Por mais de 50 anos, Lale Sokolov guardou um segredo que nasceu nos tempos da Segunda Guerra e num lugar que testemunhou uma das maiores atrocidades já cometidas contra a humanidade.
O segredo de Sokolov foi revelado depois que ele completou 80 anos de idade, muito longe daquele lugar. Foi em Melbourne, na Austrália, onde ele decidiu compartilhar sua história.
Sokolov foi tatuador em Auschwitz, um complexo de campos de concentração, no sul da Polônia, operado pelos nazistas.
Filho de pais judeus, ele nasceu na Eslováquia e foi registrado com o nome Ludwig “Lale” Eisenberg.
“Esse homem, o tatuador de um dos mais infames campos de concentração, manteve seu segredo seguro na crença equivocada de que ele tinha algo a esconder”, diz Heather Morris, que passou três anos registrando a história de Sokolov antes de ele morrer, em 2006.
Baseado nas histórias de Sokolov durante a Segunda Guerra Mundial, ela escreveu o livro O Tatuador de Auschwitz, que será lançado nesta semana no Reino Unido.
“Os horrores de sobreviver quase três anos num campo de concentração fizeram com que ele vivesse o resto da vida com medo e paranoia”, diz a escritora. “Demorei três anos para desvendar essa história. Tive que ganhar a confiança dele e demorou para que decidisse embarcar no autoescrutínio profundo que a história exigia”, conta.
Ele temia ser visto como um colaborador nazista. Mantendo o segredo, ou o que ele descrevia como um fardo, ele acreditava que iria proteger a própria família.
Foi somente depois que a mulher dele, Gita, morreu que ele revelou a história de sobrevivência e de amor.
Prisioneiro 32407
Em abril de 1942, aos 26 anos, Sokolov foi levado a Auschwitz, que, além de submeter prisioneiros ao trabalho forçado, também foi, por muito tempo, um local de execuções.
Quando os nazistas chegaram à casa dele, ele se ofereceu como mão de obra forte e jovem na esperança de que não fossem separar o resto da família dele. Ao contrário dos irmãos, Sokolov estava desempregado e era solteiro.
Naquela época, ele não sabia o que acontecia no campo localizado no território polonês. Na chegada, os nazistas trocaram o nome de Sokolov pelo número 32407.
O então prisioneiro 32407 foi escalado para trabalhar, como muitos outros, na construção para a expansão do campo. Ele passou horas fazendo telhados e mantendo um comportamento discreto dos guardas nazistas, que tinham temperamento imprevisível.
Mas, pouco depois de ter sido preso, Sokolov contraiu febre tifoide. Ele foi tratado por um homem que tinha feito nele a tatuagem de identificação, um acadêmico francês chamado Pepan.
O francês decidiu transformar Sokolov em seu assistente. Ensinou não apenas como tatuar, mas também como manter a cabeça baixa e a boca fechada. Um dia, Pepan desapareceu. Sokolov nunca descobriu o que aconteceu com ele.
E, em parte porque falava várias línguas – sabia eslovaco, alemão, russo, francês, húngaro e um pouco de polonês -, Sokolov foi alçado ao cargo de tatuador principal do campo de extermínio.
Ele ganhou uma sacola cheia de equipamentos para tatuar e um papel com as palavras “Politische Abteilung” (ou departamento político, em alemão).
Sokolov passou, então, a trabalhar para a área política da SS (Schutzstaffel), um dos principais exércitos do governo nazista. Um oficial foi designado para monitorá-lo, o que deu a ele uma aparência de proteção.
Foi-lhe permitido até mesmo comer no prédio da administração. Ele ganhava mais refeições e dormia num quarto individual. Tinha direito até a tempo livre quando não tinha prisioneiros para tatuar.
Apesar dos aparentes privilégios, Heather Morris diz que ele nunca se viu como um colaborador.
Era uma preocupação real. Depois da guerra, muitos viram os prisioneiros que trabalharam para a SS nos campos como avalistas da brutalidade nazista.
“Ele fez o que fez para sobreviver. Ele disse que não lhe foi oferecida a possibilidade de ter esse ou outro trabalho”, diz a escritora. “Era preciso aceitar o que lhe davam. Você aceitava e era grato porque significava que acordaria na manhã seguinte”.
Mesmo para Sokolov, a ameaça de ser executado estava presente diariamente.
“(Josef) Mengele, em particular, era um dos que escolhia os “pacientes” recém-chegados, entre os que estavam no caminho para (serem tatuados por) Lale Sokolov”, escreveu Heather Morris. Ainda segundo a escritora, em muitas ocasiões, ele assoviava uma melodia de ópera, enquanto se afastava de Lale e o aterrorizava em voz alta: “Um dia, tatuador, vou levar você – um dia”.
Por dois anos, Sokolov tatuou centenas de milhares de prisioneiros com a ajuda de assistentes.
Essas tatuagens, números trêmulos, mas fortes, feitas à força se tornaram um dos mais emblemáticos símbolos do Holocausto.
Somente os prisioneiros em Auschwitz e dos campos Birkenau e Monowitz eram tatuados. A prática começou no outono de 1941 e, a partir da primavera de 1943, todos os prisioneiros eram tatuados.
No começo, um carimbo de metal era usado para registrar o número na pele dos prisioneiros. E tinta era esfregada nas feridas.
Mas o método se mostrou ineficiente. Então, a SS introduziu o equipamento de agulhas duplas. Foi essa ferramenta que Sokolov usou durante o tempo em que trabalhou como tatuador.
Quando os prisioneiros chegavam a Auschwitz, eles eram selecionados para o trabalho forçado ou execução imediata. Cabeças eram raspadas e os pertences, apreendidos.
Eles trocavam as roupas por trapos e faziam fila para receber a marca do tatuador.
As únicas exceções a esse procedimento eram aplicadas aos prisioneiros de etnia alemã, que eram mandados para a “reeducação”, e aos enviados às câmaras de gás.
O processo de entrada no campo de concentração é descrito por Piotr Setkiewicz, chefe de pesquisas do memorial e museu de Auschwitz-Birkenau, como uma série de humilhações. “Primeiro, é doloroso. Depois, eles entendem que estão perdendo os nomes. A partir daí, os prisioneiros não usam oficialmente os nomes, mas números”, diz Setkiewicz.
Prisioneira 34902
Em julho de 1942, Sokolov recebeu mais um pedaço de papel, dessa vez com os números 34902, que deveriam ser tatuados numa garota. Naquele dia, ele ainda não tinha sido alçado à condição de tatuador principal. O francês Pepan pede a ele que faça o que tinha sido mandado. Caso contrário, Sokolov estaria se condenando à morte.
Tatuar homem era uma coisa, mas quando tinha que segurar braços femininos, ele se sentia horrorizado.
Havia algo naquela garota de olhos brilhantes em que teria tatuado o número 34902. Anos depois, o tatuador confidenciou à escritora que, no momento da tatuagem, foi ela que marcou o número dela no coração dele.
Ele ficou sabendo o nome da garota. Era Gita. Ela estava no campo para mulheres, o Birkenau.
Com a ajuda do “guarda pessoal” de Sokolov, ele conseguia contrabandear cartas para Gita. As cartas levaram a encontros secretos do lado de fora do bloco dela.
Ele tentou cuidar dela, levando comida escondida e tentando de tudo para que ela mudasse de área de trabalho. Sokolov tentou dar esperança a Gita.
“Gita tinha dúvidas, fortes dúvidas”, conta a escritora. “Ela não via um futuro. Já ele sabia que, no fundo, iria sobreviver. Não sabia exatamente como, mas tem a ver com a sensação de ser um sobrevivente, por causa de sorte, de estar no lugar certo na hora certa, de ser capaz de aproveitar as oportunidades que ele via”, avalia Morris.
Sabendo que ele era um dos sortudos, Sokolov tentou ajudar a maior quantidade de prisioneiros que pôde como tatuador.
Moeda de troca
Comida era moeda de troca em Auschwitz. Ele usava a comida extra que ganhava para alimentar ex-colegas de blocos, amigas de Gita e famílias de romenos que chegaram mais tarde.
Começou a negociar joias e dinheiro dados a ele por prisioneiros com moradores da região, que trabalhavam perto do campo. Era uma forma de conseguir mais comida e suprimentos.
Em 1945, os nazistas começaram a despachar prisioneiros para fora do campo de extermínio, depois que os russos chegaram. Gita foi uma das selecionadas a deixar Auschwitz.
A mulher por quem Sokolov se apaixonara foi embora. Ele sabia apenas o nome dela, Gita Fuhrmannova, mas desconhecida de onde ela tinha vindo.
Sokolov também acabou deixando o campo e conseguiu voltar a sua cidade natal, na então Tchecoslováquia.
Ele pagou a viagem com as joias que pegou dos nazistas. A irmã dele, Goldie, também sobreviveu, assim como a casa onde passou a infância e que ainda pertencia à família dele.
A única coisa que faltava era descobrir o que havia acontecido com Gita. Ele sequer sabia se poderia ter esperança de encontrá-la novamente.
Com um cavalo e uma carroça, ele partiu rumo a Bratislava, porta de entrada de muitos sobreviventes que tentavam voltar à Tchecoslováquia. Sokolov esperou na estação de trem por semanas, até que foi orientado a procurar informações na Cruz Vermelha.
No caminho, uma jovem parou na frente de seu cavalo, no meio da rua. Era um rosto familiar. Tinha olhos brilhantes. Era Gita.
Os dois se casaram em outubro 1945 e mudaram o último nome para Sokolov para se adequarem à vida em uma Tchecoslováquia controlada por soviéticos. Eles continuaram coletando e mandando dinheiro para apoiar a criação do estado de Israel.
Quando o governo tcheco descobriu as remessas de dinheiro, Sokolov foi detido e os negócios dele, nacionalizados.
Ele e Gita fugiram da Tchecoslováquia num final de semana. Foram primeiro para Viena, depois Paris e, finalmente, num esforço de ir o mais longe possível da Europa, decidiram se mudar para Sydney, na Austrália.
Durante a viagem, conheceram um casal de Melbourne que os convenceu a começar uma vida nova no norte da Austrália.
Ele investiu na indústria têxtil e ela começou a desenhar vestidos. Em 1961, eles tiveram um filho, Gary. Os dois viveram o resto da vida em Melbourne.
Gita visitou a Europa algumas poucas vezes antes de morrer, em 2003. Lale Sokolov, por sua vez, nunca voltou. Os amigos mais próximos sabiam da história de amor do casal.
“Eu me encontrei com amigos dele que imediatamente me contaram que eles se conheceram em Auschwitz, que se apaixonaram num campo de concentração”, diz Morris.
Mas mesmo o filho Gary, por muitos anos, não sabia em detalhes os horrores que os pais enfrentaram.
Toda a verdade só veio mesmo à tona depois da morte de Gita. Foi quando a escritora Heather Morris apareceu na vida dos Sokolov.
Gary estava procurando alguém para contar a história do pai e encontrou Morris por meio de amigos em comum.
Ela não é judia e talvez tenha sido por isso que Sokolov, que à época tinha 87 anos, decidiu dividir sua história.
“Para ele, era importante que eu não tivesse nenhum conhecimento prévio. Ele precisava de alguém que talvez fosse inexperiente no assunto, disposto a ouvir e a aceitar a história dele. Para ele, tinha a ver com olhar nos olhos daquela garota de 18 anos”, conta Morris.
Nos três anos seguintes, a escritora passou a visitar Sokolov várias vezes por semana. A maioria das coisas das quais ele se lembrava batia com a pesquisa dela.
Além de contar a história de amor entre Sokolov e Gita, o livro O Tatuador de Auschwitz se propõe a trazer novas informações sobre um pedaço da história do Holocausto.
Inicialmente, a escritora pensou em um roteiro para filme. A agência australiana de cinema concordou em financiar o projeto de pesquisa.
“Tínhamos pesquisadores fora do país, profissionais que examinaram e encontraram documentos impressionantes para checar o que ele dizia”, conta Morris.
Esses documentos, por exemplo, a ajudaram descobrir que os pais de Sokolov foram mortos em Auschwitz um mês antes de ele chegar lá. Sokolov morreu em 2006, antes de ficar sabendo o que aconteceu com os próprios pais.
Também foi encontrado um documento que indicava o nome e o número de Sokolov. Tratava-se de uma lista com nomes de outros prisioneiros. No alto do papel estava escrito em alemão “Abt – Aufnhmershreiber, Pramienauszahlung vom 26.7.44”, que seria um forte indicativo que ele de fato trabalhou para a área política da SS, apesar de o papel não detalhar nenhum trabalho especifico.
Cedric Geffen, presidente do memorial do Holocausto na Austrália, diz ter ficado fascinado com a história de Sokolov.
“Nunca tinha pensando muito na questão da identidade do tatuador e se ele havia sido um dos prisioneiros que os nazistas forçavam a fazer coisas inimagináveis”, diz.
Para Geffen, contar essa narrativa ajuda jovens gerações, aqueles que nunca passaram por essas atrocidades, a se conectarem com a história.
“Isso se traduz em emoções e em experiências mais tangíveis que, sem dúvida, acompanharam cada pessoa que passou por esse período, a maioria dos quais não viveu para contar sua história”, diz Geffen.
“É importante contar essa história à medida que se humaniza um papel que poucas pessoas pensam quando se recordam deste horrível período”, acrescenta. “Quem foi a pessoa encarregada de infligir essa horrível degradação física? Por que ele fez isso? Como era sua vida? O que aconteceu com ele?”
The Tattooist of Auschwitz, ou O Tatuador de Auschwitz, de Heather Morris, será lançado no Reino Unido em 11 de janeiro pela editora Bonnier Zaffre.