O trágico exemplo da Filadélfia, onde desfile de rua causou milhares de mortes pela gripe espanhola

Desfile na Filadélfia em 28 de setembro de 1918Desfile na Filadélfia em 28 de setembro de 1918, realizado apesar de alertas de especialistas em saúde de que representava risco de disseminação da gripe espanhola

Nas diversas análises sobre como a resposta das autoridades à gripe espanhola, no século 20, pode servir de lição para o combate à atual pandemia do novo coronavírus, um dos exemplos mais trágicos é o da cidade americana da Filadélfia.

Entre 1918 e 1920, a gripe espanhola matou ao menos 50 milhões de pessoas ao redor do mundo. Em cerca de três meses, a covid-19, causada pelo novo coronavírus, já soma mais de 219 mil casos e 9 mil mortes em mais de 170 países.

Em setembro de 1918, assim como agora, especialistas em saúde recomendavam medidas para evitar a aglomeração de pessoas e, com isso, retardar o avanço da doença. Mas as autoridades da Filadélfia, no Estado da Pensilvânia, decidiram ignorar o apelo para cancelar um desfile nas ruas da cidade, que na época tinha população de 1,7 milhão de pessoas.

A decisão teve efeitos devastadores e fez com que a Filadélfia se tornasse uma das cidades mais gravemente afetadas pela gripe espanhola. Em seis semanas, 47 mil pessoas estavam doentes e 12 mil haviam morrido.

Ao marcar os cem anos da pandemia, em 2018, o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) comparou a resposta da Filadélfia à da cidade de St. Louis, onde as autoridades locais foram rápidas ao cancelar a realização de desfiles e implementar medidas de distanciamento social.

Segundo o CDC, graças a essas medidas, o número de mortos em St. Louis não passou de 700 em um mês — na Filadélfia, mais de 10 mil morreram no mesmo período.

“Esse exemplo fatal mostra os benefícios de cancelar eventos com aglomeração de pessoas e adotar o distanciamento social durante pandemias”, diz o CDC.

Especialistas afirmam que o caso da Filadélfia serve de alerta para as autoridades que enfrentam a pandemia atual.

“Mostra como é importante dizer a verdade à população e seguir as recomendações dos profissionais médicos”, diz à BBC News Brasil o historiador John Barry, autor do livro The Great Influenza: The Epic Story of the Deadliest Plague in History (A Grande Gripe: A História Épica da Praga Mais Mortal da História, em tradução livre).

“Nenhuma das duas coisas ocorreu na Filadélfia, nem na maior parte dos Estados Unidos, em 1918”, ressalta Barry, que é professor da Universidade Tulane, em Nova Orleans.

Primeira Guerra Mundial

Segundo documentos do centro de arquivos da Universidade da Pensilvânia, em meados de 1918, quando a gripe espanhola já provocava devastação na Europa e na Ásia, a doença ainda “parecia uma preocupação distante” para os moradores da Filadélfia.

Mas à medida que soldados americanos lutando na Primeira Guerra Mundial voltavam da Europa para os Estados Unidos, focos da doença começaram a aparecer. De acordo com o CDC, a doença foi identificada no país inicialmente em soldados, na primavera (outono no Brasil) de 1918.

“Você não pode separar a pandemia de 1918 da guerra”, diz à BBC News Brasil o historiador Kenneth Davis, autor do livro More Deadly Than War: The Hidden History of the Spanish Flu and the First World War (Mais Mortal que a Guerra: A História Oculta da Gripe Espanhola e da Primeira Guerra Mundial, em tradução livre).

“A guerra ajudou a espalhar a pandemia, porque era a primeira guerra global; navios carregavam dezenas de milhares de soldados infectados passando por todo porto ao redor do mundo. Foi isso o que propagou a doença tão rapidamente e tão amplamente”, explica Davis.

Depois de uma onda inicial, a doença enfraqueceu durante o verão do Hemisfério Norte. Mas, com a chegada do outono, em setembro, ressurgiu com força e logo se espalhou por campos de treinamento militar nos Estados Unidos.

Funcionários de saúde em St. Louis em 1918Resposta à pandemia de 1918 em St. Louis, onde medidas rígidas de distanciamento social reduziram a velocidade de propagação da doença

Obrigação patriótica

Na época, os Estados Unidos viviam um período de grande mobilização para a guerra, que se aproximava de seus meses finais. Cidades em todo o país haviam programado desfiles militares com o objetivo de incentivar a população a comprar títulos públicos emitidos pelo governo para financiar os esforços de guerra.

A presença nesses desfiles era considerada uma obrigação patriótica, e os governos municipais precisavam preencher uma cota de venda de títulos.

“Havia enorme pressão social sobre todos os americanos para apoiar o esforço de guerra comprando esses títulos”, observa Davis.

Mas especialistas em saúde sabiam que a gripe espanhola já havia saltado dos campos de treinamento militar para a população civil, e alertaram para o risco de um evento reunindo multidões, que poderia provocar o alastramento da doença. Calcula-se que cerca de 600 marinheiros já estivessem infectados na Filadélfia nos dias que antecederam o desfile.

O diretor de Saúde Pública da Filadélfia, Wilmer Krusen, era um ginecologista sem experiência em epidemiologia, que ocupava o cargo por indicação política. Ele decidiu ignorar os alertas de que a situação estava se agravando e os apelos dos especialistas em saúde para que o desfile fosse cancelado.

Krusen minimizou a gravidade da doença, à qual se referia como uma “gripe comum com outro nome”, e garantiu à população que logo a situação seria contida e o número de casos iria cair. Jornais locais também ignoraram os alertas da comunidade médica e indicavam em suas manchetes que não havia motivo para alarme.

Ala do hospital militar Walter Reed, em WashingtonAla do hospital militar Walter Reed, em Washington, para tratar de pacientes com a gripe espanhola, que afetou muitos soldados americanos que lutaram na Primeira Guerra Mundial

Valas comuns

Assim, em 28 de setembro de 1918, enquanto a gripe espanhola já circulava pela cidade, uma multidão de 200 mil pessoas foi às ruas para acompanhar o que era anunciado como o maior desfile já realizado na Filadélfia.

Outras cidades também realizaram desfiles, mas nenhum se comparava ao da Filadélfia em termos de grandiosidade e número de pessoas. Segundo documentos da Universidade da Pensilvânia, três dias depois do evento já havia 635 novos casos de gripe espanhola na cidade.

“Foi extraordinário como se espalhou rapidamente e como foi mortal”, salienta Davis.

Em 3 de outubro, alarmado com o aumento vertiginoso no número de casos, o governo local finalmente ordenou o fechamento de escolas, cinemas, teatros, bares e outros locais com grande concentração de pessoas.

“Mas já era muito tarde, porque o vírus já estava amplamente disseminado”, ressalta Barry.

E mesmo com a gravidade da situação, a imprensa local criticou as medidas de distanciamento social, dizendo que iriam gerar pânico e que se tratava apenas de uma temporada de gripe forte.

Dois dias depois da marcha, já havia falta de leitos nos 31 hospitais da cidade. Com muitos médicos e enfermeiros enviados à Europa para os esforços de guerra, o sistema hospitalar não tinha capacidade para enfrentar a epidemia. Cerca de 3 mil freiras e seminaristas foram convocados para ajudar em hospitais improvisados.

Com o grande número de mortos, havia falta de caixões, e muitos eram enterrados em valas comuns. Carroças circulavam pela cidade recolhendo cadáveres. Em seis meses, 16 mil moradores morreram.

Mortos pela gripe espanhola nos EUA
A pandemia de gripe espanhola deixou 675 mil mortos nos Estados Unidos e pelo menos 50 milhões ao redor do mundo

Lições

Segundo a Universidade da Pensilvânia, o impacto da gripe espanhola na Filadélfia foi agravado pelas péssimas condições enfrentadas por alguns moradores, principalmente aqueles de baixa renda, imigrantes e negros, que viviam em locais superlotados e sem higiene.

Especialistas afirmam, porém, que a demora da cidade em colocar em vigor medidas de distanciamento social teve consequências fatais.

Em St. Louis, o comissário de Saúde, Max Starkloff, resistiu à pressão de empresários e comerciantes e, assim que os primeiros casos de gripe espanhola foram identificados, cancelou o desfile programado para a cidade e ordenou o fechamento de escolas, hotéis, cinemas, teatros, restaurantes, bares e até igrejas, impedindo que a doença se alastrasse.

“Eles achataram a curva, como diríamos hoje”, observa Davis, referindo-se à medida para reduzir a velocidade de disseminação e fazer com que o número de casos se espalhe ao longo do tempo, evitando picos da doença que podem sobrecarregar o sistema de saúde.

Calcula-se que a gripe espanhola tenha infectado 500 milhões de pessoas ao redor do mundo, o que representa cerca um terço da população mundial à época. Nos Estados Unidos, a doença deixou 675 mil mortos.

Assim como no caso da covid-19, não havia vacina contra a gripe espanhola. Os médicos da época não sabiam nem mesmo o que causava a doença.

Davis ressalta o impacto que a censura e mentiras por parte das autoridades tiveram na crise de 1918, além do fato de que os esforços de guerra foram colocados acima da segurança e saúde pública.

O historiador vê semelhanças entre o discurso de autoridades da época e de hoje na tentativa de minimizar a gravidade da pandemia e tratar a doença como “uma gripe”. “(No início da atual pandemia) Ouvimos o mesmo tipo de fala das maiores lideranças do país”, compara.

“É preciso poder confiar que os líderes políticos estão dizendo a verdade, e que a verdade é baseada em ciência médica e recomendações médicas. E isso não foi o que ocorreu, certamente não nos Estados Unidos, nas semanas iniciais desta crise (atual).”

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