Opioides: qual é o cenário brasileiro de consumo das drogas?
Os Estados Unidos enfrentam uma situação sem precedentes de uso descontrolado de opioides.
O uso dessas substâncias, especialmente do fentanil, uma das versões mais potentes, tem levado milhares de americanos a overdoses.
Os opioides são compostos por substâncias que interagem com receptores no sistema nervoso para aliviar a dor e são comumente utilizados no período pós-operatório para amenizar as fortes dores típicas desse momento.
Como efeito colateral, essas drogas apresentam risco de dependência em casos de uso inadequado.
De acordo com dados do Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA, as mortes por overdose causadas por opioides aumentaram quatro vezes em pouco mais de uma década, passando de 21 mil em 2010 para 80,4 mil em 2021, o equivalente a mais de 200 mortes por dia causadas por overdose de opioides.
O problema se tornou tão grave e comum que ‘máquinas como as de venda de refrigerante’ que dão antídoto de overdose podem ser encontradas pelas ruas do país.
O Canadá é outro país em forte crise, e viu um aumento de 67% nas mortes por overdose de opioides.
No Brasil, os opioides já circulam no mercado paralelo ilegal — fora das mãos de pacientes com prescrições adequadas e do ambiente hospitalar.
Em 2019, uma pesquisa feita pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) mostrou que 4,4 milhões de brasileiros já utilizaram opioides sem prescrição médica.
Isso acende um alerta para que as autoridades ajam preventivamente, impedindo a popularização do uso indevido desses medicamentos e evitando um cenário semelhante ao vivenciado nos Estados Unidos.
Duas realidades distintas
De acordo com os especialistas entrevistados pela BBC News Brasil, atualmente, nosso país apresenta duas realidades distintas no que diz respeito a medicamentos opioides,
Por um lado, o Brasil é conhecido por ter “um manejo ruim da dor”, prescrevendo poucos medicamentos desse tipo para pacientes que realmente precisam, incluindo pessoas com dor crônica, como alguns pacientes oncológicos, ou que estão se recuperando de traumas físicos como cirurgias extensas.
“Há uma década o Brasil era internacionalmente criticado pelo baixo uso de opioides para o controle da dor. Nos anos recentes os números melhoraram bastante, felizmente, já que são remédios essenciais quando há indicação correta de uso”, descreve Claudio Fernandes Corrêa, mestre em neurocirurgia pela Unifesp e especialista em dor pela AMB (Associação Médica Brasileira).
Na avaliação do anestesista Rodrigo Souza, os reflexos desse período com pouco uso de opioides são notados até hoje.
“Tanto na prescrição por médicos quanto na aceitação dos pacientes brasileiros, que costumam ser mais conservadores para tomar esse tipo de remédio”, complementa ele, que é diretor clínico e coordenador da anestesiologia no Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba.
Por outro lado, o uso recreativo — e ilegal — alarma os médicos.
O anestesista explica que muitos começam a usar medicamentos como a codeína depois que cartelas de remédios sobram de algum tratamento.
Segundo o médico, é pouco provável que um paciente submetido a uma cirurgia e que recebe opioides por dois ou três dias, para lidar com a intensidade da dor nesse período, desenvolva uma dependência.
“Se esse paciente recebeu uma prescrição de 30 comprimidos de codeína (um opioide mais fraco que o fentanil, que pode ser adquirido em farmácias a partir de prescrição médica), às vezes, ao final do tratamento, ele acaba ficando com comprimidos que permanecem em casa.”
Digamos que, eventualmente, o paciente, mesmo sem uma indicação para o uso, decide que vai tomar codeína para uma dor de cabeça que está forte demais. Inicia-se assim um processo de automedicação que, dentro desse cenário, pode levar a problemas mais sérios, como a dependência.”
Essa situação, diz o médico, também pode ocorrer se outra pessoa no ambiente doméstico tiver consumido o medicamento.
“Se alguém acha esses comprimidos e tem interesse no efeito deles, o risco de adição e riscos à saúde são altos.”
A codeína, junto com o tramadol, é, no entanto, um dos tipos mais fracos entre as drogas opioides.
As classes mais potentes incluem oxicodona, hidrocodona, morfina e fentanil, um opioide 50 vezes mais viciante que a heroína e 100 vezes mais potente que a morfina, e que tem sido o principal responsável pela crise nos Estados Unidos.
No Brasil, o uso do fentanil é restrito ao ambiente hospitalar — não é possível comprar a droga na farmácia, diferentemente do que acontece com a codeína e o tramadol, por exemplo.
O Rodrigo Souza conta a dificuldade de conseguir a substância para anestesias quando abriu uma empresa com colegas (também anestesistas) para oferecer os serviços dos médicos em procedimentos em consultórios de dentistas.
“O processo, para nós que somos médicos, foi bastante burocrático e detalhista, levou mais de um ano, e incluiu vistorias com a vigilância sanitária.”
Ainda assim, a droga já chegou às mãos de traficantes brasileiros.
Em fevereiro, ampolas de fentanil foram apreendidas no Brasil pela primeira vez.
A Polícia Civil do Espírito Santo interceptou, por meio do Denarc (Departamento Especializado em Narcóticos), frascos que estavam sendo levados por traficantes.
Ainda não há dados que mostrem o consumo ilegal desta droga especificamente no Brasil.
Segundo o anestesista Rodrigo Souza, no meio médico, há relatos de que a substância está sendo adicionada a outras drogas, como MDMA e ecstasy. Essa era também a suspeita da polícia que fez a apreensão no Espírito Santo.
Aprender com o cenário dos EUA
Em um artigo publicado em junho no periódico The Lancet Regional Health – Americas, pesquisadores alertam que o Brasil necessita agir rapidamente para evitar que uma crise de abuso de opioides, semelhante à experienciada pelos Estados Unidos, conforme mostrou esta reportagem da BBC News Brasil.
Os especialistas que assinam o artigo no periódico científico sugerem que o Brasil crie políticas públicas imediatamente com foco em impedir que o uso da droga se popularize.
“Sem dúvidas devemos ter receio do uso indiscriminado por aqui, mas com certeza estamos muito distantes da realidade americana. É crucial que as autoridades monitorem esses dados para avaliar a evolução da situação”, diz Souza.
Para evitar novos dependentes, o neurologista Claudio Fernandes Corrêa afirma que, do ponto de vista médico, o primeiro passo é não prescrever opioides para qualquer paciente com dor nos prontos-socorros.
“Não é indicado, mas sabemos que acontece em muitos lugares”, afirma
Rodrigo Souza concorda. “Em muitos casos, só se dá um remédio, tratar significa muito mais do que isso. Para dor, o ideal é oferecer acesso a uma equipe multidisciplinar, que trate os pacientes por completo — algo a que muitos brasileiros não têm acesso.”