia estar tão profundamente consciente ao coreografar esta cena extraordinária, posicionada entre nosso reino perecível e um reino eterno que está além, que as reações contrastantes dos presentes na grande revelação — o taverneiro confuso, de um lado, e os seguidores de Cristo atordoados e estupefatos, de outro — eram também aquelas que sua própria pintura teve o poder de provocar.
Uma coisa é ilustrar um momento de revelação que outros vivenciaram. Outra coisa é fazer os observadores de sua obra participarem de fato com admiração daquela epifania — transformar a tela no próprio palco em que um despertar espiritual é potencialmente e perpetuamente possível.
Mas como?
“É como se o pintor fizesse a si mesmo uma série de perguntas simples e diretas sobre a história que foi dada a ele para retratar. O que acontece ao mundo quando um milagre acontece? Como seria possível saber se Cristo ressuscitado de repente aparecesse entre nós? Como as coisas são realmente nesses momentos?”, ponderou o historiador da arte Andrew Graham Dixon em sua biografia do artista, Caravaggio: A Life Sacred and Profane (“Caravaggio: uma vida sagrada e profana”, em tradução literal), enquanto discutia esta mesma obra.
Um mestre da luz e sombra que empunhava seu pincel como a varinha de um mágico, arrancando do chiaroscuro uma aparência de forma tangível, Caravaggio estava tão consciente quanto qualquer artista jamais esteve de que uma pintura tem o potencial de exceder as limitações de uma superfície estática e se tornar uma plataforma para a transcendência.
Observe a cesta de frutas de vime. Esta natureza-morta na pintura de Caravaggio é o adereço principal em seu esforço engenhoso de chegar até nós, para garantir que nosso interesse na cena que ele está retratando seja elevado além do passivo para algo urgente e ativo.
Com a virtuosa técnica Trompe-l’oeil que por meio de perspectivas e sombras cria a ilusão de que o objeto está se projetando para fora da tela, o artista posicionou cuidadosamente a cesta bem na beirada da mesa.
A cesta está a um leve empurrão de cair totalmente para fora da pintura e invadir nosso espaço, derramando na realidade seu conteúdo — romãs suculentas, uvas carnudas, batatas vermelhas podres e um marmelo radiante, que o artista encheu de maturação até a alma.
Mas é a imperfeição na trama da palha que subliminarmente prende o olhar da mente — um desfiado que consiste em duas curvas que se cruzam, retratadas com um cuidado calculista pelo artista — , com uma haste apontando para cima, e a outra para baixo, para criar a forma inesperada, embora irrefutável, de um peixe estilizado, ou do “ichthys“, na linguagem do antigo simbolismo cristão.
De acordo com as primeiras tradições eclesiásticas, o emblema ichthys, que remonta ao século 2 como um sinal de fé cristã, era usado como uma espécie de aperto de mão secreto por seguidores que temiam a perseguição de não crentes.
Para garantir que estivesse na companhia de alguém adepto dos preceitos da igreja, um arco semicircular era traçado no chão.
Se esse gesto aparentemente inócuo fosse seguido por um arco espelhado desenhado pelo estranho, formando assim o contorno rudimentar de um peixe, o ritual silencioso de reconhecimento da soberania de Cristo era considerado correspondido.
O ato, destinado a ajudar alguém a reconhecer a presença de um cristão, é claramente relevante para uma pintura dedicada ao próprio tema do reconhecimento espiritual.
Ao acentuar conscientemente apenas uma parte do contorno do ichthys, projetando um raio de luz em uma das hastes soltas enquanto mantém a outra, atrás dela, em relativa sombra, Caravaggio se aproxima do ritual rudimentar de inscrever metade do símbolo do peixe.
A partir daí, aceitar a oferta para reconhecer o milagre em questão fica inteiramente a cargo do observador de sua obra. Se escolhemos receber o gesto depende de nós.
Não está convencido de que o artista pretendia trançar em sua cesta de vime um símbolo cristão criptografado? Olhe atentamente para a silhueta que a pilha de frutas projeta sobre a toalha de mesa, semelhante a uma mortalha, à direita da cesta de vime.
Ali, uma forma ainda mais enfática de peixe, com uma barbatana caudal semilunar afiada virada para trás, pode ser vista entrando de cabeça na cesta, atraindo nosso olhar com ela.
Não é a primeira vez que Caravaggio se vê transformando uma natureza morta obscura em uma exibição repleta de surpresas escamosas.
Sete anos antes de pintar A ceia em Emaús, o artista criou o retrato tenso de um jovem recuando instintivamente de um réptil que picou seu dedo enquanto arrumava um arranjo de flores e frutas.
É como se Caravaggio, quando foi pintar A Ceia em Emaús meia década depois, tivesse conseguido conter e sublimar a intensidade desencadeada em Rapaz Mordido por um Lagarto — uma versão da obra também está na National Gallery — e aproveitar sua energia em algo espiritualmente mais sutil, expectante e para sempre em vias de explodir.
Cinco anos depois de terminar A Ceia em Emaús, Caravaggio abordou o tema novamente em uma versão da história do evangelho que agora está pendurada na Pinacoteca di Brera em Milão.
Uma interpretação muito mais gritante da cena, cujas sombras se espessaram em uma desolação envolvente, esta tela posterior é muito mais sombria em temperamento do que sua visão inicial.
A cesta de frutas, com seus floreios líricos do vime desfiado e sombras de barbatanas, desapareceu inteiramente da mesa. Em vez de tentar estabelecer uma ponte entre o mundo místico da pintura e o nosso, Caravaggio começa a nos afastar e a nos isolar do abismo sombrio em que ele e sua tela parecem estar afundando.
Familiarizado com a escuridão, que cada vez mais o chamava nos conturbados últimos anos de sua vida — com problemas rotineiros com a polícia, brigas homicidas e, por fim, sua própria morte misteriosa em 1610 sob circunstâncias que permanecem obscuras até hoje — Caravaggio parece perceber cada vez menos suas pinturas como palcos místicos em que outros podem encontrar suas almas do que uma projeção da escuridão crescente em que sua própria alma estava envolta.