Nas diversas análises sobre como a resposta das autoridades à gripe espanhola, no século 20, pode servir de lição para o combate à atual pandemia do novo coronavírus, um dos exemplos mais trágicos é o da cidade americana da Filadélfia.
Entre 1918 e 1920, a gripe espanhola matou ao menos 50 milhões de pessoas ao redor do mundo. Em cerca de três meses, a covid-19, causada pelo novo coronavírus, já soma mais de 219 mil casos e 9 mil mortes em mais de 170 países.
Em setembro de 1918, assim como agora, especialistas em saúde recomendavam medidas para evitar a aglomeração de pessoas e, com isso, retardar o avanço da doença. Mas as autoridades da Filadélfia, no Estado da Pensilvânia, decidiram ignorar o apelo para cancelar um desfile nas ruas da cidade, que na época tinha população de 1,7 milhão de pessoas.
A decisão teve efeitos devastadores e fez com que a Filadélfia se tornasse uma das cidades mais gravemente afetadas pela gripe espanhola. Em seis semanas, 47 mil pessoas estavam doentes e 12 mil haviam morrido.
Ao marcar os cem anos da pandemia, em 2018, o CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças, agência de pesquisa em saúde pública ligada ao Departamento de Saúde) comparou a resposta da Filadélfia à da cidade de St. Louis, onde as autoridades locais foram rápidas ao cancelar a realização de desfiles e implementar medidas de distanciamento social.
Segundo o CDC, graças a essas medidas, o número de mortos em St. Louis não passou de 700 em um mês — na Filadélfia, mais de 10 mil morreram no mesmo período.
“Esse exemplo fatal mostra os benefícios de cancelar eventos com aglomeração de pessoas e adotar o distanciamento social durante pandemias”, diz o CDC.
Especialistas afirmam que o caso da Filadélfia serve de alerta para as autoridades que enfrentam a pandemia atual.
“Mostra como é importante dizer a verdade à população e seguir as recomendações dos profissionais médicos”, diz à BBC News Brasil o historiador John Barry, autor do livro The Great Influenza: The Epic Story of the Deadliest Plague in History (A Grande Gripe: A História Épica da Praga Mais Mortal da História, em tradução livre).
“Nenhuma das duas coisas ocorreu na Filadélfia, nem na maior parte dos Estados Unidos, em 1918”, ressalta Barry, que é professor da Universidade Tulane, em Nova Orleans.
Primeira Guerra Mundial
Segundo documentos do centro de arquivos da Universidade da Pensilvânia, em meados de 1918, quando a gripe espanhola já provocava devastação na Europa e na Ásia, a doença ainda “parecia uma preocupação distante” para os moradores da Filadélfia.
Mas à medida que soldados americanos lutando na Primeira Guerra Mundial voltavam da Europa para os Estados Unidos, focos da doença começaram a aparecer. De acordo com o CDC, a doença foi identificada no país inicialmente em soldados, na primavera (outono no Brasil) de 1918.
“Você não pode separar a pandemia de 1918 da guerra”, diz à BBC News Brasil o historiador Kenneth Davis, autor do livro More Deadly Than War: The Hidden History of the Spanish Flu and the First World War (Mais Mortal que a Guerra: A História Oculta da Gripe Espanhola e da Primeira Guerra Mundial, em tradução livre).
“A guerra ajudou a espalhar a pandemia, porque era a primeira guerra global; navios carregavam dezenas de milhares de soldados infectados passando por todo porto ao redor do mundo. Foi isso o que propagou a doença tão rapidamente e tão amplamente”, explica Davis.
Depois de uma onda inicial, a doença enfraqueceu durante o verão do Hemisfério Norte. Mas, com a chegada do outono, em setembro, ressurgiu com força e logo se espalhou por campos de treinamento militar nos Estados Unidos.
Obrigação patriótica
Na época, os Estados Unidos viviam um período de grande mobilização para a guerra, que se aproximava de seus meses finais. Cidades em todo o país haviam programado desfiles militares com o objetivo de incentivar a população a comprar títulos públicos emitidos pelo governo para financiar os esforços de guerra.
A presença nesses desfiles era considerada uma obrigação patriótica, e os governos municipais precisavam preencher uma cota de venda de títulos.
“Havia enorme pressão social sobre todos os americanos para apoiar o esforço de guerra comprando esses títulos”, observa Davis.
Mas especialistas em saúde sabiam que a gripe espanhola já havia saltado dos campos de treinamento militar para a população civil, e alertaram para o risco de um evento reunindo multidões, que poderia provocar o alastramento da doença. Calcula-se que cerca de 600 marinheiros já estivessem infectados na Filadélfia nos dias que antecederam o desfile.
O diretor de Saúde Pública da Filadélfia, Wilmer Krusen, era um ginecologista sem experiência em epidemiologia, que ocupava o cargo por indicação política. Ele decidiu ignorar os alertas de que a situação estava se agravando e os apelos dos especialistas em saúde para que o desfile fosse cancelado.
Krusen minimizou a gravidade da doença, à qual se referia como uma “gripe comum com outro nome”, e garantiu à população que logo a situação seria contida e o número de casos iria cair. Jornais locais também ignoraram os alertas da comunidade médica e indicavam em suas manchetes que não havia motivo para alarme.
Valas comuns
Assim, em 28 de setembro de 1918, enquanto a gripe espanhola já circulava pela cidade, uma multidão de 200 mil pessoas foi às ruas para acompanhar o que era anunciado como o maior desfile já realizado na Filadélfia.
Outras cidades também realizaram desfiles, mas nenhum se comparava ao da Filadélfia em termos de grandiosidade e número de pessoas. Segundo documentos da Universidade da Pensilvânia, três dias depois do evento já havia 635 novos casos de gripe espanhola na cidade.
“Foi extraordinário como se espalhou rapidamente e como foi mortal”, salienta Davis.
Em 3 de outubro, alarmado com o aumento vertiginoso no número de casos, o governo local finalmente ordenou o fechamento de escolas, cinemas, teatros, bares e outros locais com grande concentração de pessoas.
“Mas já era muito tarde, porque o vírus já estava amplamente disseminado”, ressalta Barry.
E mesmo com a gravidade da situação, a imprensa local criticou as medidas de distanciamento social, dizendo que iriam gerar pânico e que se tratava apenas de uma temporada de gripe forte.
Dois dias depois da marcha, já havia falta de leitos nos 31 hospitais da cidade. Com muitos médicos e enfermeiros enviados à Europa para os esforços de guerra, o sistema hospitalar não tinha capacidade para enfrentar a epidemia. Cerca de 3 mil freiras e seminaristas foram convocados para ajudar em hospitais improvisados.
Com o grande número de mortos, havia falta de caixões, e muitos eram enterrados em valas comuns. Carroças circulavam pela cidade recolhendo cadáveres. Em seis meses, 16 mil moradores morreram.
Lições
Segundo a Universidade da Pensilvânia, o impacto da gripe espanhola na Filadélfia foi agravado pelas péssimas condições enfrentadas por alguns moradores, principalmente aqueles de baixa renda, imigrantes e negros, que viviam em locais superlotados e sem higiene.
Especialistas afirmam, porém, que a demora da cidade em colocar em vigor medidas de distanciamento social teve consequências fatais.
Em St. Louis, o comissário de Saúde, Max Starkloff, resistiu à pressão de empresários e comerciantes e, assim que os primeiros casos de gripe espanhola foram identificados, cancelou o desfile programado para a cidade e ordenou o fechamento de escolas, hotéis, cinemas, teatros, restaurantes, bares e até igrejas, impedindo que a doença se alastrasse.
“Eles achataram a curva, como diríamos hoje”, observa Davis, referindo-se à medida para reduzir a velocidade de disseminação e fazer com que o número de casos se espalhe ao longo do tempo, evitando picos da doença que podem sobrecarregar o sistema de saúde.
Calcula-se que a gripe espanhola tenha infectado 500 milhões de pessoas ao redor do mundo, o que representa cerca um terço da população mundial à época. Nos Estados Unidos, a doença deixou 675 mil mortos.
Assim como no caso da covid-19, não havia vacina contra a gripe espanhola. Os médicos da época não sabiam nem mesmo o que causava a doença.
Davis ressalta o impacto que a censura e mentiras por parte das autoridades tiveram na crise de 1918, além do fato de que os esforços de guerra foram colocados acima da segurança e saúde pública.
O historiador vê semelhanças entre o discurso de autoridades da época e de hoje na tentativa de minimizar a gravidade da pandemia e tratar a doença como “uma gripe”. “(No início da atual pandemia) Ouvimos o mesmo tipo de fala das maiores lideranças do país”, compara.
“É preciso poder confiar que os líderes políticos estão dizendo a verdade, e que a verdade é baseada em ciência médica e recomendações médicas. E isso não foi o que ocorreu, certamente não nos Estados Unidos, nas semanas iniciais desta crise (atual).”