Ordem e Progresso: como as ideias de um filósofo francês do século 19 ajudam a entender a formação do Brasil
Quem caminha pela rua Monsieur Le Prince, no distrito de Odéon, em Paris, dificilmente percebe a placa em cobre que indica, ao lado da porta de número 10, que foi naquele prédio que viveu um dos filósofos mais importantes do Ocidente no século 19 — e cujo pensamento teve impacto determinante na formação social, política e até religiosa do Brasil República: o francês Auguste Comte (1798-1857).
É ali, em um apartamento onde ele passou boa parte da vida, no décimo andar, que hoje funciona a Maison d’Auguste Comte, um pequeno museu e centro de pesquisa e documentação fundado em 1960 pelo brasileiro Paulo Carneiro, que tinha servido como embaixador na Unesco, na capital francesa, até dois anos antes. É onde está também a Capela da Humanidade, sede da religião positiva, criada por Comte nas suas últimas décadas de vida.
Carneiro, que ocupou a cadeira 36 da Academia Brasileira de Letras entre 1971 e 1982 (ano da sua morte), chamava o local, como os seguidores das ideias de Comte, de “apartamento sagrado”, e Ivan Lins, o acadêmico que o recebeu na Academia, disse em seu discurso de recepção que Carneiro era um “filho espiritual do filósofo”, muito por ter financiado o museu nos anos seguintes à abertura e por ter evitado, ainda na década de 1930, que o prédio fosse demolido para dar lugar a um parque.
A relação do Brasil com a casa de Comte em Paris, no entanto, vai muito além do esforço em mantê-la tal como o filósofo deixou antes de morrer, na metade do século 19. E também não se restringe à frase “Ordem e Progresso” na bandeira nacional.
A lei dos três estados de Comte
As dificuldades financeiras para manter o “apartamento sagrado” não foram exclusividade dos seguidores de Auguste Comte. Sem jamais conseguir lecionar em uma universidade, o próprio filósofo tirava seu sustento de contribuições esparsas que recebia de adeptos de suas ideias ou de pequenas rendas oriundas de conferências públicas.
Foram elas, no entanto, que permitiram-lhe escrever sua obra mais importante: o Curso de Filosofia Positiva, cuja primeira publicação é de 1830. Foi nela que ele começou a elaborar o arcabouço da sua filosofia “positivista” e a constituir a sociologia — que sequer existia — como disciplina científica.
Para Comte, o conhecimento humano sobre o mundo passa sempre por três estados que se sucedem em uma ordem linear: no primeiro, “teológico”, todas as coisas são explicadas pela ação de entidades sobrenaturais — como era na Idade Média na Europa, por exemplo.
Sua fase seguinte é a “metafísica”, em que as entidades divinas são substituídas, na explicação, por abstrações filosófica, que Miguel Lemos (1854-1917), filósofo positivista brasileiro, apontou serem noções como “povo” e “soberania”.
O terceiro estado é o “positivo” (daí o nome de batismo da sua filosofia). Nele, “o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas, a saber, as relações invariáveis de sucessão e de similitude”, escreveu Comte.
Em outras palavras, no estado positivo, a ciência deveria renunciar a tudo o que não é passível de observação real, como a origem primeira dos fenômenos, e se debruçar apenas sobre os fatos e as relações concreta entre eles.
A mesma lei dos três estados vale para analisar o processo histórico. No Curso da Filosofia Positiva, Comte diz que a história deve passar sempre por uma evolução necessária, com etapas sucessivas e lineares que não podem ser interrompidas por nenhum desvio.
Ordem e progresso
É por isso que todo o acontecer histórico depende de dois guias: a ordem — que faz com que os estados não sejam modificados por revoluções ou grandes transformações — e o progresso, resultado inevitável de uma ordem que só pode ir para frente. A ordem e o progresso, assim, eram as “condições fundamentais da civilização moderna”, como o filósofo escreveu em Discurso sobre o Espírito Positivo, publicado postumamente em 1914.
Miguel Lemos, um dos positivistas mais famosos do período imperial brasileiro, resume assim a filosofia da história de Comte em Pequenos ensaios positivistas, de 1877. “A história não é mais essa série de combates que se sucedem, de gerações que se odeiam e se condenam mutuamente, a história torna-se o quadro do desenvolvimento social regido pela lei dos três estados”.
Maria Amália Andery, professora e reitora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, e Tereza Pires Sério, do departamento de Psicologia da mesma universidade, pontuam, em um artigo sobre o filósofo, um fato interessante: que, no sistema de Comte, o ser humano só pode se resignar. Para ele, resta “aguardar o desenvolvimento, respeitando sua ordem natural, seu tempo, seus limites, num processo de espera que é, ele também, ordeiro”, afirmam.
O positivismo no Brasil
Muito antes de Paulo Carneiro, as ideias de Comte tiveram impacto no Brasil em um momento crucial do país: a transição do Império para a Primeira República, proclamada em 1889.
A influência da filosofia positiva nas ideias brasileiras pode ser vista desde o “castilhismo”, a doutrina política criada pelo republicano gaúcho Júlio de Castilhos — que escreveu a Constituição do Rio Grande do Sul de 1891 com base nas ideias de Comte — até a conhecida frase da bandeira republicana, “Ordem e Progresso”, sugestão do professor (e positivista) da Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, Benjamin Constant, e do presidente do Apostolado Positivista, Raimundo Teixeira Mendes. Mas não só.
Foram dois os positivismos que fizeram parte da formação republicana do Brasil, segundo o historiador José Murilo de Carvalho, autor de Cidadania no Brasil: o longo caminho: um “ortodoxo”, que levava em conta apenas o cientificismo da filosofia positiva, e outro “não ortodoxo”, que se tornaram adeptos da sua religião — uma virada que Comte deu nas suas últimas décadas de vida.
“Os ortodoxos defendiam a proclamação da República, a separação entre Igreja e Estado, a incorporação do operariado na sociedade, a proteção aos indígenas e ao meio ambiente e o pagamento de salário às mães de família pelo trabalho de educação dos filhos. Acrescente-se a isso uma intransigente defesa de valores republicanos, como a colocação do interesse coletivo acima dos individuais”, explica Carvalho.
Miguel Lemos, um dos positivistas brasileiros mais famosos do período imperial
“Já os não ortodoxos se tornaram missionários dedicados em tempo integral. Eram uns bolcheviques de classe média. Faziam conferências e escreviam centenas de folhetos sobre todos os temas nacionais que distribuíam gratuitamente”, completa.
Miguel Lemos, o líder desse grupo, foi quem fundou o Apostolado Positivista, que construiu o maior templo da religião positivista do mundo, na Rua Benjamin Constant, no centro do Rio de Janeiro.
Segundo a professora Vera Martiniak, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPP), no Paraná, a influência dos positivistas vai além do papel que desempenharam na proclamação: foram eles também que, uma vez instaurada a República, pautaram muitos dos projetos de modernização do país.
“Eles defendiam uma reforma da sociedade na qual o progresso, a moral, a ordem se estabelecessem por meio de uma nova hegemonia política e social. Para tanto, a educação era fundamental para a formação do caráter e da moral dos indivíduos”, aponta.
Mas o que há desse positivismo na sociedade brasileira hoje?
Christian Lynch, professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, diz que a defesa de um “absolutismo ilustrado” que se encontra em Comte é um dos elementos que, da forma como foi lido e adaptado no Brasil — principalmente pelos “ortodoxos” — alicerçam as contínuas mudanças sociais feitas sempre de cima pra baixo, como a própria República, obra dos militares e à revelia da maioria da população.
“O positivismo é conservador e progressista ao mesmo tempo” diz ele.
“O conservador tradicional olha para o passado e o considera bom. O positivista não: ele quer modernização, progresso, mas almeja chegar lá sem medidas radicais, sem rupturas, sempre dentro de uma ordem que se conserva. No Brasil, as ideias de Comte serviram para reformar um ‘absolutismo ilustrado’ que já existia aqui antes — a ideia de que é possível modificar a sociedade do alto, sem grandes transtornos e de maneira controlada. Isso caiu como uma luva em um país que sempre se sentiu atrasado e atrás de um modelo de modernização”, completa.
Daí também surge uma certa aversão a grandes revoluções ou transformações sociais, uma característica que é comum mesmo entre os mais pobres, segundo famosa descrição de André Singer, professor de Ciência Política na Universidade de São Paulo (USP).
“O positivismo se adaptou a um país que, desde a época da independência, tinha conservadores que almejam o progresso porque consideravam o atraso também como um fator de insegurança nacional. Na transição do Império para a República, eles queriam que a escravidão acabasse não por motivos humanitários, mas porque ela favorecia revoltas escravas. Depois, já com os militares, na década de 1950 e 1960, o apoio ao desenvolvimentismo era para evitar que aqui acontecesse uma Revolução Cubana, porque essas coisas só acontecem em países agrários, atrasados”, explica Lynch.
A organização política no Brasil também é um traço positivista que permanece hoje, segundo Carvalho. “Comte pregava uma república presidencial ditatorial, com um Legislativo apenas orçamentário. Ao mesmo tempo, o positivismo pregava a incorporação do proletariado à sociedade. A ditadura militar manteve a preocupação com políticas sociais. Só nos governos Fernando Henrique e Lula, sobretudo no último, o social foi promovido em ambiente democrático, mantendo, no entanto, traços paternalistas. O problema da incorporação do operariado sem ditatura, isto é, a superação da fórmula dos ortodoxos, ainda não parece resolvido.”
A religião positiva
Essa integração do proletariado à sociedade é, em Comte, resultado de uma percepção positivista diferente da que aparecia com os comunistas e socialistas do mesmo período: para o filósofo francês, não deve haver conflito entre as classes. Ao contrário, elas devem conviver em harmonia principalmente porque dependem umas das outras, ideias essas que tiveram impacto profundo no Brasil.
“A incorporação dos trabalhadores foi feita aqui como cooptação desta classe, ouvindo algumas das demandas deles, mas criticando quase toda proposta de lei social”, argumenta Federico Bartz, doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mas, para Andery e Sério, o filósofo esteve mesmo fincado demais ao seu tempo em sua visão das possibilidades de revoluções. “Para Comte, qualquer insubordinação ao poder corrompe uma ordem reestabelecida. Qualquer proposta ou ação que dificulte ou impeça a aceitação da concepção de que os diferentes grupos sociais existentes são complementares e necessários uns aos outros (industriais e trabalhadores, por exemplo) e de que a harmonia entre eles é benéfica e indispensável à sociedade (cujo progresso depende da ordem) é vista como falsa e perigosa.”
No entanto, se foram os escritos do filósofo francês contra a monarquia que tensionaram o Império e culminaram na Proclamação da República, foram eles também que colocaram nas cabeças dos republicanos brasileiros a necessidade de educação e trabalho para todos, sem distinção — que, no programa social de Comte, aparecia como duas condições fundamentais das sociedades.
“Os ideais positivistas de ordem e progresso estão presentes hoje na educação como um processo evolutivo, na forma de disciplina. Mesmo a ideia de estabelecer entre as ciências uma ordem hierárquica, que vai da matemática à sociologia, e a divisão delas em disciplinas, acarretou aqui, ao contrário, em uma ênfase nas ciências naturais em detrimento das ciências humanas”, completa Martiniak.
A religião positivista não foi, necessariamente, uma virada no pensamento de Comte. Para ele, ao invés de almejar o poder político e promover mudanças na ordem social, o interesse popular deveria estar em uma reorganização espiritual.
“As principais dificuldades sociais não são essencialmente políticas, mas sobretudo morais, de sorte que sua solução depende realmente das opiniões e dos costumes, muito mais do que as instituições”, diz em um trecho do Discurso sobre o Espírito Positivo.
Assim, dos anos 1850 em diante, o positivismo se tornou uma crença na própria capacidade humana de promover tais mudanças — e por isso ele a chamou de Religião da Humanidade (exigia sempre o H maiúsculo).
A primeira Igreja Positivista do Brasil começou a ser construída em 1881, 24 anos depois da morte de Comte, em Paris, por obra de Miguel Lemos. O edifício, como sugeriu o próprio Comte, foi erguido à semelhança do Panteão, monumento neoclássico parisiense que hoje abriga os restos mortais de vários escritores e cientistas franceses.
Pela igreja carioca passaram nomes famosos da história brasileira do período, como Joaquim Nabuco, que se aliou aos positivistas nas narrativas contra a escravidão. No seu auge, ela ainda influenciou os positivistas gaúchos, liderados pelo presidente Julio de Castilhos, que ergueram uma Capela Positivista no bairro de Farroupilha, em Porto Alegre, em 1897.
Depois, enquanto a filosofia permaneceu como ideário na política, a religião se enfraqueceu até ficar reduzida a algumas pessoas por volta dos anos 1920. O templo carioca, da mesma maneira, sofreu com o esquecimento: em 2009, por exemplo, um forte temporal no Rio fez o teto do edifício desabar. Está fechado há mais de uma década.
Tombado, o maior templo da Religião da Humanidade segue interditado pela Defesa Civil do Rio — e sem prazo para reabrir.