É verdade que a grande maioria dos brasileiros gostaria de viver num país onde a Justiça fosse um poder transparente e isento, que atua cegamente na defesa de regras e princípios sem distinção de origem social, cor da pele e preferência política. Na prática, por mais bonito que seja, este sonho de homens e mulheres iguais perante a lei tem se revelado uma ingênua utopia de grande utilidade para embaralhar os espíritos e desarmar quem necessita reunir forçar para lutar por seus direitos. Ajuda a esconder que vivemos numa sociedade estruturalmente desigual, onde o duplo tratamento reservado aos cidadãos se expressa no abismo de renda, no acesso ao ensino e, obviamente, no exercício de direitos políticos e no tratamento recebido no Judiciário.
Convém prestar atenção nos movimentos subterrâneos que, contrariando fatos e provas cada vez mais abundantes, pretendem salvar Michel Temer e assegurar sua permanência no Planalto até 2018 — ou pelo menos até quando for possível. Pode parecer absurdo, quando se considera o teor das delações premiadas da Odebrecht — e estamos falando da ponta do iceberg — somado a incompetência do governo para apontar um caminho para a recuperação do país.
Num Congresso comprado a peso de ouro pelos patrocinadores da pinguela construída por Eduardo Cunha, que ali encontram uma chance única de atendimento a seus interesses, nunca se pensou que um processo de impeachment de Temer pudesse ser debatido de modo isento por aquela massa dominante de parlamentares que derrubou Dilma sem sequer apontar um crime de responsabilidade configurado.
Em teoria, as chances de uma decisão de acordo com os fatos e as provas sempre foram vistas como reduzidas, mas pareciam possíveis no TSE. Ali, num ambiente de suspense em torno do relatório do ministro Herman Benjamin alimentou-se a noção de que a chapa Dilma-Temer seria cassada em conjunto, abrindo espaço para a escolha de um novo presidente da República. Pelo voto em urna, se Temer fosse afastado até 31 de dezembro. Pelo voto indireto do Congresso, se a decisão ocorresse mais tarde.
Embora a investigação da chapa Dilma-Temer seja a mais longa do tribunal em campanhas presidenciais recentes, tendo se iniciado antes mesmo da proclamação oficial do resultado eleitoral, e incluído uma densa troca de informações quase em tempo real com a Lava Jato, até agora o relator Herman Benjamin tem declarado que não foi possível chegar a uma conclusão definitiva. “Ainda faltam perícias, eventuais manifestações das partes sobre elas, avaliação da força- tarefa sobre essas manifestações, alegações finais,” disse ele, em 11 de dezembro. Os argumentos do ministro podem ter sólido fundamento jurídico e representar numa postura acertada na preocupação sempre correta de proteger garantias e direitos fundamentais. Também estão de acordo com o princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, a presunção da inocência.
Mas, no Brasil de 2016, dificilmente deixariam de causar escândalo se pudessem beneficiar aliados do Partido dos Trabalhadores, não é mesmo?
Enquanto se acreditou, erradamente, que seria possível condenar Dilma e salvar o companheiro de chapa Temer, numa repetição do que se fez no Congresso, as dúvidas sobre os fundamentos da denúncia eram tratadas como material irrelevante e inofensivo, pois não pareciam capazes de atingir o vice. Quando se compreendeu que ambos faziam parte de uma só campanha, com um só comando, a salvação de Temer passou a depender de outros argumentos. Um aliado, que havia operado um golpe de Estado, estaria sentado no banco dos réus.
Nessa situação, a dúvida que beneficia o réu é tratada com naturalidade. Óbvio. Ninguém tem pressa de mais nada e, assim, o caso só entrará em pauta depois que o Judiciário retornar do recesso de fim de ano, quando, em qualquer hipótese, já terá ocorrido a alteração fundamental no método — direto ou indireto — para escolha do sucessor de Temer em caso de uma eventual condenação.
A outra novidade, agora, é que nem a pior alternativa do ponto de vista da preservação da democracia — denunciar Temer fora do prazo para eleições diretas — parece ser solução para quem tem o poder de mando sobre a República. Quando Dilma já é carta fora do baralho, Gilmar questiona a denuncia em sua substância, sinalizando que a própria acusação pode não ter fundamentos para ser levada adiante.
Se em síntese Herman Benjamin diz que é preciso investigar mais, Gilmar alega que não há uma base concreta para uma denuncia. “A simples doação por caixa 2 não significa a priori propina ou corrupção, assim como a doação supostamente legal não significa algo regular,” diz Gilmar.
Muitas pessoas respeitáveis sempre consideraram que essa distinção é legítima e necessária. Antes do julgamento da AP 470, boa parte dos advogados do PT estava convencida de que seus clientes não poderiam ser condenados porque a única prova — caixa 2 — estava fora do Direito Penal.
Não custa lembrar, contudo, que, essa visão começou a se modificar naquele julgamento e também na Lava Jato, quando contribuições de campanha passaram a ser tratadas como simples disfarce para o pagamento de propina, mesmo quando sua legalidade poderia ser documentada pela própria Justiça Eleitoral. Sem mais.
Em 2012, no julgamento da AP 470, a ministra Carmen Lucia, atual presidente do STF, chegou a mostrar-se irritada com advogados de José Dirceu, José Genoíno e Delúbio Soares que alegavam que os réus não poderiam ser condenados por caixa 2 porque isso não era considerado crime. Num voto que seria reproduzido em ambiente de êxtase por veículos que pediam punição máxima contra réus do Partido dos Trabalhadores, Carmen Lucia disse que “alguém afirmar que houve ilícito com a tranquilidade que se fez aqui é algo inédito em minha vida profissional. É como se o ilícito fosse uma coisa normal e pudesse ser assumido tranquilidade. É como dizer ‘ora, brasileiro, o ilícito é normal’. A ilegalidade não é normal. Num estado de direito, o ilícito há de ser processado e punido. Isso me causou profundo desconforto”.
O debate sempre foi mais complicado do que isso. Em 2016, quando um relatório da Polícia Federal sobre a Lava Jato admitia que em determinadas investigações havia apenas “elementos indiciais” para sugerir que doações eleitorais haviam sido usadas para o pagamento de suborno, a Folha de S. Paulo fez um editorial (“Doação ou Propina”) lembrando que a própria PF ressaltava “a necessidade de aprofundar as investigações.”
A rigor, neste universo estamos falando de uma zona cinzenta, como dizia o filósofo tucano José Arthur Gianotti, em função de uma realidade difícil de negar. Até 2014, as campanhas eleitorais brasileiras permitiam “a organização de um toma lá-dá-cá entre candidatos e empresas, que negociam contribuições em troca de um tratamento favorável após a vitória,” como escrevi no livro A Outra História da Lava Jato. “Pode-se lamentar mas a ideia do financiamento privado é exatamente essa. Reforçar laços — inclusive materiais — entre o setor privado e os governantes.”
E aqui chegamos ao centro da questão que alimenta o acordão destinado a proteger Michel Temer — a postura dos meios de comunicação, sempre importante para interferir sobre o sistema político de um país onde o sistema de partidos encontra-se esfacelado. Após uma década de campanha midiática contra os governos do PT, o Estado de S. Paulo agora faz clamores a favor da prudência nas denúncias políticas. Num editorial chamado “De vazamento em vazamento”, lembra que “especialmente em momentos críticos como este,” a cobertura deve ser pautada “pelo mais absoluto respeito aos fatos, aos quais só se chega após exaustiva apuração, sem açodamentos.” Em alerta que se encaixa perfeitamente na crítica ao comportamento messiânico de setores do Judiciário, até agora enfeitadas por espessas camadas de glamurização da mídia, o editorial lembra que “o jornalismo de qualidade é o único antídoto realmente eficaz contra o envenenamento da democracia. Ainda mais quando o veneno vem sob a forma de porção regeneradora da moral social.”
Se a preservação da desigualdade e do privilégio foi um dos motivos óbvios para levantar uma parcela influente de cidadãos para derrubar um governo que se destacou por medidas que, apesar de todos os limites e imperfeições, contribuíram para diminuir a distancia entre as várias camadas da pirâmide, me parece um excesso de otimismo — vamos usar uma expressão suave — imaginar que esse comportamento irá mudar quando se trata de uma decisão que envolve o comando do poder de Estado, agora devolvido a classe que governa país desde o tempo em que Pedro Alvares Cabral desceu nas caravelas. Nada sugere que isso irá ocorrer.